Literatura

Três passos trágicos sobre a técnica – Parte 1: o ‘Prometeu Acorrentado’

por Márcio Mauá Chaves Ferreira

A passagem traduzida abaixo foi extraída do segundo episódio do Prometeu Acorrentado, quando o protagonista, preso a uma rocha no topo de uma montanha escarpada – punição por ter roubado o fogo dos deuses e o dado aos homens – enumera ao Coro das filhas de Oceano todos os benefícios que conferiu à humanidade ajudando-a a avançar do que seria um estado de selvageria para o da civilização. Na lista das técnicas citadas pelo personagem figuram a arquitetura e a carpintaria; a meteorologia e a astronomia; os números e a escrita; a domesticação e a subjugação dos animais; a navegação; a medicina; a profecia por meio de sonhos, presságios, augúrios e exame das vísceras de animais sacrificados; e finalmente a mineração. Os versos 447-8 desse episódio apresentam uma espécie de provérbio (que, segundo alguns estudiosos, encontra paralelo no Livro de Isaías 6.10), ao passo que o verso 506 traz a famosa frase de efeito “todas as artes vêm de Prometeu aos homens”, conferindo, portanto, unidade ao recorte. “Arte” é, ao lado de “técnica”, uma palavra do nosso léxico que pode servir como opção para traduzir o termo grego “téchn?”.

É comum se apontar um contraste entre, por um lado, essa descrição do progresso humano a partir da ignorância e caos primitivos em direção a uma relativa abundância e sofisticação e, por outro, o tratamento esquemático dado por Hesíodo à civilização humana, segundo o qual a vida dos homens teria se degenerado desde a raça de ouro, representada pelo tempo de Cronos, passando pela de prata, seguida pela de bronze, depois pela dos Heróis e, por fim, pela de ferro. A fonte e o símbolo daquele progresso são justamente o fogo, e não deixa de ser curioso que nem a ele nem a seu roubo por parte de Prometeu se faça qualquer menção no excerto abaixo, ainda que em outras passagens da peça isso ocorra.

Griffith nota nesse discurso de Prometeu a combinação de dois elementos: (i) o topos do “primeiro descobridor” (prôtos heuret?s) e (ii) um tipo de análise mais racionalista, própria dos pré-socráticos e dos sofistas. Em certo sentido, Prometeu é o prôtos heuret?s de todas as artes (ou técnicas – “téchnai”), condensando em si mesmo descobertas que em outras versões são atribuídas individualmente a outros homens – Palamedes, por exemplo, como o primeiro descobridor dos números, e Triptólemo, como o da agricultura, ainda que ensinado por Deméter. Resta, porém, igualmente claro que o progresso humano decorre, de modo natural, da descoberta do fogo.

“Prometeu Acorrentado”, Nicolas-Sébastian Adam (Museu do Louvre).

Quando hoje falamos do Prometeu Acorrentado, é difícil omitir uma questão que se tornou quase onipresente em todas as introduções acerca dessa peça. Desde a antiguidade, essa tragédia que retrata um deus que, em benefício da humanidade, suporta um flagelo potencialmente sem fim causado pelos agentes de um Zeus tirânico, sempre foi vista como uma obra-prima de Ésquilo. Alguns de seus admiradores ilustres como Goethe, Byron, Shelley e Nietzsche, nunca questionaram a atribuição de sua autoria àquele tragediógrafo.

Ocorre que a partir de meados do século dezenove, primeiro em solo alemão com as dúvidas levantadas por Westphal (1856) e Schmid (1929), além de outros, e depois, entre os estudiosos de língua inglesa, com a tese de Griffith (1977), esse quadro passa a mudar de figura, e, embora ainda haja defensores bastante aferrados à autoria de Ésquilo, pairam duvidas consistentes de que seja ele o compositor desta peça, e talvez já se possa dizer que entre os comentadores a balança pende levemente para uma mão alheia, um pouco posterior a Ésquilo.

