Cinema

Tributo a Sir Sean Connery (1930-2020)

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Mais do que um dos grandes ícones de masculinidade da segunda metade do século XX, Sean Connery foi um grande ator e uma personalidade fascinante. A cada filme ? de tipos muito elegantes a policiais truculentos ? o carisma do ator, seu talento, sua generosidade e sua simpatia fizeram dele um exemplo. Jeffis Carvalho e Miguel Forlin, editores de cinema do Estado da Arte, falam dessa dimensão do ator que faleceu no último dia 31, aos 90 anos.

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Sean Connery

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De quando quis ser Sean Connery…

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por Jeffis Carvalho

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A primeira vez que ele despertou meu interesse foi por meio de uma mulher. Ela estava ali, na parede do meu quarto, fixada pelo meu irmão mais velho em tamanho grande. Nunca tive muita atração por loiras, sempre fiquei vidrado nas morenas, mas aquela era muito especial. Estava de biquíni branco, recém-saída do mar, com uma faca na cintura e conchas grandes nas mãos. Um assombro para os olhos e os hormônios de um garoto de 14 anos. Estamos em 1972, e descubro que aquela loira é Ursula Andress, a sueca que foi a primeira (e melhor) bond girl — a garota que contracena com ele, o espião a serviço de Sua Majestade, James Bond, no primeiro filme da franquia, 007 Contra o Satânico Dr. No (Dr. No, 1962). Aquela garota, claro, nunca seria minha. Ela era dele. E ele, o 007, era Sean Connery. Se não podia tê-la, que eu desejasse ser quem podia. Aí, com 14 anos, tudo o que eu mais queria era ser Sean Connery!

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Ursula Andress

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Anos mais tarde, depois de uma adolescência introspectiva, assumo minha ambição desmedida e quero ser outros mais. Quero dançar como Fred Astaire, ter a elegância de Cary Grant, a presença de Humphrey Bogart, o talento de Marlon Brando, o carisma de Clint Eastwood e, claro, a virilidade e o charme de Sean Connery. Como disse, era muita ambição para um jovem. Melhor me concentrar no que Sean Connery tinha de melhor: os seus filmes. E que filmes!

Não descobri Sean Connery por seu James Bond, com licença para matar. Eu o vi pela primeira vez no cinema no mesmo ano em que meu irmão fixou o poster de Andress no nosso quarto. O filme, de Sidney Lumet ? um dos muitos que ele fez com o diretor – era uma complexa história de assalto, The Anderson Tapes — no Brasil, O Golpe de John Anderson (1971). A loira do filme era Dyan Cannon, que foi esposa e mãe da única filha do elegante Cary Grant.

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Pôster Internacional de O Golpe de John Anderson

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Como John “Duke” Anderson, Connery esbanja carisma e charme. Ali está, em estado absolutamente natural, todo o seu talento como ator, que consegue ir do drama à comédia muitas vezes em um único plano. Depois de sair da prisão, onde cumpriu pena por assalto a banco, Anderson desconta o seu cheque-bônus pela liberdade, toma um banho e veste-se como um cavalheiro. Segue, então, para um prédio de luxo e lá anuncia que vai ao apartamento de Dyan Cannon. Ao sair do elevador ela já o espera, de portas abertas. A câmera de Lumet, posicionada na lateral da porta, capta os dois atores um de frente para o outro. Connery, de perfil, diz com um misto de pedinte lascivo a frase “não transo há 10 anos. Sim, 10 anos, oito meses e quatro dias”. Ali, mesmo de perfil, sentimos a força do desejo daquele homem em possuir aquela mulher. Um desejo até tímido, contido, e mesmo sereno, mas nunca menos do que mandatório em sua verdade.

Um ator de cinema se faz basicamente de seus recursos de expressividade à flor da pele. Primeiro, em seu rosto ? no dizer de Carl Theodor Dreyer, o gênio dinamarquês, a principal matéria-prima do cinema ?; depois, na conjunção das suas mil faces com todos os seus poros, para a expressão do corpo em ação. Sean Connery era um ator completo e nos mostra isso ali, entre o batente da porta e o corpo da mulher desejada. O vemos de perfil e entendemos tudo.

Apenas de memória não saberia dizer se vi todos os filmes dele. Mas posso afirmar que vi muitos, com certeza a grande maioria.  De tudo o que pude assistir e presenciar do seu imenso talento, o que mais ficou retido na lembrança ? afetiva e estética ? foi o seu cinema na década de 1970. Dessa safra, dois outros filmes se destacam e têm entre si o mesmo sentimento. É na derrota inevitável que John Huston e Richard Lester extraem de Connery performances que vão da tragédia da ambição ao crepúsculo do guerreiro fora de seu tempo e de sua missão.

Huston lhe dá o espertalhão que se perde em seus delírios de realeza, em O Homem que Queria Ser Rei (The Man Who Would Be King, 1975). Lester proporciona o seu encontro com outro grande mito do cinema, Audrey Hepburn, para contar a história do reencontro de dois amantes envelhecidos por 20 anos de separação. Ele é Robin Hood e ela sua amada Marianne, em Robin & Marian (Robin and Marian, 1976). Ao buscar o trailer do filme no Youtube, me deparei com um pequeno texto do anônimo responsável pela postagem:

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“Considerando todas as coisas, só há uma maneira, terrível e sem volta, de libertar um Robin envelhecido, mas ainda destemido de suas fantasias guerreiras, de seus sonhos de glória eterna que decidiram o caminho de aventura em que ele cavalgou. Ouvindo apenas o seu coração, a bela Marianne, a única capaz de aplicar esta “solução final”, não hesita. E os dois amantes a exalar seus últimos suspiros ao som da comovente música de John Barry não poderiam estar mais inspirados.”

