EducaçãoHistória

Anos de chumbo e ouro?

por Ronai Pires da Rocha

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“Cuidado com os que falam da espiral da História; estão aprontando um bumerangue.”

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Ralph Ellison, O homem invisível

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Detalhe de The Invisibile Man (Reprodução: Penguin Modern Classics)

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Ações transparentes e crenças opacas

“Sou invisível, compreendam, simplesmente porque as pessoas se recusam a me ver”, escreve Ralph Ellison no primeiro parágrafo de Homem Invisível. Ver, acrescenta ele, não é algo apenas físico, porque há em nossos olhos também uma certa disposição da imaginação. É possível imaginar alguma vantagem em não ser visto, mas o custo da invisibilidade é mentalmente desgastante, pois “você passa a duvidar, cada vez mais, da própria existência”. Esse “olhar que não vê” parece também existir na história brasileira recente. Ele diz respeito a certas formas de aceitação e recusa do regime militar que vigorou no Brasil entre 1964 e 1985. A pergunta que eu me faço aqui é sobre a possibilidade de relacionar algumas invisibilidades históricas com certos desconfortos e atritos na cena cultural brasileira recente. Como Ellison, acho que poucas coisas no mundo são mais perigosas do que os sonâmbulos, e uma certa combinação entre sonambulismo e invisibilidade pode estar na raiz do sentimento de compreensão insatisfatória do que se passa entre nós. Para citar ao menos um exemplo, como entender que muita gente vê heroísmo na tortura política praticada naquele período? Não consigo deixar de pensar que há algo que não estamos vendo.

O olhar que não vê e a lembrança que esquece foram tematizados recentemente por Daniel Aarão Reis e Denise Rollemberg, entre outros. Daniel diz que os anos de chumbo precisam ser revisitados, pois também foram anos de ouro; Denise usa a expressão “olhos cegos, ouvidos moucos” para falar sobre os desconhecimentos praticados por todos os lados. Haviam mundos paralelos, diz ela. De um lado, havia o desconhecimento da ditadura e de seus crimes pela maioria da população; de outro, o desconhecimento de que o regime também era aceito. O nome das dinâmicas que surgem dessa combinação entre ações transparentes e crenças opacas é, como se sabe, tragédia. Édipo, ao encontrar e matar um velhote impertinente que atrapalhava seu caminho, não estava matando seu pai. O parricídio aconteceu para ele apenas algum tempo depois. Ao ter que conviver com a memória do fato que ele, pensando fazer uma coisa, fez outra muito diferente, preferiu tornar-se cego e vagar sem rumo. Como recomendam Aarão Reis e Rollemberg, precisamos nos debruçar sobre uma cultura política e histórica que tem dificuldade em ver: “era difícil ver a aceitação do regime, compreendê-lo como produto da sociedade, que não lhe era estranho, que havia ali laços de identidade.”[*] Há uma deriva, um desgaste, nesse lembrar que esquece.

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Memória e história

Não estou pensando na questão da hegemonia, nas situações em que os vencedores deslizam seu léxico para a boca dos vencidos, porque nesse tipo de tragédia de esquecimentos e invisibilidades é difícil haver vencedores. É uma situação na qual todos perdemos, uns mais, outros menos, pois os esquecimentos levam de arrasto vastas porções de vivências que, ao serem varridas para debaixo do tapete, produzem as saliências em que tropeçamos hoje. Estamos mais do tropeçando, por certo, e continuaremos assim, enquanto seguirmos pensando que a memória é, principalmente, uma construção social. É correto dizer que a memória é diferente da história. Se a memória não é um conhecimento do passado, tampouco parece ser apenas uma reconstrução. Acima de tudo, como lembram os velhos filósofos, ela é uma complexa e operosa faculdade da alma, ligada afetivamente à preservação de nossa identidade pessoal e coletiva. É apenas trivial que aquilo que somos depende daquilo que lembramos e que as lembranças que temos estão sujeitas aos mais variados tipos de reforços, recortes e omissões. A memória, pessoal e social, convive naturalmente com os esquecimentos e com o trabalho da fantasia, pois não é possível lembrar de tudo, e há emoções e dores que tentamos deixar quietas em um canto.

