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T. S. Eliot faz 130 anos: “Notas para uma definição de Cultura”

Capítulo 1 | Os Três Sentidos de “Cultura”

O termo cultura tem diferentes associações caso tenhamos em mente o desenvolvimento de um indivíduo, de um grupo ou classe, ou do conjunto da sociedade. É parte de minha tese que a cultura de um indivíduo depende da cultura de um grupo ou classe, e que a cultura de um grupo ou classe depende da cultura do conjunto da sociedade à qual pertence aquele grupo ou classe. É a cultura da sociedade, portanto, que é fundamental, e é o significado do termo “cultura” em relação ao conjunto da sociedade que deve ser primeiramente examinado. Quando o termo “cultura” é aplicado à manipulação de organismos inferiores – ao trabalho do bacteriologista, ou do agrônomo –, o significado é bastante claro, pois podemos obter unanimidade acerca dos propósitos a serem atingidos, e podemos chegar a um acordo se os atingimos ou não. Quando aplicado ao aperfeiçoamento da mentalidade e do espírito humanos, é menos provável que concordemos quanto ao significado de cultura. O termo em si, significando algo que deve ser conscientemente almejado nas questões humanas, não possui uma longa história. Como algo a ser alcançado por meio de esforço deliberado, “cultura” é relativamente inteligível quando estamos interessados no autodesenvolvimento do indivíduo, cuja cultura é contrastada com o pano de fundo da cultura do grupo e da sociedade. A cultura do grupo, igualmente, tem um significado definido em contraste com a cultura menos desenvolvida da massa da sociedade. A diferença entre as três aplicações do termo pode ser mais bem apreendida se questionarmos em que medida, em relação ao indivíduo, ao grupo e ao conjunto da sociedade, o objetivo consciente de alcançar a cultura tem algum sentido. Uma boa dose de confusão poderia ser evitada se deixássemos de estabelecer para o grupo aquilo que somente pode ser um objetivo do indivíduo; e para o conjunto da sociedade, o que somente pode ser objetivo de um grupo.

O sentido geral ou antropológico da palavra cultura, tal como utilizado, por exemplo, por E. B. Taylor no título de seu livro Primitive Culture, floresceu independentemente dos outros sentidos; se considerarmos, porém, apenas sociedades altamente desenvolvidas e, em especial, a nossa própria sociedade contemporânea, devemos considerar a relação dos três sentidos. Aqui, a antropologia converte-se em sociologia. Entre os homens de letras e moralistas, tem sido comum discutir cultura nos dois primeiros sentidos, e especialmente no primeiro, sem relação com o terceiro. O exemplo mais facilmente evocado é Culture and Anarchy, de Matthew Arnold. Arnold está interessado primordialmente no indivíduo e na “perfeição” que ele deveria buscar. É verdade que, em sua famosa classificação de “Bárbaros, Filisteus e Populacho”, dedica-se a uma crítica de classes; mas sua crítica restringe-se a uma denúncia dessas classes em virtude de seus defeitos, e não chega a considerar o que deveria ser a função adequada ou a “perfeição” de cada classe. O efeito, portanto, é exortar o indivíduo que alcançaria o tipo particular de “perfeição”, a que Arnold chama de “cultura”, a erguer-se acima das limitações de qualquer classe, em vez de concretizar os mais altos ideais a seu alcance.

A impressão de tenuidade que a “cultura” de Arnold comunica ao leitor moderno é devida, em parte, à ausência de um pano de fundo social para sua imagem. Contudo, deve-se também, penso eu, à falha em reconhecer outro modo no qual usamos a palavra “cultura”, além dos três já mencionados. Existem diversas espécies de realizações que podemos ter em mente em diferentes contextos. Podemos estar pensando no refinamento de nossas maneiras – nossa urbanidade e civilidade: se for o caso, devemos pensar primeiramente em uma classe social, e no indivíduo superior como representativo da melhor das classes. Podemos pensar no aprendizado e no contato mais próximo com a sabedoria acumulada do passado: se for isso, nosso homem de cultura é o acadêmico. Podemos, ainda, estar pensando na filosofiaem seu sentido mais amplo – um interesse por ideias abstratas, bem como a habilidade para lidar com elas: nesse caso, podemos estar nos referindo ao intelectual (com a ressalva de que tal termo é empregado hoje de maneira extremamente vaga, de modo a abranger muitas pessoas em que não se nota nenhuma evidência de força do intelecto). Ou podemos estar pensando nas artes: se for assim, estamos pensando no artista e no amador ou diletante. Porém, o que raramente temos em mente são todas essas coisas ao mesmo tempo. Não consideramos, por exemplo, que uma compreensão da música ou da pintura figure explicitamente na descrição do homem culto feita por Arnold; ainda assim, ninguém há de negar que tais realizações desempenham um papel na cultura.

