Ciências

Um espírito brilhante e a ciência em seu estado da arte

Foto: Roberto Keller-Perez

Sábado, dia 12 de maio de 2018, Instituto Moreira Salles no Rio de Janeiro. Uma Maratona Piauí Serrapilheira faz subir ao palco cientistas e jornalistas para conversar sobre aspectos do estado da arte da ciência no Brasil. O Instituto Serrapilheira, lançado no ano passado, já financia jovens doutores em instituições no país, e neste ano abriu uma chamada para o financiamento da divulgação científica.

Inaugurando a sua série BITS de divulgação científica, este Estado da Arte publica nas próximas semanas uma série de cinco textos relacionados a cada uma das conferências apresentadas na maratona. Começamos pelo fim da jornada, ouvindo um estrangeiro que veio nos oferecer seu agudo olhar sobre como a ciência pode se tornar “de ponta” no Brasil.

por João Cortese

A conferência depois do pôr do sol, após quase 8 horas de “maratona” científica e jornalística, não parece cansar os presentes. Ao contrário, todos aguçam ainda mais a atenção para escutar um cientista, um pensador, um homem de fala e de ideias fascinantes: o imunologista português António Coutinho.

Coutinho pode ser classificado de diversas maneiras: uma das mais claras é que não lhe falta nada para provocar, positivamente, os espíritos que lhe rodeiam. Cristina Caldas (Serrapilheira), apresentando-o, definiu-o como um “cientista intelectual”. Talvez valesse ainda dizer que se trata de um “espírito” brilhante: não no sentido corrente de “espírito” na língua portuguesa, como algo que simplesmente se opõe ao corpo, mas no sentido do esprit francês: uma inteligência, o “princípio de nossa vida psíquica e intelectual”, como diz a Larousse.

Coutinho foi um cientista de centenas de trabalhos publicados, bem como de intuições profundas, como a de que o sistema imune existe independentemente de estímulos externos. Isso quer dizer que o sistema imune não existe simplesmente como uma resposta a agressões ao corpo, mas é parte constituinte do próprio corpo [1]. Porém a palestra do pesquisador foi principalmente dedicada a questões mais amplas e estruturantes: como pensar a ciência hoje e como fazê-la avançar de maneira fecunda.

A situação é comum a estudantes, principalmente nas áreas de ciências naturais e exatas: procura-se um orientador para realizar uma tese, trazem-se sonhos e ideias e recebe-se um projeto de pesquisa enquadrado numa perspectiva de problemas já definidos. Um problema grave, diz Coutinho, pois este orientador transmite provavelmente aquilo que recebeu já de seu próprio orientador, caracterizando aquilo que poderíamos considerar como uma “endogenia” do meio científico-acadêmico. Na ciência, ressaltou Coutinho, cabe, ao contrário, ousar. Por incrível que pareça, do ponto de vista institucional, como já diria o filósofo da ciência Thomas S. Kuhn, a ciência é em geral… conservadora. As célebres revoluções científicas das quais Kuhn falou devem se nutrir de muito arroz com feijão antes de chegarem aos rostos de Einstein estampados (com a língua de fora) nas camisetas de adolescentes. Em poucas palavras: na ciência importa arriscar e para isso é preciso liberdade. Se queremos que os jovens tragam novas questões, é preciso que eles possam colocar questões.

Mas questões são precisamente aquilo que cabe a filosofia colocar perenemente, alguns poderiam crer: nada mais contrário à realidade quanto crer que tal tarefa é exclusiva. Como Coutinho bem lembrou, na ciência antes de mais nada importa saber colocar as boas questões.

É claro que a liberdade não se exerce “do nada”: como Coutinho ressaltou, para que o estudante saiba escolher uma questão pertinente, é preciso antes educá-lo. É aqui que a coisa se torna complexa (e interessante): devemos pensar num sistema de educação que enriqueça não suprimindo as questões, mas as abrindo. É só assim que faremos ciência criativa.

Não que a educação prévia tenha que se tornar impositiva e limitadora: só há regras, disse Coutinho, quando não se compartilham princípios. Quanto mais compartilhamos princípios e valores, menos precisamos de regras. Caberia portanto pensar em uma educação no sentido mais amplo, que nos fizesse ganhar basescomuns, a partir das quais compartilhássemos questões. Não é sonhar demais pensar que, antes de um doutorado ou de uma graduação, tais tipos de questões deveriam ser suscitados desde o ensino fundamental.

