Cultura

Unorthodox: retrato impreciso do judaísmo – e tudo certo

por Thiago Blumenthal Viviane Auerbach

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Unorthodox (Reprodução: Esquire)

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Fuçando pelos diários de Susan Sontag, achamos aquela listinha do que não fazer em eventos literários em Nova York: não comentar muito. Tentar ficar na minha.

Bem, simples não é. Nunca foi. E é o que não faz a série Unorthodox, recentemente lançada na Netflix, um recorte da história real de Deborah Feldman, judia que abandonou a comunidade Satmar no Brooklyn/NY, e o que acontece com uma jovem que ousa sair daquele universo.

O livro de Feldman, lançado em 2012, tornou-se um best-seller. Um texto sensível, sincero, sem buscar num estilo forçoso a história de si mesma. Dá pra ler em um ou dois dias. Há momentos imprecisos, que causaram alguma repercussão negativa nos círculos mais restritos de Williamsburg e por parte da intelligentsia nova-iorquina.

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Deborah Feldman (Acervo Literaturfests, München)

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Tais imprecisões foram todas passadas ali para a série da Netflix, porém com cores um tantinho mais popularescas. Aquilo de quando uma lente de aumento mais distorce do que ajuda a enxergar. E, sem querer discordar de Nelson Rubens, além de aumentar, inventa. Eruv em Williamsburg? De onde tiraram isso? São questões, evidentemente, muito próprias da escola Satmar do chassidismo, que nem os judeus fora dali conhecem bem a fundo, o que dirá o espectador gói que, ao fim de mais um dia de isolamento, se aconchega no sofá para ver uma série “sobre os judeus”.

Parêntese: o eruv é um espaço delimitado onde determinadas regras do judaísmo podem ser quebradas durante o Shabat. Veja, não estamos aqui a falar sobre o consumo de carne de porco ou o uso de uma minissaia, e sim, de tarefas mais prosaicas, que são proibidas dentro da ortodoxia, como carregar uma bolsa ou empurrar um carrinho de bebê. Williamsburg, como o centro de comunidades extremamente cheias de regras não tem um eruv, mas para a trama, o cenário de impossibilidades que a nossa protagonista-heroína vivia, era necessária essa pitada, vamos chamar assim: poética.

Como uma comunidade pequena e até um tanto recente no país, ainda somos um enorme enigma no diverso tecido social brasileiro. “Diferentes”, “inteligentes”, “você é o primeiro judeu que eu conheço”, são alguns dos comentários que nos acostumamos a ouvir ao longo da vida. Até chegar em “vocês deram umas exageradas nos números da Segunda Guerra, fala aí” ou “Comunistas de merda” ou “Tudo bolsonarista” é uma questão de minutos, horas, ou, no máximo, uma semana. Está tudo sintetizado naquele conto do Bashevis Singer, “Runners to Nowhere”, em que os judeus, fugindo de tudo e todos, se transformam em todas as cores, todas as ideologias, a gosto do freguês. Pérola da literatura. Ou Diane Keaton, na sacada de seu apartamento, com Woody Allen: então você é o que minha grammy Hall chamaria de “real Jew”, quinze anos de psicanálise, hein… Singer não responde, engole seco o vinho branco. Real Jew my ass, diria o Lenny Bruce. Mas isso já é outro assunto. Ou o mesmo. Vovó Hall de Iowa que decida.

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Diane e Woody, Annie e Alvy

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As imprecisões, sejam elas de ordem técnica ou de adaptação do livro para a série, amplificam esse fetiche do olhar curioso, daquele que visita o zoológico e sai jogando amendoim pros bichos. É que no zoológico a gente não para pra ler a plaquinha de identificação (de cada espécie para entender a família que ela vem, a região), ou pra distinguir um Satmar de um Henry Sobel. Um Gene Simmons de um Rebbe. Todos judeus. Todos judeus muito diferentes uns dos outros, com hábitos alimentares e culturas diversas. A gente sai alimentando os bichinhos como se todos gostassem de amendoim. Alguns detestam amendoim.

O mistério do desconhecido, o fascínio pelo que é diferente, diria o professor de estudos culturais, pode elevar a alma humana. Verdade. Buscamos a elevação humana dia a dia. Mesmo, sem piada ou cinismo. Mas há sempre uma sementinha do mal ali: o fascínio pelo exótico tem um quê de fetiche que termina em um sadismo que ora pode ser divertido, ora pode ser periculoso. É o paradoxo de Unorthodox: a tinta ali é tão pesada, apesar da aparente fragilidade/sensibilidade da protagonista, que a feição no quadro ganha contornos malignos. Moishe, o personagem talvez mais real e verossímil da trama, encarna o típico vilão a ser odiado em dez entre cada dez leitores/espectadores. Moishe, no entanto, é real – com seus vícios, com sua relação conturbada com suas raízes também chassídicas/Satmar e o mundo para além.