Se considerarmos as diferentes atividades culturais listadas no parágrafo anterior, devemos concluir que nenhuma perfeição em nenhuma delas, à exclusão das outras, pode conferir cultura a alguém. Sabemos que boas maneiras sem educação, inteligência ou sensibilidade para as artes tendem ao mero automatismo; que erudição sem boas maneiras ou sensibilidade é pedantismo; que a capacidade intelectual desprovida de atributos mais humanos é admirável apenas nos mesmos termos em que o brilho de uma criança prodígio no xadrez o é; e que as artes sem o contexto intelectual são vaidade. E se não encontramos cultura em nenhuma dessas perfeições isoladamente, da mesma maneira, não devemos esperar que indivíduo algum seja bem-sucedido em todas e em cada uma delas; devemos chegar à conclusão de que o indivíduo plenamente culto é um fantasma; devemos procurar a cultura não em algum indivíduo ou grupo de indivíduos, mas em contextos cada vez mais amplos; e somos levados, no fim, a encontrá-la no padrão da sociedade como um todo. Essa é, parece-me, uma consideração bastante óbvia: mas ela é frequentemente negligenciada. As pessoas estão sempre dispostas a se considerar cultas com base em uma excelência em particular, quando na verdade não apenas lhes faltam as demais como, mais que isso, elas nem sequer percebem o que lhes falta. Um artista de qualquer tipo, mesmo um grande artista, não chega a ser, por essa simples razão, um homem de cultura: artistas frequentemente não são apenas insensíveis às outras artes para além daquelas que exercem, como por vezes têm péssimos modos ou escassos dons intelectuais. A pessoa que contribui para a cultura, por mais importante que possa ser sua contribuição, não é sempre uma “pessoa culta”.

Disso não se segue que não faz sentido em falar na cultura de um indivíduo, ou de um grupo ou classe. Apenas sugerimos que a cultura de um indivíduo não pode ser isolada daquela do grupo, e que a cultura do grupo não pode ser abstraída daquela do conjunto da sociedade; e nosso conceito de “perfeição” deve dar conta de todos os três sentidos de “cultura” ao mesmo tempo. Tampouco se segue que em uma sociedade, de qualquer nível de cultura, os grupos envolvidos com cada atividade da cultura serão distintos e exclusivos: pelo contrário, é apenas por meio de uma sobreposição e um compartilhamento de interesses, pela mútua participação e apreciação, que a necessária coesão para a cultura pode ser obtida. Uma religião requer não apenas um conjunto de sacerdotes que saibam o que estão fazendo, mas também um conjunto de seguidores que saibam o que está sendo feito.

É óbvio que, entre as comunidades mais primitivas, as diversas atividades da cultura estão inextricavelmente entrelaçadas. O dyak que passa a maior parte de uma estação moldando, esculpindo e pintando seu barco no formato peculiar requerido para o ritual anual de decapitação está exercendo diversas atividades culturais simultaneamente – artística e religiosa, assim como de combate anfíbio. À medida que a civilização se torna mais complexa, maior especialização ocupacional se manifesta: nas Novas Hébridas da “idade da pedra”, afirma o sr. John Layard, algumas ilhas se especializam em determinadas artes e técnicas, trocando suas mercadorias e exibindo suas realizações para a satisfação recíproca dos membros do arquipélago. Porém, apesar de os indivíduos de uma tribo, ou de um grupo de ilhas ou aldeias, poderem assumir funções diferentes – dentre as quais as mais distintas são aquelas do rei e do curandeiro –, é apenas em um estágio muito mais avançado que religião, ciência, política e arte passam a ser concebidas de forma abstrata, umas separadas das outras. E, assim como a função dos indivíduos se torna hereditária, e funções hereditárias consolidam distinções de classe ou casta – e estas, por sua vez, conduzem ao conflito –, a religião, a política, a ciência e a arte igualmente chegam a um ponto em que se trava uma batalha consciente entre elas em busca de autonomia ou de domínio. Esse conflito, em certos níveis e em determinadas situações, é altamente criativo: até que ponto ele é o resultado e até que ponto é a causa de uma consciência mais desenvolvida é algo que não precisa ser considerado aqui. A tensão interna à sociedade pode tornar-se também uma tensão interna à mente do indivíduo mais consciente: o choque de deveres na Antígona, que não é simplesmente um choque entre piedade e obediência civil, ou entre religião e política, mas entre leis conflitantes internas àquilo que ainda é um complexo político-religioso, representa um estágio altamente avançado de civilização: pois o conflito precisa ter algum sentido arraigado na experiência do público antes mesmo que possa ser articulado pelo dramaturgo e, assim, receber do público a resposta que a arte do dramaturgo requer.