Nessas condições, pode-se fazer boa pesquisa. Niels Kaj Jerne (Nobel de medicina de 1984), um dos mestres de Coutinho, definia a boa ciência por três regras: a primeira é que é preciso saber o que você quer saber. Uma interpretação livre seria a de que uma questão que não seja viva para aquele empenhado em respondê-la nunca será frutífera.

Assim é que, chegado no Instituto Karolinska, Coutinho se deparou com um orientador (Göran Möller) que não lhe deu um problema. Durante seis meses, deixou-lhe a buscar, sozinho, uma questão cuja qualidade importasse. Depois disso, disse Coutinho, foi fácil: uma tese terminada em mais um ano e meio e artigos na Nature

Se não sabe exatamente o que quer saber, o estudante não estará pronto para se dedicar de maneira profunda a um problema: Coutinho contou que a segunda regra de Jerne era pensar na sua questão o tempo todo. Isso não significa pensar na questão pela integralidade do tempo, pois é importante (e necessário) que o cientista faça outras coisas, tenha uma vida social e cultural. Mas não se deve por isso tratar superficialmente um problema que, como tantos em ciência, é densamente complexo: ele merece nossa atenção concentrada a ele.

E quanto à terceira regra? Depois de um resultado encontrado (ou não), Jerne dizia: é preciso encontrar a continuação mais perspicaz. A pesquisa não se encerra: uma questão respondida de maneira profunda cria na verdade uma árvore, uma série de outras questões que se ramificam a partir dela. Cabe continuar.

E se a continuação é ousada, é inovadora, é corajosa, ela será arriscada, ela será cheia de incertezas. A ciência pode errar: eis o que comumente não queremos ver. Mais: para encontrar questões interessantes, a ciência precisa poder errar, e o apoio institucional à ciência de ponta nunca poderia ignorar isso, tendo de deixar as condições plenas para tentativas incertas.

Vale a este respeito lembrar uma passagem de Gaston Bachelard sobre a verdadeira natureza da atividade científica:

Aos cientistas, reclamaremos o direito de desviar por um instante a ciência do seu trabalho positivo, da sua vontade de objetividade, para descobrir o que permanece de subjetivo nos métodos mais severos. … Perguntaremos pois aos cientistas: como pensais, quais são as vossas tentativas, os vossos ensaios, os vossos erros? Quais são as motivações que vos levam a mudar de opinião? Por que razão vocês se exprimem tão sucintamente quando falam das condições psicológicas de uma nova investigação? Transmiti-nos sobretudo as vossas idéias vagas, as vossas contradições, as vossas idéias fixas, as vossas convicções não confirmadas. Dizem que sois realistas. Será certo que esta filosofia maciça, sem articulações, sem dualidade, sem hierarquia, corresponde à variedade do vosso pensamento, à liberdade das vossas hipóteses? Dizei-nos o que pensais, não ao sair do laboratório, mas sim nas horas em que deixais a vida comum para entrar na vida científica. Dai-nos não o vosso empirismo da tarde, mas sim o vosso vigoroso racionalismo da manhã, o a priori do vosso sonho matemático, o entusiasmo dos vossos projetos, as vossas intuições inconfessadas.[2]

A ciência é uma atividade criativa, feita de tentativas e erros. A história de certas descobertas poderia encobertar quantos testes mal-sucedidos levaram a ela, quantas hipóteses testadas, quantas ideias que não frutificaram… Para que se chegue a uma boa ciência, é preciso dar espaço e tempo para os pesquisadores experimentarem.

Mas como identificar a boa ciência? Foi uma das questões colocadas por Marcelo Leite (Folha de S. Paulo) a Coutinho. Este comparou a questão de como reconhecer a boa ciência àquela de reconhecer a boa poesia. Quando lemos um bom poema, disse, temos a impressão de que ele sempre existiu. Por que a ciência não seria também assim? Mas na ciência contemporânea, ressaltou Coutinho, há métricas demais. Tudo é quantificado, da participação em eventos à publicação de artigos. Desnecessário lembrar que é – só – isso que guia nossas políticas de financiamento científico, para desespero de alguns pesquisadores.

É preciso autonomia de pensamento e de orçamento – como Coutinho contou ter promovido no Instituto Gulbenkian de Ciência. A condição material para a pesquisa é fundamental – o cientista deve ter a infraestrutura suficiente para poder pesquisar.

