Cartas da Malásia

Cartas da Malásia: Sibelius e as ilusões

por Ary Quintella

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Em abril, houve uma boa notícia. A sala de concertos da Orquestra Filarmônica da Malásia reabrira. Desde março do ano anterior, estivera fechada por causa da pandemia.

Nas poucas semanas transcorridas entre a minha chegada a Kuala Lumpur, em janeiro de 2020, e o lockdown provocado pela Covid-19 seis semanas depois, vários domingos à tarde atravessei o parque desenhado por Roberto Burle Marx para ir assistir a concertos. A orquestra costumava então se apresentar nas noites de sábado e, com o mesmo programa, no dia seguinte, em matinê. Ocasionalmente, havia também concertos de câmara na terça, ao final do dia.

Com a pandemia, tudo mudou. Frequentemente, neste terrível último ano, eu pensei nos músicos, muitos deles estrangeiros. Presumi — corretamente, parece — que a empresa estatal Petronas, que financia a Filarmônica, continuava pagando seus salários, mas em Cleópatra no Escritório, em maio do ano passado, comentei que, para um artista, a sobrevivência financeira não é tudo. O apreço, os aplausos, a admiração do público, o contato direto com ele, são igualmente importantes. No último ano, a orquestra pôde apenas gravar, ocasionalmente, concertos para seu canal no YouTube.

A Petronas é uma das maiores empresas do mundo. O “nas” vem de “nasional”, grafia da palavra em malásio. Quanto a “Petro”, refere-se àquilo mesmo que vem à mente. Em sua página na Internet, a estatal declara ser “the custodian of Malaysia’s national oil and gas resources”. Ela opera no Brasil desde 2019, quando adquiriu em leilão o direito de exploração de três blocos na Bacia de Campos, dois deles individualmente, e o terceiro em associação com a empresa francesa Total e a estatal Qatar Petroleum. A Petronas também comprou da Petrobras, no mesmo ano, o direito de exploração e produção de 50% de dois blocos adicionais. É por isso que, em fevereiro de 2020, as revistas especializadas já consideravam a estatal malásia a quinta maior produtora de petróleo e gás natural no Brasil.

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Dewan Filharmonik Petronas (Reprodução)

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A empresa tem os recursos, como se vê, para financiar a fundo perdido a Filarmônica. De fato, em todos os concertos a que assisti, notei que a sala nunca ficava lotada. Algumas empresas privadas — a Mitsubishi me foi dada como exemplo — mantêm assinatura de camarotes.

A sala de concertos, instalada nas Torres Petronas, sede da estatal, e desenhada pelo mesmo arquiteto das torres, o argentino Cesar Pelli, foi inaugurada em 1998. A acústica é excelente, e a beleza da sala, que utiliza madeiras exclusivamente malásias, impressiona. O fundo do palco é ocupado por um gigantesco órgão alemão.

Parte do prazer de ir à sala de concertos é pensar no seu nome em malaio, Dewan Filharmonik Petronas. A palavra “dewan”, assim como suas variações, é oriunda do persa; tem origens antigas e ilustres. Em malaio, significa “sala”, “hall”. Por isso, a Câmara Baixa do Parlamento se chama Dewan Rakyat — a Casa do Povo, ou a Casa das Pessoas. Na Índia, durante o Império Mogol, o termo designava um alto funcionário, um ministro. Nossa palavra “divã” tem a mesma origem. Originalmente, era o assento na sala onde despachavam os que detinham o título de dewan. Há também o conceito de diwan para uma coleção de poemas de um mesmo autor. Assistir a um concerto, sentar-me na Dewan Filharmonik Petronas é, portanto, como ser lembrado de um conto de As Mil e Uma Noites.

