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Safatle sobre Marighella: o megamanual do guerrilheiro urbanóide

por Pedro Santos

Uma marca inconfundível da sociedade brasileira é o desconhecimento profundo do nosso passado político, mesmo o mais recente. Esquecer é um dos esportes nacionais. Por isso, é sempre uma boa notícia quando surge uma biografia competente ou uma coletânea de textos de uma figura política relevante do passado. Esse é o caso de Chamamento ao povo brasileiro, que reúne textos do político e guerrilheiro Carlos Marighella (1911 – 1969). Além de recolocar em circulação a edição de 1994 do livro de Marighella Por que resisti à prisão, incluindo os curiosos e reveladores prefácios de Antonio Candido e Jorge Amado, Chamamento também traz alguns poemas e textos políticos menores do “inimigo n. 1 da ditadura”. Perspicuamente ausente, porém, está o seu “best-seller”, o Manual do guerrilheiro urbano que, segundo o organizador do volume, “será editado em outra oportunidade”. Nenhuma explicação é dada para essa estranha omissão de um dos textos historicamente mais significativos do autor, texto esse que se encontra, ademais, fora de catálogo – se é que chegou a ter uma edição oficial no Brasil. 

No entanto, muito pior do que a decisão equivocada de não incluir o Manual é o escandaloso prefácio do organizador do volume, Vladimir Safatle. Apesar de curto, o prefácio de Safatle é de uma moralidade tão dúbia que lança uma longa sombra sobre todo o livro. Não me parece desejável que um texto desse quilate passe sem uma crítica firme, ainda mais por se tratar daquele que é talvez o “intelectual engajado” de maior destaque no Brasil atualmente, verdadeiro sucessor de Marilena Chauí no glorioso cargo de guru de nossa esquerda.

Safatle inicia seu prefácio em tom triunfal, anunciando que o volume é um ato de “justiça histórica” que visa dar “lugar efetivo no interior da história brasileira” a Marighella. Os historiadores poderão se espantar: não teria sido a atuação política de Marighella, ao longo de décadas, que lhe conferiu um lugar efetivo na história do Brasil? A mãozinha de Safatle seria mesmo necessária? Talvez na cabeça do organizador Marighella seja uma figura obscura, apagada, de quem ninguém mais se lembra, e o livro estaria, então, corrigindo esse esquecimento indevido. Mas será realmente que passaram-lhe desapercebidos Batismo de sangue: Guerrilha e Morte de Carlos Marighela (1982) de Frei Betto, Quatro Baianos Porretas: Castro Alves, Marighella, Glauber Rocha e Milton Santos (2005) de Silvio Tendler, Marighella (2012) de Mario Magalhães e Marighella de Inimigo Público a Herói Nacional (2015) de Wagner Soares dos Santos, entre outros? Será que ele não sabe que um bio-pic de Marighella dirigido por Wagner Moura e estrelado por Seu Jorge está para estrear no Brasil? Pouco provável. O que Safatle quer realmente dizer é que o livro pretende reabilitar a figura de Marighella, que não só é “demonizado pela direita” como, na sua visão, não é suficientemente admirado pela esquerda, que vê na sua opção pela “luta armada” um “erro” e um “fracasso”. Safatle exige admiração total para o grande líder. Aqui, porém, está faltando, como se diz, combinar com os russos. Pois o livro dá aos leitores de hoje fácil acesso às ideias de Marighella; mas se estes, ao fim e ao cabo, terão dele a opinião que Safatle deseja tão ardentemente que eles tenham é algo que está, felizmente, eu diria, fora da sua esfera de controle.

