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Sobre homens e máquinas

Blade Runner, de Riddley Scott (1982)

por Júlio Pimentel Pinto

Não é de hoje que as máquinas nos fascinam. Da mesma forma que é possível acreditar que inicialmente os humanos precisaram aprender a interpretar sinais — para sobreviver: caçar e não se tornar presa —, também podemos supor que não demorou para que homens percebessem a necessidade de aperfeiçoar suas habilidades e ultrapassar as limitações do corpo. No princípio, e muito antes das máquinas, vieram as ferramentas. Uma pedra afiada para cortar, uma vara capaz de manter as ameaças à distância, os pedaços de madeira que provocavam o fogo, a roda.

Infinitos passos foram dados até que, no século III a.C. Arquimedes de Siracusa pudesse metaforizar a eficácia de uma alavanca como algo capaz de mover o mundo. Outra caminhada — mais breve, mas igualmente decisiva — levou aos séculos XV e XVI e às máquinas que Leonardo da Vinci desenhou máquinas, mas não podia construir: antepassadas imaginárias e remotas do avião ou do tanque de guerra. Ou até que o holandês Hans Lippershey, cem anos depois de Leonardo, criasse o telescópio para que nossos olhos melhor alcançassem as estrelas.

Nenhuma época, porém, apostou tanto nas máquinas e no seu poder redentor quanto os séculos XVIII e XIX. Os aparelhos de fiar e o motor a vapor são as faces mais notáveis de um mundo que se transformava e colocava na ordem do dia as palavras eficácia e produtividade. Num ritmo muito rápido, o da transição entre apenas três gerações, mudaram as formas de trabalho. As distâncias, agora percorridas em velocidades mais altas, pareceram encolher. O tempo passou a ser associado a ganhos financeiros e o cotidiano virou um feroz carrossel. 

Nós, humanos, acreditávamos então que o progresso era um valor absoluto e intrinsecamente positivo. E que havíamos afinal nos libertado das limitações corporais: poderíamos ser tão rápidos e tão fortes quanto o avanço tecnológico permitisse. Nenhum limite aparente. Não eram mais apenas nossos olhos que alcançavam as estrelas: supúnhamos poder chegar, mais cedo ou mais tarde, diretamente a elas.

Claro que alguns alertaram que o mundo dos mastodontes maquínicos não era perfeito, nem o futuro necessariamente prodigioso. Ainda no século XVIII, grupos de pessoas penetravam surdamente no interior das fábricas e destruíam as máquinas que os feriam no corpo e na alma. O poeta e artesão William Blake comparou as máquinas a “rodas complicadas, roda sem roda”. E fulminou: “as artes da vida foram trocadas pelas da morte”. Décadas depois, Karl Marx sintetizou a diferença entre ferramentas e máquinas: “No artesanato e na manufatura, o operário faz uso de uma ferramenta; na fábrica, a máquina faz uso dele”.

Esses e outros avisos foram ouvidos, mas não impediram que continuássemos a acreditar na maravilhosa figura da fábrica e mais nas máquinas voltadas a facilitar o conforto e as possibilidades do dia a dia. O século XIX consagrou o trem e o imprimiu de forma definitiva no nosso imaginário de força e velocidade. Inventou o automóvel e nos deu uma razão para acreditarmos na superioridade dos pneus sobre as pernas. Criou o cinematógrafo e, junto com a diversão, consolidou a ideia de um mundo apreensível no seu movimento. Quatro desejos, porém, prosseguiam distantes da realização prática: voar, conquistar o espaço, viajar no tempo e criar simulacros tecnológicos dos humanos. Eram sonhos imensos e não nos cansávamos de persegui-los.

O primeiro foi rápido. Em dezembro de 1903, Wilbur e Orville Wright realizaram um voo controlado; em agosto de 1906, Santos Dumont alçou seu 14-bis do chão. Não importa aqui quem foi o precursor ou qual era o conceito de aviação em jogo nos inventos dos Wright ou de Dumont. Fato é que o homem agora sabia voar. A máquina voadora é simbólica não apenas porque dá asas a quem antes tinha apenas pés, e bem fincados no chão. Ela também explicitou a ambiguidade da tecnologia e abriu uma era de fé e de simultânea desconfiança nas máquinas e no progresso. Consta que o uso militar do avião na Primeira Guerra Mundial, entre 1914 e 1918, apavorou Santos Dumont, que teria passado a se sentir responsável não pela beleza do sonho realizado, mas pelo surgimento de um aparato letal. Dumont, que se suicidou em 1932 enquanto aviões bombardeavam os paulistas rebelados contra o governo de Vargas, não chegou a assistir aos ataques-relâmpagos da Alemanha nazista, sustentados por violenta carga aérea, nem viu o surgimento de outras e piores máquinas de destruição: as bombas movidas pelo poder nuclear. Também não viu mais um sonho humano se realizar: o da conquista do espaço — que, feita à luz e sob as ordens das superpotências envolvidas na Guerra Fria, é outro exemplo poderoso da duplicidade das conquistas tecnológicas.

Hoje vivemos no século XXI e continuamos a imaginar quando conseguiremos viajar no tempo e nos duplicar. Há pesquisas, há vontades, há graves questões éticas e esses objetivos não foram alcançados. Isso não impediu que a arte sondasse um mundo em que fosse possível ultrapassar as barreiras do tempo e colocar homens e robôs lado a lado. A arte, sabemos, tem a incrível capacidade de captar o que vai além do real e refletir sobre suas perspectivas e inquietações. Por isso ela é tão poderosa e não deve ser controlada, nem submetida às regras baldias do utilitarismo tacanho. Foi assim que H.G. Wells, já em 1895, publicou seu A máquina do tempo. Ou que Robert Zemeckis, noventa anos depois, lançou o primeiro filme da trilogia De volta para o futuro. O fascínio de se transportar no tempo é óbvio e tão imenso que às vezes é preciso que alguém nos lembre, como fez Stephen Hawkings, que adoraríamos circular por outras eras, mas talvez tivéssemos alguma dificuldade para conviver com os viajantes do tempo que nos visitassem. Face e contraface, prazer e dúvida.

