Televisão

The winner takes it all: ‘Better Call Saul’, cinismo e melancolia

Bob Odenkirk como Jimmy McGill

(CONTÉM SPOILERS)

por Thiago Blumenthal

Um episódio cartesiano de tão perfeito o exibido nesta semana.

Lembro-me de ter escrito sobre a série Better Call Saul, um spin-off da obra-prima Breaking Bad, focada no passado do advogado Saul Goodman (ou Jimmy, antes de trocar de nome). O link está aqui. Faz pouco mais de um ano.

Estávamos no fim da temporada anterior, e Chuck, o irmão, sabemos que se suicidara de modo dramático, melancólico e com profundos desdobramentos na dinâmica psicológica dos dois irmãos. Falei um pouco, e muito também, do suicídio; e da morte como escape. Há suicídios e há mortinhas banais, diria Auerbach. O suicídio é egoísta, onde o sujeito já se descolou do mundo ao redor, e se descolou de seus desejos, ambições, planos, que não pensa mais (1) no trauma que deixará aos amigos e familiares próximos, nem pensa mais (2) em redemoinhos metafísicos, ou morais, sobre o que vem depois.

As famosas perguntas fundamentais deixam de ser relevantes: fundamental é um cano fumegante na sua testa, uma overdose inteligente de substâncias escolhidas com conhecimento técnico, um atear fogo na casa. Uma corda no pescoço. Acompanho discussões em fóruns diversos sobre o assunto, converso com muita gente a respeito – da minha mãe, que nada saber dizer e apenas se entristece, a amigos próximos, que ora fazem troça ora levam a sério e ajudam. Isso sem contar as inúmeras e necessárias conversas com médicos psiquiatras. A morte não sai de você como um judeu não sai de Auschwitz, nunca.

Escrevo aqui, como escrevi da outra vez, para quem assiste à série. E importante: para quem já viu o último episódio, por questões de spoilers. Corram lá no Netflix e voltem aqui pra ler. Quem não faz ideia do que seja isso, claro, pode parar, se é que não parou antes. Evidente que trago (pretendo) ideias que ultrapassam a série, são mais universais, e inclusive dialogam de algum modo com o debate político que vivemos hoje. Então continue por sua conta e risco.

Desta vez, foco no último episódio mesmo. E em dois aspectos essenciais, que atingiram esse ápice nesse episódio mas que vinham sendo construídos pouco a pouco ao longo dessas quatro temporadas: primeiro a questão da “insinceridade” de Jimmy, que o persegue até Breaking Bad, como sabemos; segundo, sobre a relação afetiva de irmãos.

First things first. Em uma hora apenas, o roteiro segura diversas situações, todas importantes pra trama – e tensas e densas demais – de um modo que surpreende o espectador de minuto em minuto, quase que dando pra medir o nosso batimento cardíaco. Não porque haja reviravoltas (embora haja, uma ou outra, mas não é o caso), mas porque seus personagens, e aí coloco o protagonista Jimmy e o frio Michael, são postos a testes que mudarão suas vidas e sua filosofia.

Nesse episódio, em termos formais e temáticos, do cinema americano, há de tudo: perseguições dissimuladas de carro em alta velocidade pelas pacatas ruas de Albuquerque, a dinâmica implacável de lealdade do cartel (representado por Gustavo Fring), um novo inimigo à sua espreita, um chicanomuito insano que se contrapõe aos extremos cuidados do narcotráfico comandado por Fring e administrado logisticamente por Michael – que viriam a se tornar parceiros de Walter White num futuro, como todos sabemos. Há até momentos de flashback, para lá de significativos, no contato mais íntimo entre os irmãos Jimmy e Chuck.

A abertura, com Jimmy curtindo a noite com o irmão e alguns associados, em que Chuck, impressionante (como ele canta bem!), assume o microfone do karaokê e canta, de maneira pra lá de simbólica a música The Winner Takes it All, do ABBA. A letra, todos conhecemos e também já cantamos em nossos bares preferidos da Liberdade, reitera que “the winner takes it all, the loser standing still”. Uma música romântica, decerto, mas que aqui diz muito quando esses dois irmãos cantam junto – e depois também na cama que dividem na cena de abertura.

A gente sabe, e sempre soube, que a relação de Jimmy com Chuck sempre foi complexa durante a vida de Chuck, até seu suicídio. Depois, que é a quarta temporada, parece-me que essa relação piorou. Nesse período de luto, que passa por um ano narrativo, não sabemos bem como Jimmy reage à morte de Chuck. A princípio adota uma atitude fria, do tipo “vamos falar de outra coisa”. Mas sabemos que, deep inside, é aí que a coisa pega. E a crise nervosa, resultando em um choro compulsivo e sincero, que Jimmy tem ao entrar no carro e ele não pegar, me parece resultado desse luto. Iria além: o fantasma de Chuck o perseguirá e o perseguiria por toda a sua vida, inclusive em Breaking Bad, quando nem fazemos ideia de que outrora já existiu um Chuck. É a força motriz de Jimmy o irmão. Sem ele, não teria caminhado tanto, ambicionado tanto. Enganado tanto. Chuck é o responsável pelo que Jimmy é, pelo que se tornou, pelo que se tornaria e pelo que sabemos que se tornará – Saul Goodman (“it’s all good, man”) são as últimas do episódio, diante de uma Kim catatônica, chocada, desacreditada. E infeliz, talvez melancólica.