Os argumentos são basicamente de duas naturezas: (i) uma suposta inconsistência entre o tipo de teologia presente nesta tragédia e aquela encontrada nas outras seis de autoria incontestada, sobretudo no que toca à figura de Zeus; e (ii), o que parece mais convincente, diferenças marcantes de estilo e técnica de composição pelas quais o Prometeu Acorrentado se afastaria das outras tragédias, além de apresentar possíveis ecos de outros textos que teriam sido escritos apenas depois da morte de Ésquilo.

Por fim, uma palavra sobre a tradução: o texto grego dessa passagem está composto em trímetros jâmbicos, e optei aqui por traduzi-los com um verso de doze sílabas e acento forte na sexta. O número de sílabas de cada verso da tradução acompanha, portanto, o texto original, já que os trímetros possuem regularmente doze sílabas; nenhum paralelismo, no entanto, é pretendido em relação ao ritmo desses versos, que é ditado pelas quantidades das sílabas que os constituem, ou seja, pela diferença entre sílabas longas e breves, ao passo que em português o ritmo costuma ser regido pelo jogo entre sílabas fortes (tônicas) e fracas (átonas).

Piero di Cosimo, “O mito de Prometeu”, Alte Pinakotek, Munique.

Prometeu

No início mesmo vendo, eles viam em vão,

ouvindo não ouviam, mas, iguais a formas

de sonhos, pela longa vida tudo a esmo

confundiam, e não conheciam as casas

de tijolos ao sol, nem a marcenaria;

e como diminutas formigas viviam

enterrados nos fundos sem luz de cavernas.

Nenhum seguro indício a eles existia

nem do verão frutífero, nem da florida

primavera, nem mesmo de inverno, mas tudo

faziam sem juízo, até que lhes mostrei

a ascensão e o ocaso indistinto dos astros.

Descobri-lhes também o número – um invento

eminente – e das letras a composição,

que é memória de tudo, autora mãe das musas.

Primeiro subjuguei as bestas entre jugos,

escravas das albardas e duras correias,

a fim de sucederem aos mortais nos grandes

trabalhos, e levei sob carros os cavalos

dóceis, um ornamento do luxo abundante.

Ninguém mais senão eu descobriu vasos náuticos,

pelos mares errantes, alados de linho.

Aos homens descobri tais artifícios, mísero!

mas eu mesmo não tenho um invento que possa

livrar-me dessa dor que agora se apresenta.

CORO
Sofrendo dor terrível, privado de senso,

vagas e, como um médico inapto caído

em doença, desanimas sem ter como achar

remédios com que possas curar-te a ti mesmo.

PROMETEU
De mim ouvindo o resto, mais te espantarás

com as artes e os meios os quais concebi.

Foi este o maior feito: se alguém adoecesse,

defesa alguma havia para que comessem,

bebessem ou ungissem, e eles definhavam

por falta de remédios, até eu lhes mostrar

as misturas propícias do medicamentos

com as quais se defendem de todas as doenças.

Ordenei muitos modos de adivinhação,

E dos sonhos primeiro discerni quais devem

tornar-se realidade, e os fiz reconhecer

presságios indistintos e os sinais nas vias.

Eu distingui dos pássaros de garras curvas

exatamente o voo, e os que por natureza

são bons e maus augúrios, que modo de vida

cada um deles mantém, e que ódios, afeições

e convívios existem mutuamente entre eles;

e a lisura das vísceras, a cor que a bílis

teria para o agrado dos numes, a forma

certa e vária do fígado; e queimando os membros

cobertos de gordura e os flancos volumosos,

a essa arte de indícios que a custo se mostram

encaminhei os homens; seus olhos abri

para os sinais de fogo, que antes ofuscavam-se.

Assim isso se deu; e quanto aos benefícios

escondidos aos homens abaixo da terra,

o cobre, o ferro, a prata e o ouro; quem diria

tê-los antes de mim descoberto? Ninguém,

bem sei, se não quiser em vão se vangloriar.

Em suma, aprende tudo com poucas palavras:

todas as artes vêm de Prometeu aos homens.

Márcio Mauá Chaves Ferreira

Márcio Mauá Chaves Ferreira é mestre em Letras Clássicas pela USP e doutorando pela mesma universidade. Sua tradução da peça Édipo Rei foi recentemente publicada pela Editora Hedra.