O ator que interpreta a personagem, Jeff Wilbusch, é um Satmar, nascido no maior bairro ultra ortodoxo de Jerusalém, Mea Sharim. A história dele também é a história de Unorthodox. Deixou a comunidade aos 13 anos, é o irmão mais velho de 14 filhos, e foi em busca de uma liberdade que sua comunidade jamais poderia proporcionar. Nunca mais voltou.

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Moishe

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O problema de Moishe é que a mão pesou ao recriá-lo para a trama. Ainda assim, Moishe é bem mais formatado que Esty, que acaba, muitas vezes, em uma faceta única em busca de autoridade na sua própria história. Quando a israelense Yael, duríssima, como é o comum do sabra, a rotula como uma máquina de fazer bebês, a nossa protagonista se enfurece, muda a expressão, mas aceita a derrota ao fim do diálogo e reflete que sim, é uma fugitiva tentando tomar as rédeas da sua vida, algo que mulheres, em geral, ainda hoje, conseguem facilmente se relacionar independente de sua religião ou nacionalidade. Ainda nesse ponto, o diálogo traz uma tensão que pode passar despercebida. A impaciência e estranheza do israelense secular com a sua comunidade ortodoxa. Um combate longe de terminar na heterogênea sociedade israelense e na diáspora.

Em uma epifania, (recém-chegada em Berlim), transa com o boa pinta depois de usar um batom chamado “Epiphany”. Os roteiristas parecem ter tirado essa “metáfora” (um bilhão de aspas) de uma Stephenie Meyer. É de uma pobreza para a montagem operacional da personagem que chega a dar pena. Já basta tudo o que ela teve de passar até então. Em tempo: o batom de nome “Epiphany”, que Esty descobre na festa bacana, aparentemente pensada por alguém que trabalha no BuzzFeed, não está no livro de Feldman, apenas na série – por isso jogando isso nas contas dos roteiristas, não no livro.

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Epiphany?

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Para piorar um tantinho, as tais imprecisões geram conclusões de um espectador zero familiarizado com o judaísmo, do básico ao hardcore. Citações erroneamente atribuídas a textos judaicos diversos, o eruv para os Satmar, ou como essa escola chassídica encara o Holocausto. São desinformações que de relato real, memoir, biografia, série baseada em fatos reais, chamem o que quiser, se transformam em um estiramento ficcional grave, a ponto de a contradição não ser uma armadilha retórica para o leitor/espectador, mas um buraco profundo para aquele que narra. Como serei visto de hoje em diante, a partir disso que conto pra você agora.

Esty afirma em determinado momento que precisa “procriar” para compensar pelo que foi perdido no Holocausto. Dá um pulinho em qualquer yeshivá Satmar de Williamsburg e fale em shoá, the Holocaust, ou qualquer sinônimo em iídiche, hebraico ou inglês. É um tabu absoluto. Não se fala nisso. Ter um gostoso bate-papo como aquele que Esty tem com Moishe na simpática pracinha da uber cool Berlim sobre os seis milhões de judeus assassinados pela máquina alemã é algo tão impensável entre os membros da comunidade Satmar quanto uma garota católica, tímida e com medo da madre diretora de sua escola, falar em “primeiro beijo” no intervalo com a amiguinha.

O exemplo é exagerado para fins cômicos, claro; contudo, a equivalência é real. E esse tipo de imprecisão traz uma coceira danada. A ingenuidade de um Yanky, que nunca vira um smartphone na vida. Estão pintando os Satmar ou os amish? Óbvio que grupos ultra sectários como o Satmar estão distantes da nossa realidade – e, por tabela, de tantas e tantas tecnologias –, mas não andam de carroça nas ruas. Parece que, ao falar muito, e demais, e quase verborragicamente, a língua cria vida própria, o teclado digita sozinho. Lembremos de Sontag: melhor não falar muito.

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Susan Sontag

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Está em Hillel, não faça mal a ninguém e está tudo certo. A Torá é basicamente isso. O resto é comentário. Talvez pelos cotovelos. “Unorthodox”, na melhor tradição judaica, comenta – e muito – pelos cotovelos. E está tudo certo. Afinal, oyfn veg shteyt di toyre… ou, de maneira menos ortodoxa, a Torá também sai estrada afora.

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(Reprodução: Netflix)

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Thiago Blumenthal é professor doutor da Universidade Mackenzie.
Viviane Auerbach é jornalista pós-graduada em comunicação pelo Istituto Europeo di Design.