Porque chorara durante o discurso de instantes atrás quando Jimmy defende seu direito de advogar. Enquanto ele fala, ela chora no júri. Choramos nós também, espectadores. Porque aqui Jimmy está sendo ele mesmo. De coração aberto, enfim. Até descobrirmos, na cena seguinte, que não: foi tudo uma farsa, comparada a movimentos de esquiva de bala à la Matrix, diminuindo o grande momento a uma enorme fraude cafona e tosca. E mentirosa. Mas que deu certo. São os dilemas morais. Mas nossas lágrimas se secam com o cinismo, e isso se dá imediatamente. Sentimo-nos enganados. O senhor foi um irresponsável, Jimmy, de nos levar ao limite das lágrimas, só pra dizer, vibrando hipocritamente que foi tudo muito bem planejado diante daquela bancada cheia de “suckers”. Como assim, Jimmy? Dessa vez acreditamos em você.

Quem nos conta a história em Better Call Saul o faz de um modo que subverte inclusive boa parte da literatura moderna. Não porque não seja confiável (seu personagem é que não é). E mesmo sabendo de tudo dele, ou quase tudo, somos surpreendidos. São processos de desconstrução, ou fragmentação, de uma persona. Como quando conhecemos alguém que nos é uma absoluta charada. Não sabemos bem no que confiar – e nada a ver com ser pior ou melhor, refiro-me a pessoas que nos dão um nó na cabeça mesmo, muito por competência deles (ou, ao contrário, um defeitinho neural de fábrica deles), muito pela ideia óbvia, mas infelizmente nunca aprendida, de que não conhecemos nada sobre ninguém. Nada. Niente.

Insincerity. Prefiro usar o termo inglês, que acho a tradução horrorosa, insinceridade. É um termo recorrente na série, em especial nas últimas temporadas e nesta última. Usado explicitamente inclusive. O carma de Jimmy, que ele tem consciência de que o acompanhará vida adentro. Vivemos em um mundo, onde se erramos, se não estamos sendo sinceros o suficiente, “eles nunca vão esquecer”, diz o genial protagonista a uma garota que concorria a uma bolsa de estudo, reprovada por ter muitos erros na sua breve biografia (uma pequena ladra). Jimmy lhe procura, e aqui a coisa parece sincera, e lhe dá uma lição de vida: nunca vão acreditar em você, por melhor que você seja. Então segue adiante, conquiste as coisas contra a maré e sozinha, mesmo sendo odiada. Mesmo que eles não esqueçam nem te perdoem (e nunca vão perdoar mesmo). Você continuará sendo odiada, mas ei, você pode ainda conseguir seus objetivos.

O que foi sempre a tônica do conflito entre ele e o irmão Chuck, um defensor da Lei, com L maiúscula, da justiça. Um acadêmico ortodoxo, atormentado por seus fantasmas pessoais, a ponto de adquirir uma doença psicossomática sui generise depois suicidar-se tacando fogo na casa, outrora mega protegida contra qualquer tipo de eletricidade. Não desmembrarei as metáforas todas, o peso dos símbolos, os detalhes, as referências, mas, acreditem, isso explode em Better Call Saul, e, claro, nessa relação conturbada com o irmão genial.

Ao fim, Jimmy enfim vira Saul, para completa desorientação de Kim, sua “namorada”. Desorientação esta, que, já comentei aqui, é a nossa. Jimmy, você nos enganou, hands down. A gente sabe que sua vida sempre girou em torno de enganar as pessoas, mas nos sentir enganados atinge um patamar ficcional que é sutil e ao mesmo tempo estrondoso. Porque não é aquele besteirol que a FFLCH nos ensinou sobre narrador não confiável, algo que até minha priminha de seis anos sabe, e ela mal sabe redigir uma carta. Falo aqui de um personagem que nos surpreende nesse nível, de nos desapontar. Somos a Kim o tempo todo.

Contudo, tudo é por causa de Chuck, tudo gira em torno de Chuck e assim será (terá sido) em Breaking Bad. A temática de irmãos varre a literatura da Antiguidade até romances contemporâneos, passando pela Bíblia, por exemplo. É um tema do qual particularmente gosto, ainda mais me identificando em tantas coisas ora com Jimmy ora com Chuck – mas principalmente com Chuck (não me odeiem). O mesmo vale para o meu irmão também, a quem de algum modo dedico este texto – que ele jamais lerá.

O que nos leva a uma reflexão final, por falta de espaço, e por este ensaio ser mais uma apreciação de teor de crítica jornalística, menos acadêmica, no calor da hora. O fantasma do nosso irmão nos persegue, por questões de rivalidade, claro. O que Better Call Saul faz, com um roteiro hiper rígido e inter-articulado, além de uma direção que conduz a trama com uma estética de cores e de sons (a cena do tiro de Michael no técnico alemão no descampado estrelado de Albuquerque entrará para a história), é propor uma solução a essa relação tensa fundamental que se dá em nossas cabeças. Porque o nosso irmão é maior, em termos simbólicos. O nosso irmão está em Deus, por exemplo. Ou, como a série nos mostra tão bem, no diabo.

Thiago Blumenthal

Thiago Blumenthal é fundador da editora Lote 42, doutor em Literatura e professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie.