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Sobre os valores do liberalismo

por Denis Coitinho

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Ao ensejo de nos aproximarmos de mais uma eleição municipal no Brasil, que terá por novidade o fim das coligações proporcionais, tendo por consequência que cada partido contará apenas com seus próprios votos para eleger seus candidatos a vereadores, gostaria de identificar algumas ideias básicas de uma das ideologias políticas mais longevas e que ainda disputa os corações e mentes dos eleitores ao redor do mundo — a saber, o liberalismo. Creio que isso seja importante por no mínimo duas razões. Primeiro, o termo no Brasil é muito mal compreendido, tanto por parte de seus defensores e oponentes, bem como pelos eleitores em geral. Pensa-se muitas vezes no liberal como um defensor do laissez-faire e laissez-souffrir, o que encobre a sua posição cosmopolita no plano diplomático e a sua defesa das liberdades individuais no plano comportamental e do progresso no plano social, e isso para não mencionar os liberais igualitários que advogam, inclusive, a justiça social no eixo econômico. Pensar no liberalismo como uma simples defesa do Estado mínimo é um tanto reducionista. Aqui será importante distinguirmos entre liberalismo e libertarismo ou neoliberalismo.

Segundo, como em uma democracia contemporânea o voto implica em escolher um candidato que pertence a um partido político, é importante ter claro qual o conjunto de valores que está em disputa. E em nosso país a tarefa não é nada fácil, pois, inclusive, temos 33 partidos políticos registrados no TSE, embora não tenhamos 33 ideologias distintas, o que cria muita confusão. Um caso paradigmático a esse respeito é que não há nenhum partido político brasileiro que utiliza o termo “conservador” em seu nome, embora muitos defendam a plataforma conservadora, o que geralmente significa apoiar a autoridade no campo comportamental e a tradição no eixo social, defendendo, por exemplo, a criminalização do aborto e consumo de drogas e sendo contrário à adoção por casais gays. O PP (Partido Progressista) e mesmo o PSL (Partido Social Liberal) são claramente conservadores nesse sentido, mas um se denomina “progressista” e o outro “liberal”. O problema é que o conservadorismo enquanto ideologia política é fortemente contrário ao “progressismo” — veja-se os atuais ataques dos neoconservadores a todas pautas progressistas —, bem como o liberalismo não é equivalente ao conservadorismo; ao contrário, são ideologias rivais desde o século XIX.

Dito isto, destaco que o objetivo deste ensaio é buscar esclarecer quais os valores constitutivos do liberalismo. Mas, antes, deixem-me oferecer uma definição inicial e um pouco de contexto.

O liberalismo, grosso modo, é uma doutrina política, social e econômica que tem por base a defesa das liberdades individuais e a igualdade dos seres humanos. Teve início nos séculos XVII-XVIII, nos períodos pré- e pós-revolucionário (Revoluções Gloriosa – 1688, Americana – 1776 e Francesa -1789), e se constitui, ainda, como uma das principais teorias que influenciam as tendências político-econômicas contemporâneas. Em seu surgimento, se contrapôs ao absolutismo e ao mercantilismo. No século XIX, teve como adversário central o conservadorismo. A partir do século XX, o fascismo e o comunismo (Marxismo-Leninismo) também se apresentaram como seus opositores. A ideia básica defendida é que devemos tomar a liberdade e a igualdade como os valores normativos centrais para garantir a legitimidade do poder político, a justiça social e a eficiência econômica. As principais bandeiras desta doutrina são a democracia representativa, o Estado de Direito, a separação dos poderes, os direitos civis, políticos e econômicos, o constitucionalismo, direitos humanos, secularismo, laicismo, igualdade racial e de gênero, internacionalismo, liberdade de expressão, religiosa e de imprensa, capitalismo, livre mercado e equidade na distribuição de oportunidades e recursos.

O liberalismo, tendo surgido como uma oposição ao absolutismo e ao mercantilismo, sendo uma contestação ao status quo. Durante os séculos XVI-XVIII, o absolutismo era a doutrina hegemônica da legitimação do poder político. Defendia que o monarca deveria ter o poder coercitivo absoluto, o que implicava na defesa da soberania do rei e na hereditariedade do poder. Também, defendia uma fundamentação religiosa do poder político e sua unificação, isto significando a não separação e independência dos poderes executivo, legislativo e judiciário. Por sua vez, o mercantilismo era caracterizado pela intervenção do Estado na economia na forma de restrições, privilégios, concessões, subsídios, incentivos e ausência de mobilidade social. Seus principais representantes foram Jean Bodin, Thomas Hobbes, Nicolau Maquiavel, Robert Filmer, entre outros.

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Robert Filmer

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Esta contraposição ao absolutismo se deu com a defesa de governos constitucionais e autoridade parlamentar. Autores liberais, tais como Montesquieu, Voltaire, Locke, Kant e Mill, entre outros, defenderam o princípio de limitação do Estado, implicando na autonomia do indivíduo e sociedade, a soberania do povo (exercida por representantes) e a separação e harmonização dos poderes. Também, defenderam as liberdades individuais, tais como a liberdade de expressão, a liberdade religiosa e de associação, o poder judiciário independente e abolição dos privilégios aristocráticos. Como contraposição à economia mercantilista, autores liberais, como Adam Smith, por exemplo, defenderam o livre mercado, a divisão do trabalho, a abolição das barreiras internas ao comércio, sistema bancário livre e a mobilidade social. Seu argumento pode ser formulado da seguinte maneira: dada a igualdade e liberdade de todos os indivíduos, então, o poder político só será legítimo pela livre aceitação dos envolvidos, devendo estar aberto a todos, bem como a economia só será eficiente e justa sendo tomada como expressão das disposições individuais e empenho correspondente.

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John Stuart Mill

Após as revoluções burguesas do final do século XVIII e início do XIX, se caracterizou como ideologia dominante. No contexto do século XIX, disputava a hegemonia com o conservadorismo, doutrina caracterizada pela crítica aos excessos racionalistas do Iluminismo e pela defesa da tradição, hierarquia, clericalismo e forte papel da sociedade civil. No segundo reinado brasileiro, por exemplo, a disputa se dava entre o Partido Conservador (Regressista) e o Partido Liberal (Progressista). Ainda no fim do século referido, foi criticado pelos socialistas em razão da defesa abstrata aos direitos. No período entre as duas guerras mundiais, seu embate se deu com o fascismo e o comunismo, ambas ideologias que tinham em comum a defesa do poder político autoritário e a crítica aos direitos “burgueses”. Durante o século vinte, sobretudo após o fim da Segunda Guerra Mundial, as ideias liberais se espalharam pelo mundo, haja visto a consolidação das democracias nacionais, a expansão dos direitos civis nas décadas de 60 e 70, a criação da ONU (Organização das Nações Unidas) e da Declaração Universal do Direitos Humanos, que instituiu os valores de liberdade, igualdade, dignidade e bem-comum como critérios normativos centrais para regrar a convivência humana no planeta. Esses ideais liberais se efetivaram nos países europeus que passaram a defender a social-democracia em conexão com o keynesianismo, instituindo o Estado de bem-estar social, que defende a participação do Estado para mitigar os problemas do capitalismo, como o desemprego e a desigualdade.

Nos EUA, segundo a Encyclopaedia Britannica, “[…] o liberalismo está associado às políticas de welfare state do programa New Deal da administração democrata do Presidente Franklin D. Roosevelt, enquanto na Europa é mais comumente associado a um compromisso com políticas econômicas de governo limitado e laissez-faire” (Verbete Liberalism). Nos EUA e Canadá, a palavra “liberalismo” refere-se ao “liberalismo social”. No contexto europeu e latino-americano, a palavra “liberal” ou “neoliberal” designa em geral os defensores da liberdade econômica e Estado mínimo, o que é conhecido por “libertarismo” na América do Norte. A principal divergência estaria na indagação se o governo deveria promover a liberdade individual ou apenas protegê-la.

Hayek e Keynes

A despeito da dificuldade em caracterizar e definir uma doutrina tão complexa e já tão longeva, gostaríamos de destacar suas ideias centrais, considerando tanto o liberalismo clássico quanto o contemporâneo. Assim, o liberalismo é uma teoria política, moral e econômica que defende o progresso da humanidade, a neutralidade ética estatal, a tolerância como virtude pública central e o livre mercado com justiça social. Vejamos.

O liberalismo pode ser entendido como iluminista por sua defesa do progresso humano. O Iluminismo foi um movimento baseado na razão, confiando na capacidade humana de reorganizar a sociedade com princípios racionais, possibilitando a superação dos preconceitos que eram vistos como causas da opressão. Como explicado por I. Kant, o iluminismo ou esclarecimento seria “[…] a sai?da do homem de sua menoridade, da qual ele pro?prio e? culpado”, sendo a coragem de saber o seu lema (“Resposta à questão: o que é Esclarecimento?”, 1784). Voltaire, Diderot, D’Alembert e Rousseau, por exemplo, importantes representantes do iluminismo francês, tinham como pauta a defesa da ciência para melhorar a vida humana, a rejeição dos privilégios de classe e da tirania, a defesa dos direitos naturais de vida, liberdade e igualdade e a universalização do conhecimento. Estas ideias, reunidas na Encyclopédie, são reconhecidas como a base da Revolução Francesa de 1789, que acabou com os privilégios da nobreza e do clero e instituiu a República.

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Immanuel Kant

Esse caráter progressista do liberalismo pode ser observado, inclusive, na crítica feita por Edmund Burke, em Reflexões sobre a Revolução na França (1790), a respeito do otimismo iluminista em uma ordem futura e a sua arrogância racionalista ao abolir a tradição. Mesmo Adam Smith, conhecido como o pai do liberalismo econômico, foi um importante representante do iluminismo escocês, que se caracterizou pela busca do progresso social, vendo o sectarismo e o fanatismo como corruptores dos sentimentos morais e tomando a ciência e a filosofia como “o grande antídoto ao veneno do entusiasmo e da superstição” (A Riqueza das Nações, 1776, V.i.g.14).