Em seguida, Safatle inicia sua longa série de afrontas à sensibilidade moral e à inteligência do leitor. A luta armada do fim dos anos 60 “materializava”, segundo ele, o colapso da “política de conciliação” do período 1946-1964. E nós, hoje, nos encontramos diante de uma “repetição” do mesmo colapso, diante “dos mesmos atores contra os quais Marighella lutava”. A tese implícita aqui é inequívoca: nós vivemos hoje uma ditadura, ou ao menos a iminência de uma. Bem, que nós vivamos atualmente sob ditadura é um delírio digno dos mais antológicos discursos anti-maçônicos de Cabo Daciolo, e não requer comentário. Que haja risco real de golpe é quase tão ridículo quanto. Bolsonaro não tem maioria no Congresso. Com menos de um ano de governo, é forçado a recuar de suas decisões mais ou menos uma vez por semana. Tampouco tem qualquer prestígio nas forças-armadas. Os generais foram aos poucos deixando seu governo, enfastiados com a molecada olavista que cerca o presidente, e somente nesta semana que se encerra parecem ter dado a volta por cima – jogando rigorosamente dentro das regras do jogo democrático nas disputas de poder político. E, de qualquer modo, desde a redemocratização, é inegável que as forças-armadas têm sido basicamente um fator de estabilidade política. Só um tolo que acredite que realmente bastam “um cabo e um soldado” para fechar o Supremo pode achar que há um risco real de golpe de estado no Brasil, hoje. 

Mas a despeito de todos esses fatos óbvios e sem qualquer sinal de constrangimento, prossegue Safatle: “Nesse sentido, o lançamento desta coletânea deve ser compreendido como uma forma explícita de retomar certo horizonte recalcado de reflexões que, talvez seja o caso de dizer com clareza, recupera atualidade inaudita”. Deixemos de lado o oxímoro “recuperar o inaudito”. O que está sendo afirmado aqui? Que reflexões recalcadas são essas que se trata de recuperar? A resposta só pode ser uma, e é assombrosa: Safatle se refere à reflexão sobre a legitimidade da “luta armada” como forma de ação política no Brasil. É essa a reflexão que, hoje, em pleno vigor do estado democrático de direito, num dos nossos mais longos períodos de democracia, ele pensa ter “atualidade inaudita”. Vemos, assim, que o título do volume, Chamamento ao povo brasileiro, tem um duplo sentido: ele não é apenas o nome do opúsculo de Marighella que dá título à coletânea; ele é também o verdadeiro título deste prefácio de Safatle, que não é nada mais, nada menos que um novo chamamento às armas, um chamamento melífluo, decerto, oblíquo, escrito em uspianês, uma repetição como farsa, talvez, do chamamento original de Marighella, mas que está lá para quem quiser ver. ‘Cidadãos, às armas!’ é a frase que persegue como uma sombra os escritos políticos do Lênin do Butantã, mas que não chega nunca a ser pronunciada. 

No parágrafo seguinte, a defesa de Safatle da “luta armada” fica ainda mais explícita. Na escolha dos textos, diz ele, tratou-se de seguir Marighella desde a sua formação “até o acúmulo de análises que levam à consciência do sistema de travas da sociedade brasileira, de sua violência extrema e da necessidade de uma resposta violenta” (grifo meu). Notem que aqui Safatle não está falando de Marighella, mas de si mesmo. As análise não “o levam” (i.e. levam Marighella) à consciência da necessidade de uma resposta violenta, mas simplesmente “levam”. É Safatle quem afirma por si mesmo: as análises levam a tal conclusão. E mesmo que fôssemos caridosos, supondo que, por um lapso, o “o” de “o levam” foi omitido, a situação não se alteraria substancialmente. Pois “ter consciência de” é uma relação de tipo “verídica”. Do fato de que alguém tem consciência de algo, segue-se que este algo é real, assim como do fato de que alguém sabe que tal-e-tal, segue-se é o caso que tal-e-tal. Portanto, se certas considerações levam Marighella à consciência de que uma resposta violenta é necessária, então se segue que uma resposta violente é necessária. Nem tampouco essas análises simplesmente “levavam” à violência como conclusão, elas “levam”, em sentido atemporal, tanto ontem quanto hoje. É verdade, porém, que Safatle não chega a afirmar com todas as letras “A violência é a único opção, hoje”. Essa linguagem propositalmente ambígua, que diz sem nunca dizer, é um velho truque dos políticos de todos os tempos, dos mais covardes especialmente.

