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Resenha de um livro inédito: Resgatando a história da politização da sala de aula

por Heloisa Pait

Este texto é uma resenha de um livro inédito. Peço ao leitor confiança de que o livro existe, de que o li inteiro e depois de alguns anos ainda o guardo na memória, pois não se poderá conferir a validade do que digo. Devolvi o livro a contragosto, enfiando-o numa sacola de papel pardo e deixando-o na portaria de um prédio como se tivessem confiscado propriedade minha.

O livro é uma coleção de emails trocados por um grupo de ex-alunos de um colégio experimental dos anos 1960, depois de 40 anos de formados. Os textos vêm em ordem cronológica, nas fontes, cores e tamanhos com que foram trocados, contendo as memórias, as trajetórias e os planos de reencontro daqueles estudantes de tempos atribulados de nossa história.

O lugar era mágico. Aulas dinâmicas, com professores engajados tanto com o ensino como com a política, cheias de projetos interessantes. Debates em aula e fora dela, experimentação e liberdade: um Summerhill tropical.

Summerhill, para situar o leitor, é uma das experiências educacionais européias do começo do século XX que colocaram o aluno no centro do processo educativo. Em Summerhill os alunos podiam, individualmente, escolher quando e se veriam aulas e fariam suas tarefas e, coletivamente, decidir sobre as regras de convívio escolar. Como experiência limite, serviu posteriormente a escolas construtivistas no Brasil, legitimando iniciativas menos radicais.

O experimento de Anton Makarenko, da mesma época, mas servindo ao regime soviético, também elevava os estudantes ao papel de atores principais do processo educativo. A construção do homem soviético, para ele, viria não da disciplina superior, mas daquela forjada no interior da sociabilidade dos pares, recuperando, segundo o estudioso Oleg Kharkhordin, práticas religiosas tradicionais de confissão grupal da Igreja Ortodoxa.

A cada vez que ouço a palavra “protagonismo”, lembro, com temor, dos órfãos que Makarenko transformou em revolucionários determinados através do poder do grupo, mais opressivo que o poder hierárquico de um só. Já Summerhill, alojada na democrática Inglaterra e, depois da Segunda Guerra, abraçada pelos tolerantes americanos, parece ter produzido gente comum, apenas um pouco mais criativa que a média. Não sei que experiências inspiraram o colégio brasileiro de que falo. Talvez Summerhill, talvez Makarenko, talvez a própria modernização da sociedade brasileira, seus intelectuais, como Paulo Freire, e seu momento político efervescente.

Cena do filme Sociedade dos Poetas Mortos

A cada e-mail impresso, vamos sendo apresentados aos personagens do colégio, a começar pelo ex-aluno que organiza um segundo reencontro, vinte anos após o último. Vamos conhecendo os professores, inclusive os afastados pela ditadura. Os pais e seus dramas. As histórias típicas de escola, os apelidos. Os impactos daquela experiência na vida dos alunos, os caminhos tradicionais e alternativos que tomaram. Vamos compreendendo os alunos para os quais o colégio foi apenas um lugar rico de aprendizado e os outros para quem foi um marco de vida, como se sempre tivéssemos querido saber o que se passou com nossos colegas.

Vamos, enfim, a cada e-mail lido, nos tornando um dos alunos, nos deparando com parágrafos que poderiam ter sido escritos por nós. Acreditamos no projeto revolucionário dos professores e aprendemos a nos proteger nas passeatas em que íamos com os colegas mais velhos.

É um livro privado. Foram impressos exemplares para os próprios alunos, mas não para serem vendido em livrarias. A ideia deste tipo de publicação nos é um pouco estranha, mas respeitei a proposta sem tirar cópia de uma página sequer. Num curso de graduação, levei o livro na aula e apenas li trechos para explicar o poder da narrativa de trazer para nós a experiência do outro. Em certos momentos, a voz me faltava, eu pedia para um aluno continuar.

Ao final da leitura, outro aluno perguntou um detalhe da escola. Eu disse que não sabia. Ele estranhou: mas eu não havia estudado lá? Não, eu não havia. E a Heloísa? É outra Heloísa; eu sou 10 anos mais nova que esses estudantes. A classe ficou em silêncio, sem entender minha emoção diante daqueles jovens, mais velhos que eu, que eu mal conhecia.

É a narrativa, gente, tentei explicar.

Lá pela metade do livro, um e-mail longo, de um dos meninos, pedindo um basta naquela exaltação toda. Ele havia recebido um prêmio de um general, numa cerimônia pública. Na volta para a escola, o desprezo sem fim de colegas e professores. Uma exclusão que ele não entendia, nem merecia. Uma chaga na luta gloriosa contra a injustiça e o autoritarismo. Revolta, desamparo.

O conjunto dos emails fazia todo o sentido do mundo. As ilusões e decepções, o encantamento e a indiferença. O acolhimento e a exclusão. Fundamentalmente, a liberdade e o dogma. Estavam lá, naquele livro que eu gostaria tanto de compartilhar com vocês, os dilemas daquela geração “filha da revolução” no sentido oposto ao que a música deu à expressão. Somos os filhos do ideal de esquerda acolhido, ou escondido, na sala de aula, enquanto militares ocupavam as ruas.

Essa é nossa herança, com a qual temos que lidar. Em 2014 não conseguimos refletir sobre os 50 anos do golpe de 1964. Estávamos ainda navegando no que restava da bonança econômica, na expectativa da Copa do Mundo e ignorantes sobre as proporções que a Lava Jato tomaria, e a efeméride serviu de celebração do poder vigente. Desde então, a hegemonia de esquerda no debate público e nas universidades foi contestada, o que permite um esforço mais verdadeiro, mais profundo, talvez mais dolorido, para pensar sobre aqueles anos duros e sobre o que restou deles, em particular na cultura e na educação, para todos nós.

Aquela Heloísa, aquela Heloísa era mesmo eu.

Heloisa Pait

Heloisa Pait é socióloga e professora da UNESP.