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Só sei que nada sei?

por Desidério Murcho

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Imaginemo-nos em 399 a.C. Vive-se na Grécia um período de inovação científica e cultural. Heródoto (c. 484–420 a.C.) introduzira na Europa, havia menos de um século, a história científica — isto é, o relato e explicação de acontecimentos do passado recorrendo a documentos e fontes fidedignas, procurando separar o mito do facto. O teatro, a escultura e a arquitetura atingem grande sofisticação e originalidade.

Um século mais tarde, ocorrerá um dos maiores feitos intelectuais dos muitos que marcaram a Grécia da Antiguidade: a sistematização científica da geometria levada a cabo por Euclides, por volta de 300 a.C. Claro que alguns conhecimentos práticos de geometria eram desde há muito usados pelos egípcios — de quem os gregos receberam a disciplina, segundo Heródoto — mas esta não fora objeto de uma sistematização com o grau de generalidade e precisão presentes no trabalho de Euclides. Poucas décadas depois, com base na geometria e muito engenho, Eratóstenes (c. 276–194) calculou a dimensão da Terra, com surpreendente precisão.

Infelizmente, nem tudo é um mar de rosas. A mentalidade grega é imperialista e guerreira, o que dá origem a guerras constantes com os seus vizinhos — os bárbaros, cujo termo grego original significa literalmente “que balbucia”, ou seja, que não fala grego. Como os norte-americanos, muitos séculos depois, a arrogância grega conduzirá a aventuras militares desastrosas. Mesmo depois de se tornarem uma mera província do império romano, persistia a arrogância grega, a que os romanos achavam graça, como talvez os chineses um dia acharão graça à arrogância norte-americana.

Além disso, a vida dos intelectuais não é isenta de perigos. Sócrates é acusado de impiedade e de corromper os jovens, sendo condenado à morte em 399 a.C., com setenta anos, por uma maioria não muito significativa dos 501 concidadãos que o julgaram. Este género de perseguição não é a primeira, nem será a última: há uma predisposição popular para crer que os filósofos são ateus. Na comédia As Nuvens (423 a.C.), publicada vinte e quatro anos antes da condenação de Sócrates, Aristófanes retrata-o como um ateu que ofende os deuses perscrutando os segredos dos corpos celestes. Cerca de cinquenta anos antes da condenação de Sócrates, Anaxágoras (c. 500–428 a.C.) fora acusado de ateísmo, sendo obrigado a fugir de Atenas, em grande parte por ter ousado declarar que o Sol — o deus Hélio, na religião grega — era uma massa de metal incandescente um tudo-nada maior do que a região do Peloponeso.

Quando uma sacerdotisa do templo de Delfos declara que nenhum ateniense é mais sábio do que Sócrates, este fica perplexo, pois não defende teoria alguma, pelo menos explicitamente, ao contrário de muitos outros filósofos. Não tem uma teoria sobre a natureza última da realidade, como Heraclito (c. 500 a.C.), Parménides (c. 515–445 a.C.) ou os atomistas Leucipo (c. 450–420 a.C.) e Demócrito (c. 460–371 a.C.). Não desenvolveu a geometria nem a matemática, que no seu tempo não se distinguia da filosofia.

De modo que Sócrates parte em busca de outros homens (não lhe ocorreu procurar mulheres!) que sejam mais sábios do que ele, para poder apresentá-los à sacerdotisa como refutação da sua estranha afirmação. Mas não encontra senão homens que se julgam sábios quando, afinal, não o são. Sócrates faz, então, a seguinte reflexão, depois de conversar com um deles:

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       Sou, sem dúvida, mais sábio do que este homem. É muito possível que qualquer um de nós nada saiba de belo nem de bom; mas ele julga que sabe alguma coisa, embora não saiba, ao passo que eu nem sei nem julgo saber. Parece-me, pois, que sou algo mais sábio do que ele, na precisa medida em que não julgo saber aquilo que ignoro. (Apologia, 21d)