Como fazê-lo no Brasil? Coutinho levantou o aspecto da burocracia imensa das universidades de nosso país, num sistema piramidal frequentemente sem um plano diretor bem definido. Uma possibilidade, segundo ele, seria que comecemos a fazer pesquisa fora das universidades. Neste sentido, o nascimento de instituições privadas de pesquisa, comuns por exemplo nos EUA, poderia ser bem vindo. Por outro lado, poderíamos pensar no aumento de instituições estatais de pesquisa fora das universidades, como o CNRS francês. Desnecessário dizer que uma coisa não exclui a outra – bem ao contrário.

Mas além das questões institucionais, Coutinho abordou algo sem o que boa pesquisa não pode ser feita: as pessoas. Falou com carinho de Charley Steinberg (1932-1999), nome importante da biologia do século XX e outro de seus mestres. Contou que durante sua estada no Instituto de Imunologia de Basel, Steinberg estava sempre na cafeteria, conversando com quem passasse por lá e dando conselhos sobre quais experimentos seriam interessantes ou não, mas pouco publicando. É claro que Steinberg cairia fora de qualquer métrica científica contemporânea possível – mas ele era a pessoa mais importante do Instituto. Cabe saber deixar os pesquisadores experientes mais livres, para que sejam eles que possam avaliar os jovens e mostrar quais pesquisas valem a pena.

Devemos acreditar que a boa pesquisa virá portanto de certas pessoas, disse Coutinho. Contou que no Instituto Karolinksa seu orientador lhe deu duas listas quando ele por lá chegou: doze nomes de pessoas, de quem ele deveria ler tudo o que pudesse – e sessenta nomes de pessoas de quem ele deveria evitar ler os trabalhos. É claro que isso pode soar de espírito pouco aberto à ciência de um mundo globalizado, colapsando também com uma lógica do interesse institucional e com o Q.I. – “Quem Indica” – brasileiro. Mas a mensagem de Coutinho por trás disso é clara: a comunidade científica é hoje grande demais para que se conheça todas as pessoas. E, no entanto, o que importa é conhecer pessoas: é assim que ideias criativas e um entusiasmo pelas questões podem ser transmitidos. É só num diálogo pessoal que o conhecimento pode se tornar vivo. Coutinho disse que isso pode ser “conversa de velho”, mas que importa aos jovens perceberem as outras possibilidades hoje, para não se restringirem às métricas científicas.

Em outro movimento inesperado, ao chegar ao Instituto Gulbenkian de Ciência, em 1998, Coutinho dispensou todo o pessoal para outros setores das universidades. Ora, diz ele, nunca vemos uma universidade “morrer” – e, logo, do ponto de vista da biologia, as universidades não estão “vivas”. Para que uma instituição possa ser viva, propôs Coutinho, ela deve ter um ciclo de vida: a instituição nasce, cresce, amadurece, eventualmente reproduz-se e depois pode morrer.

É importante ainda definir o tamanho da instituição, pois por um lado grupos muito isolados nunca serão de excelência e por outro podemos supor que para uma instituição grande demais é difícil manter a sua unidade.

As preocupações de Coutinho com as condições das instituições, com os grupos de pesquisa, com as pessoas que participam aí, são todos fatores que apontam para a dificuldade de se homogeneizar absolutamente todas as experiências de pesquisa. Poderíamos assim chegar a uma ciência da cooperação e não da competição.

Valeria, assim, repensar o sistema de educação para a pesquisa que temos no Brasil. “Se for verdade, como Galileu afirmou, que a natureza fala a linguagem da matemática, a maioria de nós continua surdo”[3]. A constatação de George Steiner parece ser particularmente verdade num país no qual praticamente metade dos estudantes do último ano do ensino público médio não domina o uso da prosaica regra de três[4].

É preciso mudar a sociedade, disse Coutinho, de tal maneira que ela eleja para fazer ciência quem gosta de fazer ciência. Podemos acrescentar que precisamos mostrar a beleza do caminho científico, para que ele se torne um dos caminhos almejados pelos jovens. O único caminho para isso é criar uma cultura científica no país, um letramento científico que mostre como a ciência é uma atividade rica, cheia de ímpeto para conhecer, para compreender o mundo.