Em seguida, Safatle apresenta um breve e tendencioso resumo da situação política do Brasil em 1964 e da posição de Marighella nesse contexto. Aqui começa a se explicitar algo que dificilmente não poderia ser caracterizado como uma grande fraude intelectual do texto. Pois em momento algum Safatle tem a dignidade de apresentar Marighella pelo que ele realmente foi: um revolucionário marxista. A informação não é irrelevante. Os historiadores estimam que as ditaduras marxistas tenham assassinado algo entre 50 e 100 milhões de pessoas, mais do que as duas guerras mundiais juntas, portanto. Mas é claro que isso nunca teria acontecido se o marxismo não tivesse fascinado genuinamente milhões de homens e mulheres honestos mundo afora. O mesmo vale para o nazi-fascismo. O nazismo nunca teria vencido na Alemanha se não tivesse conquistado o “homem comum”, que não era mais perverso e monstruoso do que o homem comum de qualquer outro país. Assim, por mais que a adesão a uma ideologia totalitária e terrorista soe hoje, para muitos de nós, ao menos, como algo incompreensível, é uma obrigação do historiador ou de quem quer que queira apresentar uma figura histórica – como faz Safatle – atribuir aos homens do passado suas verdadeiras crenças e tentar compreender o que os levou a pensar desse modo. E essa obrigação não é menor quando se trata de compreender a vida dos homens que, por um ou outro motivo, nós admiramos. Por exemplo, todos nós admiramos o pintor Pablo Picasso. Muitos de nós nos chocamos ao saber que Picasso era um stalinista convicto; que negou apoio a pintores soviéticos perseguidos; que foi ele o autor do retrato de Stálin que estampou a capa do jornal comunista L’humanité por ocasião da morte do “grande timoneiro”, etc. Mas se se trata de compreender o homem Pablo Picasso, não é possível se furtar a tentar entender como a mesma pessoa pode ter pintado tanto a Guernica quanto o retrato de Stálin. 

A tendência humana para a falsificação histórica é evidente e não é exclusividade de um ou outro espectro ideológico. Talvez nós sejamos especialmente inclinados a idealizar os líderes políticos nos quais depositamos nossas esperanças de progresso social. Mas é chocante o modo como muitos intelectuais brasileiros de esquerda se entregam desavergonhadamente à prática do negacionismo e da falsificação. Em seu prefácio a Por que resisti à prisão, Antonio Candido diz, com candura, que Marighella foi um “grande revolucionário marxista”, mas apenas para acrescentar, em seguida, que ele era um “marxista aberto”, pronto para aceitar a “pluralidade de opiniões, dentro do pressuposto básico da aspiração a uma democracia popular” (grifo meu). Ora, chamar as ditaduras comunistas de “democracias populares” é um dos melhores exemplos da estratégia humpty-dumpty de redefinir os conceitos ao seu bel-prazer para mascarar fatos desagradáveis. Desde a Grécia Antiga, uma democracia é um regime onde os líderes são periodicamente eleitos pelos cidadãos. O opúsculo Chamamento ao povo brasileiro se encerra com uma lista de 16 medidas a serem adotadas “de forma inapelável, com a vitória da revolução”. Há confiscos, estatizações e execuções. A convocação de eleições para Presidente da República não se encontra entre as medidas. Marighella não era um democrata no sentido normal do termo. Isso é perfeitamente óbvio e nem precisaria ser dito, não fosse o fato de tantos esquerdistas insistirem em mascarar o fato.   

Já Safatle não tem nem mesmo coragem de dizer claramente que Marighella era um revolucionário marxista; não tem coragem de chamar seu herói pelo nome. Para Safatle, ele é alguém que se decepcionou com a possibilidade de “transformações efetivas” no interior do “espectro populista”. Ora, transformações efetivas é o que todo político busca desde a aurora dos tempos. De que transformações estamos falando aqui? Em que direção? A luta armada, nos diz ele, foi a sua opção apenas quando se esgotaram as outras “vias disponíveis”. Vias disponíveis para quê? O que pretendia ele? Safatle não tem coragem de dizer o óbvio: Marighella queria ver implantada no Brasil uma ditadura comunista, como havia então na União Soviética, na China e em outras partes do mundo. Como o mais cínico líder de facção partidária, o professor titular da USP finge não entender a diferença entre lutar contra um regime e lutar por um regime. Sim, Marighella lutava contra a ditadura militar. Sobral Pinto, Tancredo Neves, Juscelino Kubitschek e Ulisses Guimarães também. Mas por que regime lutava ele? Pela República? Pela democracia? É evidente que não. Qualquer análise que não reconheça claramente esse ponto, seja qual for a posição que se adote com relação ao valor da democracia, não passa de uma falsificação histórica grosseira.  Ao não reconhecer essa diferença, Safatle cospe na cara de todos aqueles que lutam, hoje, contra alguma forma de tirania em seus países e sonham em ter para si o que nós temos no Brasil: eleições periódicas livres para presidente. 

