História

Rui Barbosa e a “soberania das feras”

por Cláudio Ribeiro

No dia 12 de novembro de 1897, o Senado Federal brasileiro recebia da Câmara dos Deputados, para deliberação, um projeto da Presidência da República que colocava em Estado de Sítio a capital do país, Rio de Janeiro, e a comarca de Niterói.

O motivo? No dia 5 do mesmo mês, o anspeçada — antiga graduação dos praças do Exército — Marcellino Bispo de Mello, contando apenas 23 anos, tentou assassinar com um tiro de garrucha o então presidente da República, Prudente de Morais. No entanto, o tiro falhou. Em defesa do presidente, o marechal Carlos Machado de Bittencourt, Ministro da Guerra, e o coronel Mendes de Moraes, Chefe da Casa Militar, atracaram-se com Marcellino, que lhes desferiu alguns golpes de punhal. O coronel sobreviveu aos ferimentos. Não teve a mesma sorte o marechal.

Tudo isto se deu em uma ocasião “festiva”: o momento em que o presidente e seus ministros recebiam, no Arsenal de Guerra (hoje, Museu Histórico Nacional – MHN), a última expedição do Exército que regressava da Bahia, após a destruição do Arraial de Canudos.

Este episódio, sem dúvida, foi um dos mais críticos da história da República brasileira. Sobretudo se considerarmos que o ato do anspeçada era produto de uma conspiração que envolvia desde o jornalista Diocleciano Martyr, dono de O Jacobino — um dos principais veículos propagadores do “florianismo”, à época —, até o vice-presidente da República, o baiano Manuel Victorino Pereira.[1]

(Se os ingleses têm o seu 5 de novembro para lembrar, nós também temos o nosso — ainda que sem barris de pólvora.)

Pois bem, um dos senadores presentes na sessão do dia 12 era Rui Barbosa. O senador pela Bahia deixou claro, em seu discurso, que o ocorrido não passava “da expressão momentânea de ações mais graves, de circunstâncias mais sérias, de um estado social profundo e generalizado, a que é preciso urgentemente prover.”[2]

Rui Barbosa referia-se ao clima de intensa polarização entre os republicanos radicais, que orbitavam o espectro do “Marechal de Ferro” Floriano Peixoto (falecido em 1895), e os monarquistas inflexíveis, saudosos do trono e da coroa.  Polarização esta que se acentuou após a Segunda Revolta da Armada e o início da Guerra de Canudos. É importante recordar que entre os monarquistas estava o coronel Gentil de Castro, proprietário dos periódicos Gazeta da Tarde e Gazeta da Liberdade, e acusado pelos florianistas de conivência com a “tentativa de restauração da monarquia”, empreendida pelos sertanejos liderados por Antônio Conselheiro.

No dia 4 de março daquele mesmo ano, um dos oficiais do Exército de maior prestígio entre os florianistas, coronel Moreira César, foi morto em combate pelos jagunços do Conselheiro. No dia 7 do mesmo mês, turbas de republicanos radicais invadiram as redações dos dois jornais de Gentil de Castro, destruíram equipamentos e atearam fogo em tudo. O coronel monarquista, que se achava em Petrópolis na ocasião, decidiu regressar à capital, no dia seguinte — apesar das advertências dos amigos. Enquanto voltava de trem para o Rio, acompanhado do Conde Afonso Celso, Gentil de Castro foi abordado por uma horda furiosa e brutalmente assassinado.

Se Rui Barbosa, no discurso do dia 12, falava em “um estado social profundo e generalizado” tinha em sua memória, por certo, o assassinato do coronel monarquista, visto que falou a respeito, em conferência proferida em sua terra natal, à época.[3] Profetizando o que poderia estar por vir, o senador dissera: “A fera não se desafaz de devorar, devorando. Nas presas menores se lhe aguça o apetite das maiores.” A “presa menor”, Gentil de Castro; a “maior”, o Sr. Prudente de Morais. Para os florianistas, o Exército estava sendo “imolado” no Arraial do Conselheiro. Cumpria então “solidar com cimento vermelho do Terror as instituições vacilantes. Urgia extrair quanto antes, cirurgicamente, as raízes do monarquismo. O sangue vertido no Rio de Janeiro afogaria a semente de Canudos.”