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Adam Smith

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A segunda ideia é a defesa intransigente da neutralidade ética estatal, se contrapondo ao paternalismo. Com a perda do fundamento religioso da política, os liberais defenderam a distinção entre as esferas privada e pública, significando que o Estado só poderia obrigar os indivíduos no âmbito político, assegurando os direitos à vida, propriedade, integridade e liberdade, por exemplo, enquanto na esfera privada, como a religiosa e moral, eles deveriam exercitar sua autonomia. Isto implicou em uma distinção entre os deveres perfeitos, como o de não matar e roubar, que podem ser exigidos pela lei via punição, e os deveres imperfeitos, como ser caridoso e moderado, que devem ser decididos individualmente. John Stuart Mill, em Sobre a Liberdade, defende o princípio político liberal que diz que “[…] o único propósito para o qual o poder pode ser exercido com justiça sobre qualquer membro da comunidade civilizada, contra a sua vontade, é o de evitar o dano aos outros” (1859, p. 56). Isso excluiria qualquer intervenção estatal no que diz respeito ao próprio bem dos cidadãos. Questões comportamentais, por exemplo, como o consumo de drogas, aborto e eutanásia, devem ser decididas individualmente.

Com a separação das esferas pública e privada, a tolerância surge como a virtude central para os liberais por poder garantir a estabilidade social perante o pluralismo. A tolerância é uma atitude que exige de no?s o controle de certos sentimentos de contrariedade e desaprovac?a?o aos diferentes, isto e?, ela parece exigir que consigamos conviver com as diferenc?as religiosas, culturais, políticas, morais etc. Como bem dito por Scanlon em “The difficulty of tolerance”, “[…] a tolerância requer que aceitemos as pessoas e consintamos em suas práticas mesmo quando as desaprovamos fortemente” (2003, p. 187). Esta ideia surge com John Locke em sua defesa da tolerância religiosa. Na Carta acerca da Tolerância (1689), elabora uma distinção entre o poder político e religioso, defendendo a escolha individual. Estabelece, assim, o escopo do poder político, que deveria se restringir ao bem público, não intervindo na esfera religiosa, uma vez que o cuidado das almas não seria incumbência do magistrado civil, mas estaria sob a responsabilidade do indivíduo, uma vez teria relação com a persuasão interior da mente e não com uma obrigação externa. Dado a existência da pluralidade, o liberalismo compreende a virtude da tolerância como a garantia da convivência pacífica. Como dito por Mill, “A humanidade terá muito a ganhar com a mútua tolerância para que cada um viva de acordo com o que lhe parece melhor para si mesmo do que impondo a cada um que viva como parece melhor a todos os outros” (1859, p. 59-60).

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John Locke

E, do ponto de vista econômico, o liberalismo defende o livre mercado ou capitalismo, isto é, um sistema em que as trocas comerciais entre os agentes devem ocorrer sem a intervenção estatal. É caracterizado pela relação de trocas voluntárias, divisão do trabalho e propriedade privada dos meios de produção. Se contrapôs, no passado, ao Mercantilismo e, contemporaneamente, se opõe ao Comunismo, pois em ambas economias há um grande controle do Estado. A ideia básica é que o intervencionismo é tanto ineficiente quanto injusto. Agora, isto implica na defesa de um Estado mínimo? Apenas para os que adotam a visão “libertária”, como Hayek, Mises e Friedman. Para os que adotam uma posição “igualitária”, assim como Rawls, Dworkin e Sen, o Estado tem o papel de promover a liberdade e igualdade, especialmente garantindo os “bens primários” ou as “capacidades” que seriam necessárias para realizar os planos de vida. Até mesmo Smith defendeu a intervenção do Estado para acabar com a pobreza, financiar a educação, estradas e comunicações, e isto a partir de um princípio equitativo na tributação, estipulando que o imposto pago deveria ser proporcional ao rendimento de cada um (A Riqueza das Nações, V.i.e-i; V.ii.b.3). Considerando a sua história, tanto a bandeira do livre mercado como a da justiça social parecem muito caras ao liberalismo.

É claro que muito mais deveria ser dito dada a complexidade desta ideologia, mas espero que a identificação destes quatro valores liberais possa auxiliar-nos em futuras escolhas.

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John Rawls

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Parte deste texto será publicada como verbete “Liberalismo”, no Dicionário de Cultura de Paz, editado por Paulo Nodari e Luiz Síveres, a ser lançado brevemente.

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Denis Coitinho

Denis Coitinho é professor do PPG em Filosofia da Unisinos e Pesquisador do CNPq. Doutor em Filosofia pela PUCRS, com pós-doutorado na London School of Economics e na Universidade de Harvard. É autor de Justiça e Coerência e Contrato & Virtudes, ambos por Edições Loyola.