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É desta passagem da Apologia que nos chegou a famosa expressão “só sei que nada sei”. No entanto, Sócrates não diz exatamente o que lendariamente lhe é atribuído. Ainda que possa tê-lo dito, não temos disso qualquer prova documental; o que mais se aproxima da lenda são estas palavras da Apologia. Acresce que esta obra é da autoria de Platão (427–347 a.C.), que tinha vinte e oito anos quando Sócrates morreu, e não sabemos até que ponto reproduz aproximadamente o discurso que Sócrates proferiu em sua defesa, aquando da condenação à morte por envenenamento.

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A Morte de Sócrates, por Jacques-Louis David

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Platão escreveu inúmeras obras filosóficas, sob a forma de diálogo, nas quais Sócrates surge como personagem e muitas vezes protagonista. Dessas obras, e de outros relatos, incluindo os de Xenofonte (c. 430–354 a.C.) e de Aristóteles (384–322 a.C.), que nasceu quinze anos depois da morte de Sócrates, é possível ter uma ideia, ainda que não muito precisa, do género de conversas que Sócrates mantinha com os seus concidadãos e também de algumas das suas ideias.

Tanto quanto sabemos, Sócrates abordava na rua as pessoas que professavam saber algo e, fazendo perguntas e levantando dificuldades, fazia-as dar-se conta de que afinal não sabiam o que julgavam saber. Como se vê, ao colocar as nossas crenças em causa com a ajuda do seu génio maligno, mais de dois mil anos depois, Descartes não fará algo incomum em filosofia. Colocar as nossas crenças em causa é recorrente, em filosofia, precisamente porque queremos descobrir a sua justificação última — ou descobrir que não há tal coisa.

Quem defende que as nossas crenças — em qualquer área ou apenas em algumas — não têm justificação adequada tem a designação de “cético”. Este termo é infelizmente ambíguo, hoje em dia.

Originalmente, o termo grego que é a sua raiz significava apenas “investigador”, o que está em harmonia com as ideias defendidas por Pirro (c. 360–272 a.C.), natural da cidade de Élis, o fundador da tradição cética grega. Não temos qualquer obra de Pirro; conhecemos as suas supostas ideias pela obra de Sexto Empírico (c. 150–225), que escreveu quase quatrocentos anos depois dele. Ora, nos textos de Sexto, surge muitas vezes a ideia de que os céticos, ao contrário dos filósofos que julgam ter já encontrado a verdade, estão ainda procurando, investigando. Daí o significado do termo grego original.

Contudo, o termo “ceticismo” passou depois a ser usado não no sentido de alguém que investiga, mas antes de alguém que paralisa a investigação precisamente na medida em que põe tudo em causa — quer numa dada área apenas, quer em todas. O termo “ceticismo” passou assim, em filosofia, a significar a paralisia da investigação, e não a atitude de investigar.

Não sabemos bem até que ponto Sócrates era um cético. Platão não parece tê-lo sido, e Aristóteles certamente não o era. Mas a escola de filosofia fundada por Platão, conhecida como “Academia” — daí o termo ainda hoje usado para falar de universidades — acabou por adotar o ceticismo, para melhor refletir a suposta atitude original de Sócrates. De modo que “académico” foi, durante muito tempo, sinónimo de “cético” — significado que voltou a perder mais tarde. O livro Contra os Académicos, do teólogo númida Agostinho de Hipona (354–430), é precisamente uma discussão do ceticismo; e o filósofo e historiador escocês David Hume (1711–1776) deu à Secção XII da sua Investigação sobre o Entendimento Humano o título “Da Filosofia Académica ou Cética”, indicando a palavra “ou” duas designações alternativas da mesma coisa.

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David Hume por Allan Ramsay, 1766

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O termo “cético” é hoje usado em alguns contextos no sentido grego original de alguém que está investigando, procurando provas e rejeitando ideias inadequadamente justificadas ou sem justificação. Isto provoca alguma confusão porque, em filosofia, desde há séculos que se usa o termo no sentido de alguém que paralisa a investigação e rejeita o empreendimento humano da teorização cuidadosa e sistemática.