A história, por outro lado, é algo que por vezes queremos fazer, por vezes dizemos sofrer, mas que, enquanto escrita, é um exercício que deve seguir regras de responsabilidade intelectual. Quando contamos uma história estamos sujeitos ao contraditório, a perguntas pelas fontes e evidências, pelas formas de investigação e interpretação que usamos. A história, enquanto escrita e disciplina acadêmica, traz consigo uma obrigação de objetividade diferente daquela da memória, onde a perspectiva é a de primeira pessoa, singular ou plural: eu me lembro, nós nos lembramos. A memória pessoal e a história são fontes de conhecimento, mas há uma diferença: escrever história é um trabalho sujeito a regras, ao passo que a memória é aquela que a gente tem.  Ao lembrar essa assimetria não quero dizer que o campo da memória é o da simples expressão, como se ela fosse um sentimento mais complexo do que a saudade. A memória ergue, ao seu modo, uma pretensão de verdade e conhecimento cujo desrespeito paga um preço. O que podemos fazer diante da lembrança de fatos densos, custosos, constrangedores, que nos deixam vincos, marcas, que nos vergam e abalam? Há vivências pelas quais somos responsáveis, outras simplesmente nos aconteceram em meio a crenças opacas, como aquelas que armaram a mão de Édipo contra um velho impertinente. Há vivências que se parecem a uma névoa por onde caminhamos sem ver bem para onde vamos. E diante das coisas que, por assim dizer, aconteceram com uma certa permissão da gente, como fazer para acomodá-las na memória? Como podemos esquecer as coisas que fizemos, por assim dizer, apenas com uma reflexão mediana ou mesmo irrefletidamente? Como podemos esquecer aquilo que apenas aconteceu, por vezes simplesmente, por vezes tragicamente?

A minha dificuldade com a ideia da memória como construção tem a ver com o fato de que ela pode ser exercitada até um certo pequeno ponto, e o mesmo se passa com nossos corpos. Tanto faz que seja memória pessoal ou social, não mandamos nela à vontade. Vamos ficando, dia a dia, mais flácidos, de corpo e memória, por mais que nos esforcemos em contrário. Por mais que não queiramos, há sempre aquele momento no qual pensamos no que não gostaríamos de ter pensado, no qual lembramos do que seria melhor esquecer. Nesses momentos surge uma oportunidade de humildade, pois nos damos conta que não podemos decidir completamente o quê vamos lembrar, esquecer e pensar. Felizmente, isso dura pouco tempo. Sacudimos a cabeça, recobramos o sentido do ambiente, desviamos as memórias e os pensamentos constrangedores; nos concentramos em outras coisas, não tocamos mais nos temas perturbadores, desviamos nossos pensamentos daquilo, falamos sobre outras coisas, para nos distrair, para esquecer; mas aquilo fica lá, num canto, sob um pequeno tapete, quieto como uma cobra que hiberna.

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As “antinomias democráticas”

Lembrei, acima, a questão da complacência diante da tortura. Um outro exemplo é a questão do apreço pela democracia representativa. Tivemos sempre e regularmente um bom apreço por ela? Nos anos 1950, Álvaro Vieira Pinto, à frente do poderoso Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB) dizia haver um paradoxo no Brasil. Éramos constituídos por “grandes massas”, “ignorantes” e “emudecidas”, que faziam pressão para melhorar o padrão de vida e eram urgentes as medidas para incorporar essas massas em padrões civilizatórios adequados. Mas, perguntava Vieira Pinto, como é possível promover o desenvolvimento inclusivo de pessoas que não possuíam uma clara consciência desse processo? Era esse, nas palavras da época, o paradoxo da democracia, uma “antinomia democrática”, que pode ser assim reformulada: cabe ao poder público planejar o desenvolvimento, mas como é possível fazer isso sem o pleno consentimento das massas?  O desenvolvimento poderia, por assim dizer, ser imposto?