À medida que uma sociedade se desenvolve na direção da complexidade e da diferenciação funcionais, podemos aguardar a emergência de diversos níveis culturais: em poucas palavras, a cultura do grupo ou da classe virá à tona. Não creio que esteja em questão que, em qualquer sociedade futura, assim como em qualquer sociedade civilizada do passado, deve haver esses níveis distintos. Não creio que mesmo os mais ardorosos defensores da igualdade social discordem quanto a isto: a diferença de opinião reside em saber se a transmissão da cultura do grupo deve ser por herança – se cada nível cultural deve se propagar por si mesmo – ou se é possível esperar que algum mecanismo de seleção seja encontrado, de tal modo que todo indivíduo possa, no seu devido tempo, vir a assumir seu lugar no mais alto nível cultural para o qual suas aptidões naturais o qualificam. O que é pertinente em relação a isso é que a emergência de grupos extraordinariamente cultos não ocorre sem afetar o restante da sociedade: é parte de um processo em que o conjunto da sociedade muda. E é certo – e especialmente óbvio quando voltamos nossa atenção para as artes – que, à medida que novos valores surgem e que o pensamento, a sensibilidade e a expressão se tornam mais elaborados, alguns valores anteriores desaparecem. Isso equivale a dizer simplesmente que não se pode esperar ter todos os estágios de desenvolvimento ao mesmo tempo; que a civilização não pode produzir simultaneamente grande poesia popular, em um nível cultural, e o Paraíso Perdido, em outro. Com efeito, se há uma coisa que o tempo seguramente traz é a perda: ganho ou compensação é quase sempre concebível, mas nunca certo.

Se, por um lado, parece que o progresso civilizacional engendrará grupos de cultura mais especializados, por outro, não devemos esperar que tal desenvolvimento seja desprovido de perigos. A desintegração cultural pode seguir-se à especialização cultural: e trata-se da mais radical desintegração de que uma sociedade pode padecer. Não é a única espécie, nem o único aspecto sob o qual a desintegração pode ser estudada; porém, qualquer que seja a causa ou o efeito, a desintegração da cultura é a mais séria e a mais difícil de reparar. (Aqui, é claro, estamos enfatizando a cultura do conjunto da sociedade.) Não devemos confundi-la com outra moléstia, o enrijecimento em castas, como na Índia hinduísta, daquilo que pode ter sido originalmente apenas uma hierarquia de funções: ainda que, possivelmente, ambas as moléstias estejam presentesna sociedade britânica de hoje. A desintegração cultural está presente quando dois ou mais estratos se separam de tal modo que se tornam, na verdade, culturas distintas; da mesma forma, quando a cultura no nível do grupo superior se fragmenta, e cada um dos fragmentos representa unicamente uma atividade cultural. Se não me engano, alguma desintegração das classes em que a cultura é, ou deveria ser, mais altamente desenvolvida já ocorreu na sociedade ocidental – assim como alguma separação cultural entre um nível da sociedade e outro. A prática e o pensamento religiosos, a filosofia e a arte, todos tendem a se tornar áreas isoladas cultivadas por grupos sem comunicação uns com os outros. A sensibilidade artística empobrece-se em virtude de seu divórcio da sensibilidade religiosa; a religiosa, em virtude de sua separação da artística. O vestígio dos modos pode ser deixado para uns poucos sobreviventes de uma classe em vias de desaparecer – sobreviventes estes que, uma vez que suas sensibilidades não sejam educadas nem pela religião, nem pela arte, e que suas mentes se encontrem desprovidas do material para a conversação espirituosa, não encontrarão lugar em suas vidas para valorizar seu comportamento. E a deterioração nos níveis mais altos é uma questão que diz respeito não apenas ao grupo visivelmente afetado, mas a toda a população.