Voltando à afirmação atribuída a Sócrates, repare-se que há pelo menos duas perguntas cruciais a fazer perante alguém que afirme só saber que nada sabe. A primeira diz respeito à sua coerência. Não será incoerente afirmar que sabe que nada sabe? Afinal, sabe algo ou não?

A segunda diz respeito não à sua coerência mas à sua possibilidade. Será possível alguém saber apenas que nada sabe? Claro que se for incoerente saber que nada se sabe, será também impossível saber apenas que nada se sabe. Mas mesmo que seja coerente afirmar tal coisa, poderá ser impossível saber apenas que nada se sabe.

É uma boa ideia começar por clarificar o conceito de conhecimento, ou saber. Quem o fez pela primeira vez foi, precisamente, Platão, na obra Teeteto.

É razoável defender que há três condições necessárias para que algo seja conhecimento. Contudo, no Teeteto, Platão rejeita que estas sejam também condições suficientes, defendendo que há casos em que as três condições se verificam mas não há conhecimento.

Em todo o caso, mesmo que as três condições seguintes não sejam suficientes para que haja conhecimento, é razoável pensar que são necessárias. Essas condições são as seguintes: se algo for conhecimento, então (1) é uma crença, (2) essa crença é verdadeira, e (3) essa crença verdadeira está justificada. Mas o que quer isto dizer?

Comecemos pelo conceito de crença. Não se trata aqui especificamente das crenças religiosas, mas de qualquer crença. Acreditamos que a Terra se move, que 2 é um número par, e que às vezes chove. Uma crença, no sentido que nos interessa aqui, é qualquer representação discursiva que se faz seja do que for. É imperativo não confundir o conceito de crença com o conceito de mera crença, sem qualquer justificação apropriada. As crenças mais bem justificadas são ainda crenças.

Considere agora o leitor a sua crença de que Sócrates era ateniense. Esta crença talvez seja verdadeira, ou talvez seja falsa. Imaginemos que é falsa. Nesse caso, Sócrates não era ateniense e, por isso mesmo, o leitor não pode saber que ele era ateniense — pode é crer erradamente que o sabe.

Imaginemos agora que a crença é verdadeira. Nesse caso, Sócrates era realmente ateniense. Mas isso não basta para que o leitor saiba que Sócrates era ateniense; pois se a sua crença for verdadeira por mero acaso, como quem acerta na lotaria, não é razoável dizer que o leitor sabia genuinamente que Sócrates era ateniense: apenas tinha essa convicção, algo ao acaso, e por sorte acertou na verdade.

Assim, para que a sua crença de que Sócrates era ateniense constitua conhecimento é preciso que, além de ser verdadeira, esteja justificada. Neste caso, a justificação é que o leu nos livros, por exemplo. Certamente que esta justificação não é última — depende de outras justificações — mas é razoável.

Afirmar que só sei que nada sei seria obviamente incoerente se a ideia fosse, literalmente, que nada sei — afirmando de seguida que o sei. Isso seria como afirmar que toda a gente é loura, mas eu não: se toda a gente, literalmente, é loura, eu também o sou. Mas esta não é uma boa interpretação da afirmação. Ao invés, a ideia é que há uma e uma só coisa que sei: que nada mais sei além disto.

Interpretada assim, esta afirmação parece captar o que o cético pensa. Ele põe em causa as nossas teorizações acerca da natureza da realidade; põe em causa as nossas convicções morais e as nossas memórias. E ao fazê-lo não é incoerente, porque não afirma nada saber, mas antes que sabe uma e uma só coisa: que não sabemos tudo o resto que julgamos saber. Será esta posição adequada?