Com o tema da duplicação humana não é diferente. A morte recente do ator Rutger Hauer — que interpretou Roy Batt, o mais violento e reflexivo dos androides de Blade Runner, filme de Ridley Scott lançado em 1982 — trouxe a discussão de volta. Não passou despercebida a coincidência de que Hauer morre justamente no ano em que a história do filme se passa — e quando seu personagem se desliga. O famoso diálogo de Roy Batt com seu caçador, interpretado por Harrison Ford, circulou intensamente pelas redes sociais e todos pudemos lembrar do desconforto que sentimos quando o androide que queria continuar vivo relata o que viu e que nenhum humano poderia ver, o que sentiu, o que guardou na memória: tudo aquilo que a morte apaga. O que estava em jogo na sua fala é algo que nos inquieta sempre que pensamos na replicação humana: a consciência de uma máquina.

O tema está no centro de um tremendo romance que acabou de ser publicado: Máquinas como eu. E gente como vocês. O livro é uma ficção científica projetada no passado. O enredo se desenvolve em 1982, mas não o ano que já vivemos. É outro 1982, com outras alternativas históricas, com desdobramentos imaginários do passado. Charlie, narrador em primeira pessoa, torra todo o dinheiro que tem na compra de uma réplica perfeita de humano: um dos vinte e poucos Adões e Evas de avançadíssima tecnologia, imensamente realistas, capazes de passar despercebidos quando circulam entre pessoas de carne e osso. Charlie confessa: foi sempre fascinado pela tecnologia e não resistiu ao impulso de adquiri-lo, mesmo sabendo das incertezas e dos riscos. Adão é uma máquina incrível, um computador que anda, age e se desenvolve na interação com o mundo que o rodeia. A questão fundamental do romance, porém, é tão tecnológica quanto filosófica: qual é a fronteira do humano? Numa passagem divertida, o pai da namorada de Charlie confunde o gênero humano com o robô e expõe a linha tênue, lâmina afiada, que separa e diferencia os gestos programados pela matemática dos movimentos aleatórios e espontâneos de um homem.

Duplicar-se como máquina não é uma novidade literária. Há duzentos anos, Mary Shelley publicou seu Frankenstein. Filha de dois dos mais impressionantes personagens do XVIII — a feminista Mary Wolstonecraft e o pensador William Godwin —, Shelley tinha menos de vinte anos quando o escreveu e deu ao livro o subtítulo de Prometeu moderno. O leitor, portanto, não é pego desprevenido: sabe, desde a capa, que a história fala de transformação de matéria inanimada em vida, da disposição de um homem de realizar trabalho divino. Querer ser deus implica riscos, envolve dilemas que talvez demorem para ser percebidos, mas uma hora afetam de maneira irreversível o ser que foi criado e aqueles que vivem à sua volta. As criaturas com facilidade escapam ao controle dos criadores e impõem a todos a urgência de pensar sobre si mesmos, sobre suas vidas. 

Frankenstein, personagem de Marry Shelley

Essas criaturas que agem de forma errática e imprevisível mostram o reverso dos sonhos maquínicos — sejam os do pobre dr. Frankenstein, sejam os do perplexo Charlie ou dos matemáticos que programaram o Adão de McEwan. Precisamos, então, retornar a Blade Runner e ao replicante Roy Batt. A consciência é, em tese, a diferença fundamental entre homens e máquinas. Consciência de si, do lugar de onde veio, do passado e do processo que o formou, do chão que pisa no mundo. Da vida, própria e alheia, com que lidamos o tempo todo. 

O Adão de McEwan e o personagem interpretado por Hauer no filme de Scott nos desconfortam porque sugerem que humanos são dotados de consciência, mas com frequência abdicam dela, e de seus princípios fundamentais. Robôs como eles constroem a própria consciência e são programados para preservá-la: não podem abrir mão da humanidade que conquistaram e assim se tornam o cristal em que enxergamos a difração terrível do que nós, humanos, somos. 

Máquinas inquietantes, enfim, que talvez sejam ecos dos tempos que vivemos nesse 2019 tão paradoxal. Alcançamos um alto estágio de aperfeiçoamento tecnológico e de conhecimento do mundo. Ao mesmo tempo, vemos ressurgirem das trevas discursos ilógicos e sombrios que apostam todas as suas fichas na irracionalidade e na inconsciência. Não a inconsciência inevitável — componente infalível do sapiens demens —, mas a que pretende destruí-lo e, no passado, não hesitou em dizimar os iguais.

Não temos mais o direito à ingenuidade de acreditar que as máquinas nos salvem ou nos redimam. Mas não custa ouvir o que Roy Batt, Adão ou o atormentado monstro do dr. Frankenstein têm a nos dizer. Não é de hoje que as máquinas nos fascinam. E que nos angustiam, nos levam ao impasse. Resta o consolo de que de todo áporo, já ensinou Drummond, pode nascer a flor.

Júlio Pimentel Pinto

Júlio Pimentel Pinto é professor no Departamento de História da USP e autor, entre outros, de 'A pista e a razão: uma história fragmentária da narrativa policial' (e-galáxia, 2019).