As causas de um declínio total da cultura são tão complexas quanto sua evidência é variada. Algumas podem ser encontradas nas explicações, fornecidas por diversos especialistas, das causas das doenças sociais mais prontamente percebidas, para as quais devemos continuar a buscar remédios específicos. Contudo, tornamo-nos cada vez mais cientes da extensão com que o desconcertante problema da “cultura” subjaz os problemas da relação de cada parte do mundo com as demais. Quando nos voltamos para a questão da relação das grandes nações entre si; para a relação das grandes nações com as nações menores;[1]para a relação das “comunidades” miscigenadas, como na Índia, umas com as outras; para a relação das nações-mãe com aquelas que surgiram como colônias; para a relação do colonizador com os nativos; para a relação entre os povos de áreas como as Índias Ocidentais, onde a compulsão ou a persuasão econômicas acabaram por reunir um grande número de raças diferentes: por trás de todas essas intrincadas questões, que envolvem decisões a serem tomadas por muitos homens todos os dias, está a questão do que é cultura, e a questão de saber se ela é algo que podemos controlar ou influenciar deliberadamente. Tais questões nos confrontam sempre que planejamos uma teoria, ou forjamos uma política, educacional. Se levamos a cultura a sério, vemos que um povo não necessita apenas de alimento suficiente (ainda que mesmo isso seja mais do que parecemos capazes de garantir), mas de uma cuisine própria e específica: um sintoma do declínio da cultura na Grã-Bretanha é a indiferença à arte de preparar comida. A cultura pode mesmo ser descrita simplesmente como aquilo que torna a vida digna de ser vivida. E é o que justifica outros povos e outras gerações a dizer, quando contemplam os vestígios e a influência de uma civilização já extinta, que aquela civilização foi digna de sua existência.

Já afirmei, em minha Introdução, que cultura alguma pode aparecer ou se desenvolver a não ser em relação a uma religião. Entretanto, o uso do termo relação aqui pode facilmente nos induzir ao erro. A suposição superficial de uma relação entre cultura e religião é talvez a fraqueza mais fundamental de Culture and Anarchy de Arnold. O autor dá a impressão de que Cultura (como ele usa o termo) é algo mais abrangente do que religião; que esta não é mais que um elemento necessário, fornecendo formação ética e alguma cor emotiva à Cultura, que é o valor último.

Pode causar certo espanto ao leitor que aquilo que eu disse sobre o desenvolvimento da cultura e sobre os perigos de desintegração quando uma cultura já alcançou um estágio altamente desenvolvido possa valer também para a história da religião. O desenvolvimento da cultura e o desenvolvimento da religião, em uma sociedade não influenciada pelo que lhe é externo, não podem ser isolados claramente um do outro: e dependerá do viés do próprio observador se o refinamento da cultura é a causa do progresso na religião, ou se o progresso na religião é a causa do refinamento da cultura. O que talvez nos leve a tratar religião e cultura como duas coisas distintas é a história da penetração da cultura greco-romana pela fé cristã – uma penetração que teve efeitos profundos tanto sobre essa cultura quanto sobre o desenvolvimento da prática e do pensamento cristãos. Porém, a cultura com a qual o cristianismo primitivo entrou em contato (bem como aquela do ambiente em que surgiu o cristianismo) era ela mesma uma cultura religiosa em declínio. Assim, embora acreditemos que a mesma religião possa informar uma variedade de culturas, podemos nos questionar se alguma cultura pode chegar a existir – ou a se manter – sem uma base religiosa. Podemos ir além e questionar se aquilo a que chamamos cultura e religião de um povo não são dois aspectos da mesma coisa: a cultura sendo, essencialmente, a encarnação (por assim dizer) da religião de um povo. Colocar as coisas nessa perspectiva pode esclarecer um pouco minhas reservas quanto à palavra relação.