O cético afirma que só sabe uma coisa; porém, para cada crença nossa, o cético assevera saber que não há justificação adequada para ela. Portanto, em rigor, o cético sabe pelo menos tantas coisas quantas as que cremos saber: sempre que alguém afirma saber algo, o cético afirma que não há justificação adequada para essa crença.

Esta dificuldade não é muito significativa, mas sugere outra que o é — constituindo, aliás, uma ilusão cognitiva recorrente. Se o cético não souber que é preciso haver justificação adequada para que haja conhecimento, nenhum dos seus raciocínios tem qualquer relevância. Os raciocínios céticos põem em causa as justificações que invocamos a favor das nossas crenças. Mas isto só é relevante se aceitarmos que sem justificação adequada não há conhecimento. Portanto, o cético tem de aceitar esta tese filosófica quanto à relação entre a justificação e o conhecimento — não pode saber apenas que nada sabe. Para saber que nada sabe tem de saber, além disso, que sem justificações adequadas nada se sabe.

Mas mesmo isto não basta. Se o cético soubesse apenas que nada sabe e que sem justificação adequada nada se sabe, não saberia que os seus raciocínios são cogentes. Ora, se o cético não souber que os seus raciocínios são cogentes, não saberá também que os outros não sabem o que julgam saber — pois isso é o que ele conclui com os seus raciocínios.

Como se vê, o cético professa saber apenas que nada sabe, mas isso é logicamente impossível. Isto porque ou o cético sabe que sem justificação adequada não há conhecimento e que os seus raciocínios são cogentes, ou não o sabe. Se sabe qualquer destas coisas, então não sabe apenas que nada sabe. E se não sabe qualquer destas coisas, não sabe que nada sabe. Ora, se não sabe que nada sabe, também não sabe apenas que nada sabe. Logo, em qualquer caso, o cético não sabe apenas que nada sabe.

Do mesmo modo que não conseguimos escrever uma gramática da língua portuguesa sem usar uma qualquer língua — portuguesa ou outra qualquer — também não conseguimos suspender de uma vez só todas as nossas crenças para pô-las em causa, sem professar quaisquer crenças. A ilusão de que o podemos fazer resulta de estarmos habituados a aceitar inúmeras crenças, ao pôr outras em causa, sem reparar nelas. Por isso, não reparamos que o cético faz precisamente o mesmo: aceita inúmeras crenças ao pôr outras em causa. Foi isso que Bertrand Russell (1872–1970) viu com clareza:

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       É claro que é possível que todas ou qualquer uma das nossas crenças possa estar errada, e consequentemente todas devem ser adotadas com pelo menos um ligeiro elemento de dúvida. Mas não podemos ter razão para rejeitar uma crença exceto com base noutra crença qualquer. (Bertrand Russell, Os Problemas da Filosofia, p. 87)

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Assim, apesar de a lenda atribuir a Sócrates uma afirmação memorável, há fortes razões para pensar que nem ele nem ninguém pode saber apenas que nada sabe. Talvez devido a críticas deste género, o referido Sexto Empírico insiste em distinguir o ceticismo académico do seu próprio ceticismo, chamado pirrónico. Segundo Sexto, são os primeiros que caem na armadilha de afirmar algo — nomeadamente, que nada sabem. E são por isso vulneráveis a algo como a argumentação aqui apresentada contra eles. Sexto esforça-se então por explicar que não sabe que nada sabe; apenas lhe parece, perante cada afirmação de hipotético saber, que não é saber. Deste modo, Sexto não afirma nada saber, mas apenas que lhe parece nada saber.

Poderá esta diferença bloquear realmente o género de argumentação aqui apresentada contra o cético? Esta é uma pergunta a que o leitor pode tentar responder por si.

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Pirro em obra atribuída a Hans Weiditz

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Desidério Murcho

Desidério Murcho é filósofo, escritor e professor de Filosofia na Universidade Federal de Ouro Preto. É autor, entre outros, de Filosofia Diretamente e O Lugar da Lógica na Filosofia. Edita o site Crítica na Rede.