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Marian lhe entrega o arco e Robin dispara a flecha pela janela rumo ao possível céu.

Corta para o poster de Ursula Andress no meu quarto, dividido com meus irmãos ? o cômodo e a imagem da mulher. Quando finalmente a vi em 007 Contra o Satânico Dr. No, compreendi a um só tempo que só mesmo James Bond podia tê-la e a mim só restaria querer ser ele. Afinal, ele é aquele homem que seduz uma mulher, de perfil, debaixo do batente da porta.  Isso não é para qualquer homem. Isso não é para qualquer ator, isso é para bem poucos. Isso é para Sean Connery.

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Connery, Sean Connery

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por Miguel Forlin

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Eu era criança quando vi Sean Connery pela primeira vez. Foi enquanto assistia a Indiana Jones e a Última Cruzada (Indiana Jones and the Last Crusade, 1989), numa das muitas noites de sábado que meu pai reservara à exibição de alguns de seus filmes preferidos. Jamais esqueci a primeira aparição daquele rosto. E jamais esqueci o comentário que meu pai sussurou ao pé do meu ouvido: “Esse homem é o James Bond”. Claramente, só fui entender o significado dessas palavras anos depois, quando assisti a 007 Contra o Satânico Dr. No (Dr. No, 1962), também por insistência paterna. Entrementes, o nome do agente secreto ressoou, em minhas reminiscências, como o nome de uma entidade enigmática e portentosa. E assim permaneceu ao longo dos anos, pois são próprias de James Bond essas características, mas, ali, enfim, ele tinha um rosto, o rosto, a face definitiva. Até hoje, quando eu penso em James Bond, penso em Sean Connery.

No entanto, a curiosidade dessa anedota é que os dois papéis que me apresentaram a esse inesquecível artista escocês, coincidentemente ou não, são também os dois papéis pelos quais ele é mais lembrado. Dois momentos distintos de sua vida, um na juventude, outro na velhice, mas ambos atados pela força do imaginário coletivo, que, para assim sê-lo, compõe-se das memórias e lembranças invididuais de cada um dos seus membros. Não diminuo o poder dessa força, há mais entre as imagens consolidadas pela coletividade e a suposta ignorância que a sustenta do que deseja a nossa vã arrogância. Certos motivos e razões não cabem a nós entender. Mas agradeço à cinefilia por ter me mostrado que a carreira de Sean Connery ia muito, muito além.

E não me refiro apenas a Os Intocáveis (The Untouchables, 1987), do Brian De Palma, ou à Marnie, Confissões de uma Ladra (Marnie, 1964), do Alfred Hitchcock, obras-primas que se não têm, no imaginário coletivo, a presença constante dos filmes das franquias 007 e Indiana Jones, ainda assim se destacam, nele, com certa notoriedade. Falo dos filmes não vistos ou esquecidos pela grande maioria, muitos contendo algumas das maiores performances de Sean Connery e muitos dirigidos por cineastas que, assim como os trabalhos do ator nesses filmes, foram sendo injusta e progressivamente negligenciados, até mesmo por alguns críticos e cinéfilos.

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Até Os Deuses Erram, 1974, de Sidney Lumet (Reprodução)

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Felizmente, as falhas da memória não são suficientes para apagar o passado. E, nos filmes em que atuou sob o comando de Sidney Lumet, Mikhail Kalatozov, Martin Ritt, John Milius, John Huston, Fred Zinnemann, John Boorman e John McTiernan, por exemplo, Connery mostrou novamente e sob diferentes formas que também foi um dos grandes atores da história do cinema. O que vemos nas suas atuações em filmes como Marnie, Os Intocáveis, Indiana Jones e a Última Cruzada e os da franquia 007 se repetiu muitas vezes e de maneira variada nesses filmes menos conhecidos: a presença hipnótica, a personalidade, o timing cômico, a intensidade dramática, o talento de articular a própria imagem, a entrega, o amor pelo seu ofício.

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Ver-te-ei no Inferno, 1970, de Martin Ritt (Reprodução)

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Muito provavelmente, Sean Connery continuará sendo lembrado por seus papéis mais famosos. E não há nenhum problema nisso, é até natural que seja assim, uma vez que esses papéis têm uma importância biográfica para várias pessoas, se confundido até com momentos marcantes de suas histórias, como o meu relato no início deste texto exemplifica perfeitamente bem. Se a memória pode ser descrita como um imenso corredor de faces humanas, a de Connery, para muitos, é uma das que o preenche, face memorável a acompanhar as de amigos, amantes e pais.

Mas não nos esqueçamos de que Sean Connery também foi muito mais do que isso. Ele não foi somente James Bond ou o pai do arqueólogo mais famoso do mundo. Ele foi Sir Sean Connery, e, entre as raínhas às quais serviu, apenas uma delas foi a Majestade de toda a sua vida profissional: a arte da performance.

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