À medida que uma sociedade se desenvolve, um maior número de graus e de espécies de capacidades e funções religiosas – assim como de outras capacidades e funções – entrarão em cena. Deve-se notar que em algumas religiões a diferenciação tem sido tão abrangente que resultou, na verdade, em duas religiões – uma para o vulgo, outra para os expertos. Os males de “duas nações” na religião são óbvios. O cristianismo resistiu a essa enfermidade melhor que o hinduísmo. Os cismas do século XVI e a subsequente multiplicação de seitas podem ser estudados quer como a história da divisão do pensamento religioso, quer como uma batalha entre grupos sociais opostos – como variação da doutrina, ou como a desintegração da cultura europeia. Ainda assim, embora essas amplas divergências de crença no mesmo nível sejam lamentáveis, a fé pode, e deve, encontrar espaço para diversos graus de receptividade intelectual, imaginativa e emotiva para as mesmas doutrinas, do mesmo modo como pode abarcar muitas variações de ordem e de rito. A fé cristã também, se considerada em seu aspecto psicológico – como sistemas de crenças e atitudes incorporadas em determinadas mentes –, terá uma história: apesar de ser um erro crasso supor que o sentido em que se pode falar de desenvolvimento ou de mudança implique a possibilidade de uma maior santidade ou iluminação divina, tornando-se acessível aos seres humanos por meio do progresso coletivo. (Não supomos que haja, por um longo período, progresso mesmo na arte, ou que a arte “primitiva” seja, enquanto arte, necessariamente inferior à mais sofisticada.) Mas um dos traços de desenvolvimento, quer assumamos a perspectiva religiosa, quer a cultural, é o surgimento do ceticismo– pelo qual, é claro, não quero dizer a infidelidade ou a destrutibilidade (e menos ainda a incredulidade, que é devida à indolência mental), mas o hábito de examinar evidências e a capacidade de adiar decisões. O ceticismo é um traço altamente civilizado, embora, quando degenera em pirronismo, é tal que pode matar uma civilização. Onde o ceticismo é força, o pirronismo é fraqueza: pois precisamos não apenas da força para protelar uma decisão, mas para tomá-la.

A concepção de cultura e de religião como sendo, quando cada termo é compreendido em seu contexto adequado, diferentes aspectos da mesma coisa é tal que requer uma boa dose de explicação. Antes, porém, eu gostaria de sugerir que ela nos fornece os meios para combater dois erros complementares. O mais recorrente é o de que a cultura pode ser preservada, ampliada e desenvolvida na ausência da religião. Tal erro pode ser cometido tanto pelo cristão quanto pelo infiel, e uma refutação apropriada demandaria uma análise histórica de considerável refinamento, pois a verdade não é imediatamente aparente, e pode mesmo ser contradita pelas aparências: uma cultura pode resistir e, de fato, produzir algumas de suas mais brilhantes realizações artísticas e demais resultados depois de a fé religiosa ter entrado em declínio. O outro erro é a crença de que a preservação e a manutenção da religião não precisam levar em consideração a preservação e a manutenção da cultura: uma crença que pode até mesmo conduzir à rejeição dos produtos da cultura como frívolas obstruções à vida espiritual. Estar em posição de rejeitar tal erro, bem como o anterior, requer que tomemos um ponto de vista distanciado; requer que recusemos a conclusão, quando a cultura que vemos é uma cultura em declínio, de que a cultura é algo diante do qual podemos nos manter indiferentes. E devo acrescentar que encarar a unidade entre cultura e religião desse modo não implica que todos os produtos da arte possam ser aceitos de maneira acrítica, nem fornece um critério pelo qual todos possam distingui-los imediatamente. A sensibilidade estética deve ser estendida à percepção espiritual, e a percepção espiritual deve ser estendida à sensibilidade estética e ao gosto disciplinado, antes que possamos avaliar a decadência, o diabolismo ou o niilismo na arte. Avaliar uma obra de arte por meio de padrões artísticos ou religiosos, avaliar uma religião por meio de padrões religiosos ou artísticos, deveria, no fim, culminar na mesma coisa: ainda que esse seja um fim a que nenhum indivíduo possa chegar.