Eu não vou discutir o diagnóstico de Vieira Pinto sobre a situação de ignorância e mutismo das massas. Esse diagnóstico pode ser encontrado com facilidade na literatura social dos anos 1950, começando em Fernando de Azevedo e terminando em Paulo Freire. O que eu quero destacar nesse é que, apesar de tudo que se possa dizer sobre o dirigismo vigente na época, havia ali algum apreço pelos valores da democracia representativa. Por exemplo, no primeiro livro de Paulo Freire, Educação e Atualidade Brasileira, de 1959, há uma defesa da democracia, clara e insistente.  A palavra “democracia” é usada ali, em sentido positivo, 270 vezes. Naquela época, Paulo Freire estava sob a influência do grupo do ISEB, e essa situação perdurou até seu livro, Educação como prática de liberdade, de 1965, onde a mesma palavra foi usada uma centena de vezes, com sentido positivo. Tudo mudou na Pedagogia do Oprimido, onde a expressão “democracia” foi usada apenas uma vez, para dizer que “falar, por exemplo, em democracia e silenciar o povo é uma farsa.”  Na Pedagogia ele abandona a teoria desenvolvimentista do ISEB, em favor de uma visão da transformação social a partir dos conceitos de “processo revolucionário como ação cultural dialógica”, que “se prolonga com ‘revolução cultural”, com a chegada ao poder”. A valorização da democracia reapareceu na obra dele apenas muitos anos depois, em livros como Pedagogia da Esperança, em 1992, mas sem uma revisão do pacote vanguardista dos anos 1970. O livro era uma revisitação à Pedagogia do Oprimido, o Muro já havia caído, e o maoísmo rampante e central da Pedagogia do Oprimido foi esquecido.

Outro exemplo dos baixos e altos da valorização da democracia é o texto de Carlos Nelson Coutinho (1943-2012), “A Democracia como Valor Universal”, de 1979, no qual ele investe contra uma tendência dominante nas correntes de esquerda que se firmaram no Brasil a partir dos anos 1960, que concediam à democracia apenas uma importância estratégica, marginal. Nas palavras dele, havia “correntes e personalidades que revelam ter da democracia uma visão estreita, instrumental, puramente tática; segundo tal visão, a democracia política — embora útil à luta das massas populares por sua organização e em defesa dos seus interesses econômico-corporativos — não seria mais, em última instância e por sua própria natureza, do que uma nova forma de dominação da burguesia […].” O texto de Coutinho é, por assim, dizer, uma antecipação daquilo que na época chamou-se de “abertura política”, e, lido hoje, continua sendo uma espécie de programa a ser cumprido. Se a democracia desmaiar em nossos braços, não podemos dizer, penso eu, que isso aconteceu apesar da existência de uma forte tradição de apoio a ela.

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Efter badet, escultura em Estocolmo: Paulo Freire, com Elise Ottesen-Jensen, Sara Lidman, Mao Tse-Tung, Angela Davis, Georg Borgström e Pablo Neruda

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Chumbo e ouro

Houve ouro nas colinas da ditatura civil-militar? O tema é complicado e vou abordá-lo muito parcialmente, por meio de uma distinção entre três etapas na história da pesquisa e do ensino no Brasil.

A primeira etapa começa nos anos cinquenta, mais precisamente em 1951, e vem até 1964. O que caracteriza esse período é, entre outros aspectos, o surgimento da CAPES, que simboliza a preocupação com a formação de quadros no ensino superior. A CAPES surgiu em 1951, e foi dirigida até 1964, por Anísio Teixeira. Ela é, em certo sentido, uma realização isebiana. Entre 1951 e 1964 alcançamos a modesta quantia de 20 universidades federais, muitas delas foram no governo Kubistchek. Para os efeitos que me interessam aqui, o traço importante desse período é a inexistência de programas de pós-graduação no Brasil, e foi para corrigir essa lacuna que a CAPES surgiu em 1951, ainda em formato de “campanha”.

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Primeira reunião do Conselho Deliberativo da CAPES (Reprodução: Acervo CAPES)

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A segunda etapa acontece no período entre 1964 e 1985, que corresponde à ditadura civil-militar. As bases efetivas para a pós-graduação no Brasil foram lançadas nesse período, pois a CAPES não apenas foi mantida pela ditadura, mas passou a ser cada vez mais importante, já que nesse período ela assumiu o papel de responsável pelo Plano Nacional de Pós-Graduação. Entre 1964 e 1985, foram criadas 16 universidades federais. Há dois fatos importantes nesse período. O primeiro é o surgimento dos programas de mestrado e doutorado, especialmente a partir da segunda metade nos anos 1970. O segundo é a ampliação do regime de tempo integral e dedicação exclusiva nas universidades federais.