Para Safatle, a “luta armada” no Brasil foi o “exercício legítimo do direito natural de resistir à tirania”. Mas há aqui, mais uma vez, uma ambiguidade. Um homem pode resistir a, digamos, ir ao cardiologista em dois sentidos: ele pode resistir a ver um cardiologista qualquer, ou ele pode resistir a ver o Dr. X, por talvez preferir o Dr. Y. Do mesmo modo, há um sentido claro em que o homem que luta para substituir uma tirania por outra não está resistindo à tirania e sim resistindo àquela tirania, ou a uma tirania de um tipo específico, por preferir uma outra, talvez uma na qual seja o seu grupo que tiraniza. 

E nem mesmo se pode dizer que a luta armada no Brasil tenha fracassado, nos diz o aluno de Alain Badiou. Isso seria “impensável e imoral”! Pois “processos históricos parecem fracassados até que são recuperados no interior de outras dinâmicas”. A Comuna de Paris, nos diz Safatle, “parecia um fracasso até se reencarnar na Revolução Russa”. Aqui vemos outra aplicação do método humpty-dumpty. Safatle está implicitamente definindo um novo conceito de fracasso: um movimento político fracassa* se, e somente se, ele fracassa (no sentido normal de não atingir seus objetivos) e, além disso, não serve de inspiração para nenhum movimento posterior bem-sucedido com objetivos similares. Nesse sentido, a Comuna de Paris não fracassou*, pois ela serviu de inspiração pra o golpe Bolchevique de Outubro, que foi bem-sucedido. Ora, Safatle, eu suponho, não tem bola de cristal. Logo, ele não tem como saber se a luta armada brasileira vai ou não fracassar*. Mas ele tem esperança de que ela não fracasse*. Ou seja, ele tem esperança de que ela sirva de inspiração para (se “reencarne em”) um novo movimento marxista de luta armada. A morbidez de um tal desejo é estarrecedora. Que uma tal sede de sangue encontre algum eco entre a intelectualidade brasileira é um sinal claro da desorientação moral que nos aflige. O proto-guerrilheiro de Higienópolis pede o sangue dos burgueses; o proto-fascista do Morumbi pede o sangue dos favelados. O Brasil precisa aprender a não dar ouvidos nem a um, nem ao outro, navegando entre a Scylla e a Charibdes do retardo nacional, sem medo de ser “atropelado por um trator”, como profetizou Safatle numa palestra recente. 

Se Chamamento fosse uma fotografia histórica, ela seria uma daquelas fotos soviéticas em que uma figura caída em desgraça era apagada, ou “cancelada”, para usar o termo da moda. Essa figura, no caso em questão, é o Manual do guerrilheiro urbano. Para encerrar, passemos a palavra ao autor do manual para que o leitor veja claramente o que é um revolucionário marxista que “não teme dizer seu nome”.

“Antes de qualquer ação, o guerrilheiro urbano tem que pensar nos métodos e no pessoal disponível para realizar a ação. As operações e ações que demanda (sic.) a preparação técnica do guerrilheiro urbano não podem ser executadas por alguém que carece de destrezas técnicas. Com estas precauções, os modelos de ação que o guerrilheiro urbano pode realizar são os seguintes: 

a. assaltos 

b. invasões 

c. ocupações 

d. emboscadas 

e. táticas de rua 

f. greves e interrupções de trabalho 

g. deserções, desvios, tomas, expropriações de armas, munições e explosivos 

h. libertação de prisioneiros 

i. execuções 

j. sequestros 

l. sabotagem 

m. terrorismo 

n. propaganda armada 

o. guerra de nervos” 

Como, exatamente, essa agenda faria parte de “certo horizonte recalcado de reflexões que, talvez seja o caso de dizer com clareza, recupera atualidade inaudita”? Safatle ainda deve dizer com todas as letras o nome da esquerda a que pertence. 

Pedro Santos é Doutor em Filosofia pelo King’s College London e professor de Filosofia da Unifesp.