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Ensaio sobre a racionalidade humana: tomada de decisão com (e sem) pandemia

por Claudia Feitosa-Santana

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A informação que contradiz a expectativa gera surpresa, seja acompanhada de aceitação ou negação. Digamos que estejamos apresentando um novo fato, inicialmente negado por quase todos; a passagem da negação para a aceitação pode durar segundos ou minutos, mas também meses ou anos, e.g., o anúncio da morte inesperada de um ente querido. Um dos exemplos mais irônicos, o cientista Linus Pauling, ganhador do Nobel de química em 1954 e do Nobel de paz em 1962, faleceu aos 93 anos acreditando na eficácia da vitamina C como agente curador de câncer, mesmo diante das evidências científicas, além do falecimento de sua própria esposa com câncer de estômago.

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Linus Pauling

A pandemia escancara a fragilidade humana? Não, a fragilidade de nossa racionalidade. Um dos pilares da sociedade humana tem como premissa que somos capazes de fazer as melhores escolhas quando, na verdade, somos mais aptos a justificá-las para nós mesmos e, quando necessário, para os outros, e.g., pais para os filhos, presidentes para o povo, influenciadores para os seguidores, justificando as razões pelas quais fizemos determinada escolha. Esse olhar científico da mente humana é tão recente quanto desconcertante e, junto com a pandemia, nos impele a revisar os pilares que fundamentam nossa sociedade e, preliminarmente, o raciocínio humano.

Mas antes de sermos racionais, somos seres sensoriais e, portanto, bem equipados para responder ao visível, audível, odorante, sápido, entre outros. O assintomático requer uma capacidade para compreender o abstrato — que não é natural, nem na arte nem na doença. O impressionismo agrada as massas, o abstrato ainda não. Pensemos no diabetes, doença que está entre as dez maiores causas de morte: uma das razões pelas quais se encontra nessa lista é o fato de ter sintomas bastante silenciosos. Com o novo coronavírus não é diferente e, enquanto não somos seu hospedeiro, nossos sentidos não são capazes de processar sua existência, invisível, inaudível, inodoro etc., mas o fato de sermos racionais significa que temos a capacidade de processar informação para além do disponível no espaço e processados por nossos sentidos. No entanto, não significa que somos agentes perfeitamente racionais, como versa a questionável teoria da utilidade esperada, mas, sim, dotados de uma racionalidade frágil no espaço e, também, no tempo.

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Aglomeração no Rio de Janeiro durante a pandemia (Foto: Wilton Junior/Estadão)

Nossa relação com o tempo é uma construção complexa resumida em ontem, hoje e amanhã. O ontem resume nosso passado e está em nossa memória, de curto e longo prazo; o amanhã em nosso futuro que pode ter um planejamento de curto ou longo prazo. Temos nome para ausência de memória, i.e., amnésia, mas não temos nome para a ausência de planejamento. Problemas de memória são catastróficos e bem estudados; já os de planejamento são praticamente o padrão do modo pensante e operacional do ser humano e, por isso, cada vez mais é preciso entender o cérebro humano para driblar as falhas da racionalidade humana, no espaço e no tempo, visando facilitar a implantação de políticas públicas com o ‘nudge’ e não ‘sludge’ para, entre muitos outros, oferecer o ‘nudge’ para se preparar para a aposentadoria ou para garantir um futuro mais seguro para os filhos. Nada melhor que uma pandemia para diferenciar o ‘nudge’ do isolamento social, entre outros, do ‘sludge’ do isolamento vertical, ausência proposital de liderança, tratamentos defendidos por médicos sem evidência científica de eficácia, entre outros.

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Cass Sunstein, autor de, entre outros, ‘Nudge’

Diferente dos nossos ancestrais, vivemos, em média, o triplo do que eles viviam. Atualmente, a expectativa de vida mundial é de 72 anos, enquanto mais da metade de caçadores de alimentos vivem apenas 21 anos. No Brasil, nossa expectativa de vida é de 75.5 anos, mais que o dobro em dez décadas. O que isso significa para tomada de decisão? Nossa genética não carrega aprendizado para uma vida tão longa, mas como somos seres com habilidades extraordinárias para adaptação e aprendizado, somos capazes de assimilação desse novo prazo. Infelizmente, porém, planejar o futuro não versa entre nossas características e a única forma de atingir essa capacidade é via educação que inclui o pensamento científico.

Não negamos o perigo no presente. Não nos aproximamos de um leão para fazer um afago ou estendemos a mão para uma cobra. O mesmo pode ser dito de uma tempestade que se aproxima com o céu que escurece e ainda nos presenteia com trovoadas assustadoras. Esse tipo de detecção de perigo é um aprendizado que está em nossos genes e acabamos por herdar essa habilidade de nossos ancestrais. O que nossos ancestrais não viveram são, em geral, experiências e habilidades que nós adquirimos durante nossas vidas. Na verdade, nossos ancestrais eram bons em identificar perigo e, assim não fosse, nós simplesmente não existiríamos. No entanto, identificaram muito perigo onde não existia, o que chamamos de falso positivo.