Lembremo-nos de que Euclides da Cunha, logo no início da parte de Os Sertões em que trata da “Expedição Moreira César”, traça uma precisa e incontornável descrição dessa atmosfera de “instituições vacilantes” e de sede de sangue que grassava no Brasil de 1897.

E o sangue do próprio Rui Barbosa também foi reclamado pelos radicais. Não porque estivesse compromissado com os monarquistas, mas por ter ousado defender em juízo alguns destes, quando do fim da Segunda Revolta da Armada. Disse Rui, na mesma conferência mencionada: “‘Assassinado o Rui Barbosa, por quê?’, perguntava o marechal Almeida Barreto a um alto funcionário ministerial — ‘Porque foi advogado dos revoltosos.’ Eis aí. Sou o inimigo mais fatal desta democracia porque tenho sido o patrono infatigável dos perseguidos. Esta maneira de acusar-me, bem vedes, fulmina a república, e não a mim, identificando a república à perseguição”.

Mas o que repugnava mais a Rui Barbosa não era propriamente a brutalidade, mas “o rasteiro dos sofismas, o deslavado dos subterfúgios, o grotesco dos pretextos, com que os seus cortesãos lhe infernizam a insânia”, insânia esta que “se desmanda na soberania das feras, quaerens quem devoret”.

O pecado de Rui? Prezar pela prudência, pela razoabilidade, pela ponderação. Era um perfeito “isentão”, diriam as “feras” de hoje.

Passados 120 anos, um novo clima de insânia parece grassar pelo Brasil. A polarização se acentua. De uma parte, há aqueles que procuram justificar por que gritam “Golpe!” e tentam impedir que um filme “de direita” seja exibido em uma universidade federal. De outra parte, aqueles que gritam por “Intervenção Militar” e impedem que se realize um evento acadêmico sobre os 100 anos da Revolução Russa.

Há poucos anos, a entrada da sede de uma revista de ampla circulação nacional foi depredada após a divulgação, em reportagem de capa, dos indícios de envolvimento dos ex-presidentes Lula e Dilma com esquemas de corrupção. Não me admiraria se fato semelhante tivesse ocorrido por conta da divulgação que esta mesma revista fez da capa com a imagem do presidenciável Jair Bolsonaro, apontando-o como uma “ameaça”. Felizmente, não ocorreu.

Não tivemos, tampouco, uma Revolta da Armada nem uma guerra nos sertões, nos últimos anos. Mas uma crise institucional e representativa inaudita nos assalta.

O perigo é que a ambiência da crise faz com que o comportamento sectário obscureça o que há de civilizado em nós, colocando-nos à caça de alguém para “devorar”, como disse Rui, citando a Vulgata (I Pedro, 5, 8): … quaerens quem devoret.

Será que continuamos a querer “solidar com cimento vermelho do Terror as instituições vacilantes”?

NOTAS

[1] Detalhes sobre este acontecimento podem ser obtidos em alguns livros da historiografia sobre o período. Mas a principal fonte a respeito é o relatório do delegado que investigou o caso, Dr. Vicente Neiva: Attentado de Cinco de Novembro. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1898.
[2] Coleção Documentos Parlamentares. Estado de Sítio (Volume III) – Attentado de 5 de Novembro (1897-1898). Rio de Janeiro: Typ. do Jornal do Commercio, de Rodrigues & C., p. 77.

[3] A conferência consta no volume O Partido Republicano Conservador – Documentos de uma Tentativa Baldada. Rio de janeiro: Casa Mont’ Alverne. Rua do Ouvidor 52, 1897.

Cláudio Ribeiro

Cláudio Ribeiro é mestre em História pela Universidade Federal de Goiás e sócio da Editora Caminhos.