Quanto à divulgação científica, disse Coutinho, seu problema é que ela geralmente preocupa-se em transmitir o conteúdo da ciência, e não o progresso científico. Ora, a imagem de ciência trazida por Coutinho é uma que abarca as tentativas e os erros, o elemento humano incerto, tanto falível quanto criativo.

Em um livro recente, Charles Pépin dá atenção à importância do fracasso e do erro:

Thomas Edison falhou tantas vezes antes de inventar a lâmpada elétrica que um de seus colaboradores lhe perguntou como podia suportar tantos fracassos, ‘milhares de fracassos’. ‘Eu não fracassei milhares de vezes, eu consegui fazer milhares de tentativas que não funcionaram’, respondeu o inventor. Thomas Edison sabia que um cientista só aprende errando, e que cada erro corrigido é um passo na direção da verdade. [5]

Como trazer este espaço da tentativa e do erro para as instituições da ciência? Certas tentativas parecem ter dado um passo neste sentido: pensemos no Institute for Advanced Study de Princeton, que dá amplo tempo livre de pesquisa a seus integrantes. Diz-se que o maior prazer de Albert Einstein quando estava por lá era poder voltar para casa conversando com Kurt Gödel, o grande matemático do século XX que demonstrou os Teoremas da Incompletude [6]. O caráter pessoal da pesquisa, como lembrou Coutinho, é sempre fundamental. Além de bibliotecas e laboratórios, pode ser essencial para a pesquisa uma… cafeteria. É apenas compartilhando que faremos boa pesquisa.

“Dizem que as instituições estão cheias, não há mais espaço” – ora, disse Coutinho, estão cheias do que já se faz; mas há o novo! Foi assim que ele contou ter encontrado espaço para fazer coisas novas em Portugal, a despeito de todo o pessimismo de seus conterrâneos.

Coutinho lembrou ainda de uma passagem das Cidades Invisíveis, de Ítalo Calvino:

Marco Pólo descreve uma ponte, pedra por pedra.

– Mas qual é a pedra que sustenta a ponte? – pergunta Kublai Khan.

– A ponte não é sustentada por esta ou aquela pedra – responde Marco –, mas pela curva do arco que estas formam.

Kublai Khan permanece em silêncio, refletindo. Depois acrescenta:

– Por que falar das pedras? Só o arco me interessa.

Pólo responde: – Sem pedras o arco não existe. [7]

Entre os componentes e a visão do todo, ambos são importantes na ciência. “Precisamos saber quais são as pedras”, disse Coutinho, “mas não podemos perder de vista o arco. E aí é que está a multidisciplinaridade”. Nosso “arco” é uma cultura científica a construir no país; nossas “pedras”, espíritos como Coutinho, que podem iluminar o caminho para tantos.

O vídeo da palestra pode ser assistido na íntegra aqui.

[1] Ver, por exemplo, Coutinho, A., Forni, L., Holmberg, D., Ivars, F., & Vaz, N. (1984). From an Antigen-Centered, Clonal Perspective of Immune Responses to an Organism-Centered, Network Perspective of Autonomous Activity in a Self-Referential Immune System. Immunological reviews79(1), 151-168.

[2] Bachelard, A filosofia do não, São Paulo: Abril Cultural, coleção Os Pensadores, 1978, p. 8.

[3] George Steiner, Gramáticas da Criação, São Paulo: Globo, 2003  p. 190.

[4] Folha de São Paulo, editorial de O editorial de 3 de fevereiro de 2017 sobre a gravidade do resultado das provas do Saresp.

[5] Charles Pépin, As virtudes do fracasso, Estação Liberdade, 2018. Pépin escreve ainda: “Charles Darwin abandonou, sucessivamente, seus estudos de medicina e teologia. Foi então que embarcou para a longa viagem no Beagle, que revelaria sua vocação de descobridor. Sem seus fracassos de estudante, ele jamais teria estado disponível para essa viagem que mudaria sua vida e, além disso, a própria ideia que nós, humanos, tínhamos de nossa humanidade”.

[6] Ver Impossível? e https://www.bbc.com/portuguese/geral-43618903

[7]Ítalo Calvino, Cidades Invisíveis, São Paulo: Folha de São Paulo, Biblioteca Folha 19, p. 35.

João Cortese

João Cortese é pesquisador do Núcleo de Bioética da Fundação José Luiz Egydio Setúbal. Professor do Instituto de Biociências da USP, do Ibmec-SP e da Faculdade Paulo VI.