Como isso é verificado hoje? Quando criamos uma imagem estereotipada de um ladrão, identificamos como ladrões todos que encaixam dentro dessa categoria, protótipo etc. Entretanto, esse pensamento estereotipado era útil na savana, mas hoje, na maioria das vezes, significa apenas pré-conceito, desrespeito etc.

Mas se somos tão bons em identificar perigo mesmo onde não existe, por que esse comportamento não é unânime em face de uma pandemia? Nossos sentidos não são capazes de detectar sua presença e a ameaça que nos apresenta não é para o momento extremamente presente. Portanto, é um vírus que se beneficia de falhas em nosso processamento sensorial, racional e temporal, numa combinação que sem educação pode ser — assim como já estamos presenciando — catastrófica.

Aceitar uma ameaça complexa como a apresentada pelo novo coronavírus, exige, quase sempre, educação prévia, i.e., a compreensão do abstrato assimilado com treinamento científico. Governos cuja liderança é composta por cientistas responderam ativamente às ameaças impostas pelo SARS-COV-2, e.g., Taiwan, com o vice-presidente Chen Chien-jen, epidemiologista, respondendo de forma ativa às ameaças impostas pelo novo vírus. A tomada de decisão governamental, sinônimo de tomada de decisão coletiva, uma vez que formada por uma equipe detentora de poder, pode ser diferenciada pelas repostas ativa vs. reativa, ilustrando o que difere uma nação de outra, e.g., Taiwan vs. Itália. Junto a competência, aqui no sentido stricto da palavra, somam-se obviamente outros fatores e, indubitavelmente, a memória coletiva de enfrentamento contra o SARS-COV-1 para Taiwan vs. a ausência de memória para pandemias para Itália. A incapacidade de compreensão do perigo, no caso coletivo, não pode ser atribuída à falta de conhecimento, mas sim à negação que, no coletivo, recebe o nome de cegueira ética, e funciona como um viés da confirmação em bando, e.g., o colapso econômico de 2008, a tragédia de Brumadinho, grupos politicamente polarizados, a atual politização da pandemia.

Vaca atolada em área devastada pela lama em Brumadinho (Foto: Wilton Junior/Estadão)

No nível individual, quanto menos conscientes de nossas limitações, mais propensos à negação — efeito conhecido como Dunning-Kruger — e, quanto mais apaixonados por nossas crenças, apegados aos nossos ideais, mais propensos ao viés da confirmação: o que poderíamos nomear de ‘meu viés’, mecanismo cognitivo exclusivamente humano que funciona como um advogado atuando em causa própria. Se não aceitamos nossas limitações, não estamos aptos para assimilar uma nova evidência. Se não questionamos nossas crenças, não podemos enxergar falhas em nosso funcionamento lógico. Os danos do novo coronavírus não são tão visíveis para a população em geral quanto os danos do isolamento social e suas consequências econômicas imediatas. Dessa forma, muitos governantes optam por trabalhar no limite, i.e., tangenciando o colapso do sistema de saúde e limitando ao mínimo necessário as restrições as liberdades individuais e atividades econômicas. Aqui ilustramos com a teoria do prospecto que nos mostra que nós, seres humanos, apresentamos aversão à perda e, dessa forma, pagamos muito mais para não perder do que para ganhar. Portanto, parar agora significa um ganho no futuro, mas uma perda no momento presente, ambas em termos sociais e financeiros, e reside aqui a questão temporal previamente discutida.

Domino Park no Brooklyn, Nova York (Foto: REUTERS/Eduardo Munoz)

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A aversão à perda é potencializada diante de incertezas, exatamente os desafios que nos são impostos pelo novo coronavírus que, apesar de longe estarmos de sua compreensão total, temos uma produção científica com mais de 30 mil artigos. Os desafios impostos pela incerteza do desconhecido são acompanhados de medo ou negação. A dor certa gera menos stress que a dor incerta, i.e., produzimos muito mais cortisol na incerteza do que na certeza, mesmo diante da mesma perda. Com recorrência, como versa o paradoxo de Ellsberg, escolhemos o conhecido mesmo o desconhecido sendo a melhor opção. Permanecer com o conhecido é muito menos doloroso que enfrentar o desconhecido, i.e., o autoengano fortalece o sistema imunológico. Na pandemia, querer acreditar numa medicação conhecida (e barata) é muito mais fácil que enfrentar a incerteza gerada pela ausência de evidência para sua eficácia, i.e., hidroxicloroquina, ivermectina. Do ponto de vista individual e também coletivo, só optamos pela mudança quando essa se apresenta com menos dificuldade do que manter o estado presente...

Exemplo ilustrativo é o divórcio: optamos por ele quando a dor do status quo passa a ser menor que o enfrentamento da mudança. Todos que têm muito a perder com essa nova vida imposta pela pandemia terão mais dificuldade para abandonar a negação, e.g., acionistas de shopping, donos de restaurantes, pessoas sem poupança, entre outros. Esse vírus nos apresenta incertezas epistemológicas e estocásticas e, quanto mais o conhecimento científico avança de forma conclusiva, mais é possível transformar incertezas em riscos calculáveis para a determinação de políticas públicas. Mas como exigir da população que não foi educada cientificamente à compreensão, abstrata, desses cálculos?