O modo de considerar a cultura e a religião que tenho tentado esboçar é tão difícil que não estou certo de que eu mesmo o compreenda, exceto por lampejos, ou de que eu compreenda todas as suas implicações. Também é tal que envolve o risco de erro a cada momento por causa de alguma alteração imperceptível do significado que qualquer um dos termos possui quando os dois são tratados em conjunto, para algum significado que qualquer um deles possa ter quando considerado isoladamente. Isso é válido apenas no sentido em que as pessoas são inconscientes tanto de sua cultura quanto de sua religião. Qualquer um que tenha mesmo a mais escassa consciência religiosa deve se afligir, de tempos em tempos, com o contraste entre sua fé religiosa e seu comportamento; qualquer um com o gosto que a cultura individual ou de grupoconfira deve estar ciente dos valores que não pode chamar de religiosos. E tanto “religião” quanto “cultura”, além de significarem coisas diferentes entre si, deveriam significar para o indivíduo e para o grupo algo a que aspiram, e não apenas algo que possuem. Há, contudo, um aspecto sob o qual podemos ver a religião como a totalidade do modo de vida de um povo, do nascimento ao túmulo, da manhã à noite, e mesmo quando dorme, e tal modo de vida é também sua cultura. E, ao mesmo tempo, devemos reconhecer que, quando essa identificação é completa, ela significa em sociedades existentes tanto uma cultura inferior quanto uma religião inferior. Uma religião universal é, ao menos potencialmente, superior em relação àquela que alguma raça ou nação reivindique exclusivamente para si; e uma cultura que pratica uma religião também praticada por outras culturas é, ao menos potencialmente, uma cultura superior àquela que possui uma religião exclusivamente para si. A partir de um ponto de vista, devemos identificar; a partir de outro, devemos separar.

Assumindo, agora, o ponto de vista da identificação, o leitor deve lembrar-se – assim como o autor deve fazê-lo constantemente – do quanto é abarcado aqui pelo termo cultura. Ele inclui todas as atividades e interesses característicos de um povo: Derby Day, Regata de Henley, Cowes, o 12 de agosto, uma final de Copa, corridas de cachorros, pinball, jogo de dardos, queijo de Wensleydale, repolho cozido cortado em partes, beterraba em conserva, igrejas góticas do século XIX e a música de Elgar. O leitor pode fazer sua própria lista. E, então, temos de encarar a estranha ideia segundo a qual aquilo que faz parte de nossa cultura também faz parte de nossa religião vivida.

Não devemos pensar em nossa cultura como algo completamente unificado – minha lista tinha a intenção de evitar tal sugestão. E a verdadeira religião de qualquer povo europeu jamais foi puramente cristã, ou puramente qualquer outra coisa. Sempre há traços e vestígios de credos mais primitivos, mais ou menos absorvidos; sempre há uma tendência a crenças parasitárias; sempre há perversões, como quando o patriotismo, que pertence à religião natural e é, portanto, permitido e mesmo encorajado pela Igreja, é exagerado, transformando-se em caricatura de si mesmo. E é fácil demais para um povo manter crenças contraditórias e conciliar poderes mutuamente antagônicos.

A consideração de que aquilo em que acreditamos não é simplesmente o que formulamos e endossamos, mas que também o comportamento é uma crença, e que mesmo os mais conscientes e desenvolvidos de nós vivem igualmente em um nível no qual a crença e o comportamento não podem ser distinguidos, pode ser deveras desconcertante, se nos permitirmos brincar com tal reflexão. Ela confere uma importância às nossas atividades mais triviais, àquilo com que nos ocupamos a cada minuto, de tal modo que não podemos contemplar por muito tempo sem o horror do pesadelo. Quando consideramos a qualidade da integração exigida para o pleno cultivo da vida espiritual, devemos ter em mente a possibilidade da graça e os modelos de santidade para não cair no desespero. E quando consideramos o problema da evangelização, do desenvolvimento de uma sociedade cristã, temos razões para esmorecer. Acreditar que nós somos um povo religioso e que os outros povos não têm religião é uma simplificação que beira a distorção. Considerar que, de um ponto de vista, religião é cultura, e que, de outro, cultura é religião, pode ser muito perturbador. Questionar se o povo já não tem uma religião, na qual o Derby Day e as corridas de cães desempenham seu papel, é embaraçoso; como o é a sugestão de que parte da religião do mais alto sacerdote é o solidéu e o Ateneu. É inconveniente para os cristãos descobrir que, como cristãos, eles não creem o suficiente e que, por outro lado, eles, como todas as outras pessoas, creem em coisas demais: contudo, isso é uma consequência da reflexão segundo a qual bispos são parte da cultura inglesa, e cavalos e cachorros, parte da religião inglesa.