Da metade dos anos 1980, até hoje, estamos em uma terceira fase, bastante difícil de caracterizar. Houve uma expansão universitária, tanto nos governos FHC e nos Governos Lula, com a criação de aproximadamente mais 21 universidades, mas não houve uma alteração substantiva nos regimes de trabalho e no ritmo de expansão dos cursos de pós-graduação, pois, nesses aspectos, o sistema estava consolidado desde o final dos anos 1970. As bases do sistema de universidades federais que temos hoje, incluindo a universalização do regime de trabalho docente em tempo integral e dedicação exclusiva foram criadas durante a ditadura. Com essa expressão, “bases do sistema”, significo coisas como a consolidação dos departamentos e dos centros de ensino (com o fim da cátedra e das faculdades), do regime de trabalho de quarenta horas semanais com dedicação exclusiva e a criação do ciclo completo de formação, com a graduação, o mestrado e o doutorado. Isso significa que em 1985 o sistema universitário federal já possuía a maior parte da estrutura que tem até hoje. Deixo de fora dessa discussão o surgimento de outras instituições criadas nesse período e que estão presentes até hoje: Finep, Inpi, Embrapa, Inmetro, etc. Arrisco dizer que temos aqui uma das fontes de certas tensões e desconfortos atuais, especialmente nos ambientes acadêmicos, na medida da insistência em vincular os militares apenas ao chumbo e à tortura.

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Andando de banda

Eu sou levado a pensar isso a partir de algumas situações que lembro aqui. A primeira delas é que, passados mais de trinta anos do fim regime militar, as universidades mantiveram o mesmo sistema de organização acadêmica criado pela ditadura: departamentos e centros de ensino, fim do sistema seriado na graduação, manutenção do regime de créditos semestrais, fim das turmas e das cátedras, etc. Como isso deve ser visto? As alternativas de visão são poucas. Seria uma espécie de reconhecimento tardio do acerto da reforma universitária, inicialmente condenada por nós? Seria uma inércia generalizada, difusa e confortável?  Uma outra situação diz respeito às dimensões que o sistema assumiu. A profissionalização do ensino superior conduzida nesse período levou o Brasil a uma condição única: temos hoje o maior complexo de ensino e pesquisa da América Latina, em termos de carreiras, salários, instalações, processos de formação, apoio à pesquisa e, claramente, em quantidade de profissionais envolvidos. Esse universo foi criado durante a ditadura, fato que nos obrigava, em certos momentos, a reconhecer, em voz baixa, que nossos militares não haviam apenas cometido atrocidades, como os da Argentina e do Chile. Mas essas eram tensões e dificuldades sobre as quais não se falava. Pouco se fala, até hoje, da continuidade, por certo com trancos e barrancos, de um sistema que, tendo sido iniciado no governo Kubitscheck, foi consolidado durante a ditadura civil-militar e dura até hoje.

Quando e quanto passamos essas situações a limpo? E qual é o custo desses esquecimentos e invisibilidades? Eu liguei esses temas ao Homem Invisível porque o livro descreve muitas formas de invisibilidade, para além daquela do narrador.  Seus amigos de Confraria, por exemplo, são descritos como incapazes de ver a realidade: “não eram capazes de enxergar nada, nem as cores, nem as pessoas.”. No final da novela o narrador conclui que na vida, na história, na memória, não temos sucesso apenas subindo, mas também descendo, recuando e avançando, “andando de banda feito caranguejo ou para a frente, ou mesmo em círculos, cruzando, aqui e ali, com os sonhos antigos, talvez tudo isso ao mesmo tempo, até.” O passo final inclui voltar as costas para os irmãos que escreviam história sempre com agá maiúsculo, e não admitiam a possibilidade de que ela pudesse ser, não uma ciência de laboratório, mas uma jogadora inveterada. Parece ser uma discussão antiga — Ellison escreveu o livro em 1947 —, mas acho que a lição continua velha e boa: às vezes, para ir para a frente e subir, é preciso descer, voltar, andar de banda, como caranguejo. Ou então, tragédia anunciada e bumerangue no ar.

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Barra da Tijuca, 1974 (Reprodução)

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Nota:

[*] Ver, por exemplo, o ensaio de Denise Rollemberg, “Esquecimento das memórias”, no volume organizado por João Roberto Martins Filho, O Golpe de 1964 e o Regime Militar. Ed. Edufscar, São Carlos, 2014.

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Ronai Pires da Rocha

Ronai Rocha é doutor em Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e professor da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), onde foi pró-reitor de graduação. Desde o início de sua vida profissional pesquisou temas ligados à educação.