Apesar da morte ser a única certeza e, mesmo que interpretações religiosas e espirituais apresentem explicações convincentes sobre o propósito da vida, a grande maioria das pessoas detesta falar sobre morte, se preparar para ela e, por isso, doadores de órgãos não são maioria, filhos com tutores registrados em cartório também são raros, etc. Enfim, a maioria trata a morte como se fosse uma incerteza longínqua, e aqui reside outra poderosa arma do novo vírus: ele mata muito pouco — com todo respeito a cada uma das centenas de milhares que já faleceram no mundo e seus familiares. O ser humano não aprende com números, mas sim com experiência e, portanto, não internaliza o risco enquanto o luto não bate a própria porta. Cada vez que uma pessoa vai às ruas, volta para casa e não adoece, ela está registrando que saiu e não adoeceu e assim pode ser incentivada a continuar saindo. Hoje, sair cotidianamente e ser infectado pelo vírus ainda pode ser considerado um evento raro e, aqui o problema da racionalidade humana: a tomada de decisão baseada em experiência subestima os eventos raros porque, infelizmente, são muitas mortes, mas uma minoria em termos de conexão afetiva para a população como um todo. Eis aqui uma fraqueza do poder educativo dos números, a inabilidade que em geral os seres humanos lidam com eles, o que não condiz com o fato de que hoje é absolutamente imensurável a dor do indivíduo que está em luto por alguém que perdeu sua vida para a COVID-19.

Junto ao paradoxo da forma como lidamos com a morte, vem novamente o paradoxo do tempo: não tivemos uma obrigatoriedade ao isolamento, mas sim o pedido de muitos governantes para aderir ao máximo ao isolamento e, se não possível, ao distanciamento. Para tal, é necessário respeitar o tempo do outro ao mesmo tempo que pode intensificar a propagação do vírus, mas exigir do outro sair da negação não apenas não resolve como ainda gera, nesse outro que nega, mais tempo em negação. Portanto, antes de criticar quem nega é preciso pensar que não ajudamos, e pior, atrapalhamos: e aqui entra a tão falada empatia, tecnicamente nomeada empatia cognitiva ou, talvez melhor, compaixão racional (mas isso é tema para outro ensaio).

De acordo com Stephen Stearns, estamos aparentemente estacionados numa transição evolutiva que, se concluída, nossa individualidade submergiria num superorganismo — seja no estado utópico de Platão, seja na ditadura repressiva de Orwell—, cujos ilustrativos movimentos são, em geral, instáveis e desaparecem com o tempo; portanto, muito provavelmente não seremos um superorganismo no sentido stricto do termo evolutivo. No entanto, culturalmente, é possível que sim, uma vez que estamos constantemente num caminhar pelo viver mais altruístico e menos egoístico, que nos mostra, paulatinamente, como incorporamos os valores utópicos (e expurgamos os ditatoriais) na plausível formação de um superorganismo. Sugiro, mesmo assim, nos colocarmos o dilema desse viver mais altruístico vs. egoístico, similar à aposta de Pascal, onde o infinito, o movimento e, o finito, a paralisação — ambos no sentindo da evolução moral. Completaremos a transição para o superorganismo? É uma aposta em que, independentemente do resultado, não há dúvida, mais vale viver apostando no infinito.

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Blaise Pascal

Referências:

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Mercier, H., & Sperber, D. (2017). The enigma of reason. Cambridge, MA: Harvard University Press. ISBN 978-0674977860. https://doi.org/10.4159/9780674977860

Stearns, S. C. (2007). Are we stalled part way through a major evolutionary transition from individual to group? Evolution 61(10), 2275-2280. https://doi.org/10.1111/j.1558-5646.2007.00202.x

Thaler, R. (2018). Nudge, not sludge. Science 361(6401), 431. https://doi.org/10.1126/science.aau9241

Trivers, R. (2011). The folly of fools: The logic of deceit and self-deception in human life. New York, NY: Basic Books. ISBN 978-0465027552.

Tobler, P. N., & Weber, E. U. (2014). Valuation for Risky and Uncertain Choices In P. W. Glimcher, & E. Fehr Editors (Ed.), Neuroeconomics (Second Edition) (pp. 149-172). Cambridge, MA: Academic Press. https://doi.org/10.1016/B978-0-12-416008-8.00009-7

Claudia Feitosa-Santana

Claudia Feitosa-Santana é Doutora em neurociências e comportamento e Mestre em Psicologia Experimental pela USP, com pós-doutorado em Neurociências Integradas pela Universidade de Chicago. É fundadora da Neurociência para Desenvolvimento Humano e, atualmente, realiza pesquisa em tomada de decisão moral em colaboração com o Hospital Israelita Albert Einstein.