O Cânone em Pauta

Podcast – Thomas Mann

Pouco antes da Primeira Grande Guerra, um jovem alemão perdido numa nevasca a ponto de morrer congelado esvaía-se em delírios quando se percebeu acolhido numa comunidade idílica, até notar atrás de si um templo e dentro dele duas megeras seminuas devorando um bebê vivo. Despertando de sua alucinação o protagonista do romance A Montanha Mágica formulou esta máxima: “Em nome do bem e do amor, o homem jamais deveria permitir que a morte domine seus pensamentos.”

Aos 25 anos Thomas Mann publicou seu romance de estreia sobre a decadência de uma família mercantil como a sua. Os Buddenbrook, até hoje o maior best-seller da ficção alemã, lhe renderia o Nobel de Literatura, já revelando sua singular “consciência sismográfica”, o “alinhamento secreto” entre o “pessoal e o fatual” que lhe permitia, através de jogos irônicos, contrastes e alusões, transformar a matéria da vida ordinária em forma espiritual. Suas tapeçarias monumentais urdidas por tramas autobiográficas e fictícias justapõem em progressões sinfônicas símbolos e fatos, reflexões filosóficas e intuições psicológicas, trivialidades domésticas e panoramas históricos.

Assim, um sanatório nos alpes se transforma, na Montanha Mágica, em um palco para a dramatização do destino europeu, o “épico de um desenvolvimento cultural” capaz de “abraçar toda a dialética política e moral ocidental”. Um relato lacônico, como o da tribo de Jacó na Bíblia, se torna, nas duas mil páginas de José e seus irmãos, o exercício de “uma viva curiosidade sobre o que é mais remoto e antigo nas coisas humanas: o mítico, o lendário, o tempo antes do alvorecer da razão”. Uma lenda medieval, como a do pacto entre um alquimista e o diabo, serve no Doutor Fausto à mais fina psicografia da consciência alemã em meio à catástrofe nazista. Já consagrado como o romancista de maior apelo da literatura alemã, Mann foi ainda o principal porta-voz da resistência a Hitler. Suas locuções radiofônicas difundidas do exílio pela rádio BBC no território do Terceiro Reich foram um bombardeio moral.

Ao traçar os primeiros esboços para a Montanha Mágica, Mann anunciava a um amigo: “O espírito geral é o de um niilismo humorado, e a balança é, se for, levemente empurrada para o lado da simpatia pela morte.” O mesmo poderia ser dito de praticamente todas as suas obras. Exceto que muitas vezes a balança é empurrada para o outro lado.