Com a flexibilização das regras de isolamento físico na Malásia, a orquestra pôde enfim voltar a se apresentar em abril, com um concerto por semana, nas tardes de sábado, com duração de uma hora. Comprei entrada para 1º de maio. Por causa da pandemia, há vários meses permite-se apenas um único acesso ao parque, e exclusivamente para quem queira correr; precisei então contorná-lo para chegar às Torres. Esse já é, em si, um passeio bucólico, porque o caminho, um círculo imperfeito, é de lajotas, apenas para pedestres, pouco frequentado, e fica rodeado de um lado pelo prédio, baixo e longo, do centro de convenções, do outro pelo parque.

A Orquestra Filarmônica é de alta qualidade. Seu regente principal foi, de 2014 a 2015, um maestro brasileiro, Fabio Mechetti. No concerto do dia 1º de maio ela foi regida por um dos dois maestros residentes, o japonês Naohisa Furusawa.

Além do uso de máscara, registro de entrada por um aplicativo e medição de temperatura ­ — todas essas, medidas obrigatórias em qualquer local público na Malásia — a direção da orquestra decidira criar espaçamento de duas ou três poltronas vazias entre cada lugar ocupado.

O programa era exclusivamente Sibelius: “Valsa Triste”, “Andante Festivo”, “Suíte Karelia”, “O Cisne de Tuonela” e “Finlândia”. Isso, para mim, não era uma perspectiva entusiasmante. Quando eu era estudante em Londres, e podia assistir a concertos assiduamente, costumava evitar a música de Jean Sibelius, que me parecia lúgubre e enfadonha. Guardo uma lembrança particularmente triste de “O Cisne de Tuonela”, embora não consiga achar em minha coleção de antigos programas de teatro em que circunstância ouvi o poema sinfônico. Minha vontade de retomar em Kuala Lumpur uma vida com parâmetros normais, em vez de ditada pela pandemia, me fez porém querer enfrentar as tristezas de Sibelius e voltar a ouvir a orquestra.

Pela primeira vez, não havia programa impresso. Era preciso baixá-lo pelo celular por meio de uma barra de códigos. Isso significa que jamais conseguirei encontrá-lo novamente no meu telefone. Sentado em uma das poltronas vermelhas da sala de concertos, isolado, pelo espaçamento, de qualquer outro membro da plateia, vi os músicos pouco a pouco entrando no palco.

O spalla, o eslovaco Peter Daniš aparece, a orquestra afina os instrumentos e, então, surge o regente. O público, faminto há um ano por música ao vivo, aplaude com convicção. Já nas primeiras notas, em vez da tristeza que a música de Sibelius no passado provocava em mim, sinto apenas felicidade. Mesmo “O Cisne de Tuonela” injeta-me ânimo. Percebo que havia sido uma perda eu descartar Sibelius durante tantos anos.

Mais tarde, eu procuraria pela minha biblioteca toda referência ao compositor. Sobretudo, olharia com atenção as fotos de sua casa em Maisons de musiciens, um livro publicado em 1997 pelas Éditions du Chêne, com textos de Gérard Gefen e fotografias de Christine Bastin e Jacques Evrard. Na Introdução, Gérard Gefen alerta contra o ímpeto de, ao visitarmos a casa de um compositor apreciado, cairmos na armadilha de uma “manifestação de adoração extática”. No entanto, como ele menciona, “as casas dos grandes criadores, simplesmente porque foram mais bem preservadas do que as de seus contemporâneos anônimos” nos mostram “as formas de vida e os gostos de uma época”. De 1904 a 1957, quando morreu, Jean Sibelius morou no campo, a quarenta quilômetros de Helsinque. É possível que ver as fotos de sua casa não nos ajude a entender melhor a sua música, mas sem dúvida captamos algo de sua personalidade e seu estilo de vida. A fotografia da cozinha é particularmente sedutora. O espaço é todo em tons de branco e bege pálido, ensolarado, olhando para a floresta.

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Sibelius e a esposa Aino, c. 1915

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Mas minha sede pela vida de Sibelius aconteceria em casa. Durante o concerto, e logo depois, a sua música é que me interessou. Terminada a hora mágica, tendo a orquestra já abandonado o palco, saí da sala quase que por último. Parecia inacreditável que eu pudesse ter voltado ali, depois de mais de um ano. Semanas mais tarde, em uma videoconferência com o diretor-executivo da Filarmônica, Sareen Risham, comentei o quanto a apresentação de 1º de maio mudara minha percepção de Sibelius. Ele concordou que a orquestra e o regente estavam, de fato, “jubilantes” naquela tarde, pela alegria de poder tocar e reger em público depois de tanto tempo.

Três semanas antes do concerto de Sibelius, eu fora a um espetáculo de odissi, dança indiana clássica, por uma famosa companhia malásia, Sutra. Vira lá um embaixador europeu, contente porque, por causa da pandemia, não pudera ir ao teatro por um ano. Ri e respondi: “no meu caso, faz um ano e meio”. Depois do espetáculo, ele e eu, junto com alguns convidados malásios, fomos levados a uma sala reservada, para cumprimentarmos o fundador da Sutra, Ramli Ibrahim, que dançara em uma das coreografias.

Figura mítica das artes cênicas na Malásia, Ramli Ibrahim recebeu há alguns anos o título malásio de Datuk e também uma das grandes distinções civis da Índia, a medalha Padma Shri. Conversamos. Comentei que meu número preferido havia sido o inspirado em Surya, o deus do sol no hinduísmo. Conduzindo sua carruagem com sete cavalos, Surya levanta-se do mar ao amanhecer, atravessa o céu e traz luz ao mundo. A coreografia mostrava esse momento, incluindo os movimentos dos sete cavalos, de forma altamente eficaz.

Ramli Ibrahim estava feliz e exultante. No último ano, o espetáculo a que acabáramos de assistir tivera de ser adiado mais de uma vez, por causa das repetidas medidas de isolamento social. Pensei novamente nas agruras de ser um artista durante a pandemia.

Eu tinha já entrada para o concerto seguinte da Filarmônica, na tarde do sábado 8 de maio. Na noite desse mesmo dia, iria também à apresentação de uma ópera de Francis Poulenc por uma companhia de ópera local. Os sinais eram claramente de uma volta à normalidade.

Saindo da Dewan, atravessei o amplo corredor que leva da sala de concertos ao centro comercial — que aliás se chama Surya — aos pés das Petronas. Fui à livraria; fui ao supermercado. Voltando para casa pelo parque de Roberto Burle Marx, carregando minhas sacolas, escutei o koel asiático, que canta apenas no final da tarde e de manhã cedo. Fui caminhando, pensando que as fronteiras logo seriam abertas, e eu tiraria férias e poderia ver minha mulher em Singapura, minha filha em Bruxelas, sem ter de me preocupar com quarentenas ou providências burocráticas.

Não saio da Malásia desde o início de 2020 e de Kuala Lumpur desde outubro, por causa das restrições até mesmo a viagens dentro do país. Pensei que meus projetos de viagem significariam encontrar antes um hotel em Kuala Lumpur onde deixar Kiki, a gata persa dourada.

O otimismo de que costumo dar demonstrações, e que impressionava meu pai, pareceu-me, enquanto eu caminhava pelo parque ouvindo o koel, cantarolando trechos de Sibelius e pensando na possibilidade de viajar, um raciocínio realista. Minha única preocupação era a provável reação de Kiki. Eu a magoaria, ao deixá-la sozinha por duas ou três semanas.

Poucos dias depois, o aumento nos casos de Covid-19 obrigou o governo malásio a determinar novas restrições na capital. O concerto do dia 8 de maio da Filarmônica foi cancelado, assim como a ópera de Poulenc. Em 1º de junho, novo isolamento completo foi decretado para todo o país. Não seria ainda agora que Kiki sentiria a minha falta.

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Ary Quintella

Ary Quintella, diplomata de carreira, é atualmente Embaixador na Malásia. Publica seus ensaios e crônicas na página aryquintella.com.