Costuma-se supor que existe cultura, mas que ela é propriedade de uma pequena parte da sociedade; e a partir dessa suposição é comum inferir uma de duas conclusões: ou bem que a cultura só pode dizer respeito a uma pequena minoria, e que, portanto, não há lugar para ela na sociedade do futuro; ou bem que na sociedade do futuro a cultura, que tem sido propriedade de poucos, deve ser posta à disposição de todos. Essa suposição e suas consequências lembram-nos a antipatia puritana pelos monastérios e pela vida ascética, pois assim como a cultura acessível somente a poucos é agora censurada, também a vida enclausurada e contemplativa era condenada pelo protestantismo extremista, e o celibato visto quase com tanta repulsa quanto a perversão.

Para compreender a teoria da religião e da cultura que me dediquei a expor neste capítulo, precisamos tentar evitar os dois erros alternativos: de um lado, encarar a religião e a cultura como duas coisas separadas entre as quais há uma relação; de outro, identificar religião e cultura. Mencionei em certo ponto a cultura de um povo como uma encarnação de sua religião; e, embora eu tenha consciência da temeridade de empregar um termo tão exaltado, não consigo pensar em nenhum outro que possa transmitir tão bem a intenção de evitar, de um lado, a relaçãoe, de outro, a identificação. A verdade, verdade parcial, ou falsidade de uma religião não consiste nem nas realizações culturais dos povos que professam tal religião, nem está sujeita a ser corretamente testada por eles. Pois aquilo em que se pode dizer que um povo acredita, tal como exibido por seu comportamento, é, como eu disse, sempre muito mais e muito menos do que a fé que ele professa em toda sua pureza. Ademais, um povo cuja cultura se formou juntamente com uma religião de fato parcial pode viver essa religião (em algum período de sua história, ao menos) com maior fidelidade do que algum outro povo que tenha uma luz mais verdadeira. É somente quando imaginamos nossa cultura tal como deve ser, caso nossa sociedade fosse realmente cristã, que podemos ousar falar de uma cultura cristã como a mais alta cultura; é somente em referência a todas as fases dessa cultura, que tem sido a cultura da Europa, que podemos afirmar que ela é a mais alta cultura que o mundo já conheceu. Ao compararmos nossa cultura como ela é hoje com aquela dos povos não cristãos, devemos estar preparados para descobrir que a nossa é, em um aspecto ou outro, inferior. Não negligencio a possibilidade de que a Grã-Bretanha, caso consumasse sua apostasia reformando-se de acordo com as prescrições de alguma religião inferior ou materialista, poderia se tornar uma cultura mais brilhante do que a que podemos exibir hoje. Isso não seria evidência de que a nova religião fosse verdadeira, ou de que o cristianismo fosse falso. Seria apenas prova que qualquer religião, enquanto durar, e em seu próprio nível, oferece um significado aparente para a vida, fornece suporte para uma cultura e protege a massa da humanidade do tédio e do desespero.

[1] Este ponto é abordado, ainda que sem nenhuma discussão do significado de “cultura”, por E. H. Carr: Conditions of Peace, parte I, capítulo iii. Escreve Carr: “em uma terminologia deselegante, mas conveniente, que se originou na Europa Central, devemos distinguir entre ‘nação cultural’ e ‘Estado nacional’. A existência de um grupo racial ou linguístico mais ou menos homogêneo ligado por uma tradição comum e pelo cultivo de uma cultura comum deve deixar de fornecer um caso prima facie para o estabelecimento ou para a manutenção de uma unidade política independente.” Carr, porém, está interessado aqui no problema da unidade política, e não na preservação de culturas, ou na questão de saber se vale a pena preservar-lhes em uma unidade política.