Cinema

Ver ou não ver: a mise-en-scène no cinema de Claude Chabrol

por Miguel Forlin

Na filmografia de Claude Chabrol, Ciúme – O Inferno do Amor Possessivo ocupa um espaço de pouco destaque. Embora tenha recebido algumas avaliações positivas na época do lançamento e figurado na lista dos melhores filmes de 1994 da revista Cahiers du Cinéma, o longa sempre foi visto como uma obra menor, incomparável com os resultados obtidos pelo cineasta nas décadas de 1960 e 1970. Segundo alguns críticos, a indecisão de Chabrol entre manter o mistério de um possível adultério ou se aprofundar na patologia mental do protagonista faz com que o filme se divida em dois, com cada uma das partes trilhando caminhos diferentes. Outro revés comumente apontado é que nenhuma das intenções temáticas são desenvolvidas satisfatoriamente, o que resulta numa narrativa de possibilidades não concretizadas. 

No entanto, independentemente da correção desses apontamentos, Ciúme – O Inferno do Amor Possessivo raramente é analisado a partir de uma perspectiva mais ampla, em que os seus principais aspectos e temas podem ser colocados ao lado das características de outros filmes do diretor. Essa ausência se torna ainda mais preocupante quando se nota que, mesmo abordando alguns dos assuntos mais trabalhados por Chabrol ao longo de sua carreira ? o ciúme e o adultério ?, o longa de 1994 exerce uma resistência única no conjunto da obra. Enquanto as demais produções incentivam o espectador a desenvolver um olhar suspeito acerca das coisas, Ciúme – O Inferno do Amor Possessivo nos revela os perigos de enxergar além do que está visível.

Sutilmente, essa escolha introduz uma nova questão no corpo de trabalho do cineasta. É sabido que o grande tema de Chabrol  sempre foi o embate entre aparência e essência. Na maioria dos seus filmes, isso tomou forma através de comportamentos secretos e ações ilícitas. Adúlteros e assassinos são personagens recorrentes na filmografia chabroliana.  Já a máscara por trás da qual se escondem é a do burguês comportado e defensor dos bons costumes. Em Ciúme – O Inferno do Amor Possessivo, há a presença de muitas dessas características: os personagens principais são donos de um elegante hotel numa cidade de veraneio e levam uma vida aparentemente feliz (como os planos e as elipses iniciais indicam), mas existe a suspeita por parte do marido de que a esposa o está traindo. 

Entretanto, de acordo com as informações disponibilizadas pela história, essa desconfiança nunca é confirmada. Quando surgem os créditos finais, não sabemos se Nelly (Emmanuelle Béart) traiu ou não Paul (François Cluzet). Aliás, é a ânsia de tornar as suas suspeitas verdadeiras que faz o protagonista romper com a realidade e acreditar nas próprias visões. Ora, é perceptível que há uma contradição entre a maneira como essa história se desenrola e as outras tramas narradas pelo diretor. O mesmo sujeito que finalizou o seu último filme com os versos “Sempre há uma outra história, há mais do que os olhos podem ver” (de W. H. Auden) está nos mostrando justamente as consequências nefastas de ir trás desses elementos invisíveis.

Analisando obras como A Mulher Infiel, O Açougueiro e Inspetor Bellamy (para nos atermos às fases de ouro e final de Chabrol), percebe-se a mesma problemática. No primeiro filme, é novamente narrada a história do marido que desconfia da esposa, com a diferença de que, nesse caso em particular, realmente existe uma traição. No segundo, uma professora confirma a suspeita de que o seu amigo é o assassino responsável pela morte de várias garotas na região. No terceiro, o bondoso protagonista guarda um segredo terrível do seu passado. Em todos esses longas, é através da busca por aquilo que não está inicialmente visível que a verdade surge. 

Ciúme – O Inferno do Amor Possessivo, por sua vez, apresenta o oposto. Diferentemente de Otelo, em que o espectador acompanha a armação de Iago, o filme de Chabrol não permite que o espectador enxergue a situação objetivamente. A posição do público é parecida com a do leitor de Dom Casmurro: ver a ação pelos olhos do protagonista, entendendo que tanto as idiossincrasias do personagem quanto as suas construções mentais se confundirão (essa é, inclusive, uma das escolhas que define a lógica visual e narrativa do longa e oferece a Chabrol a possibilidade de transcender os aspectos temáticos para redefini-los através de elementos formais).

Todavia, assim como no romance de Machado de Assis, a subjetividade do personagem principal é incapaz de provar a infidelidade da esposa. Paul não testemunha atos claros de traição. O que enxerga são distorções provocadas pela vontade de ver um comportamento que justifique a sua desconfiança. Em outras palavras, no afã de se deparar com uma determina imagem, ele a cria artificialmente (como os protagonistas de Um Corpo que Cai e Trágica Obsessão, de Alfred Hitchcock e Brian De Palma, respectivamente). Já em termos psiquiátricos, é um típico caso de paranoia (como a do personagem principal de O Alucinado, de Luis Buñuel). Porém, todos esses dados ? que soam apenas distintos ?, quando vistos sob à luz da mise-en-scène, adquirem outro sentido e revelam uma visão de mundo diferente.

Certa vez, Mehdi Benallal fez as seguintes afirmações sobre o diretor francês: “Chabrol terá sido um dos raros cineastas contemporâneos para quem a mise-en-scène é um absoluto e o absoluto da mise-en-scène é a sua supressão diante da realidade. (…) Chabrol passou a maior parte de seu tempo, ao menos desde Betty – Uma Mulher Sem Passado, e talvez desde sempre, a se afastar da história que contava para se aproximar da realidade filmada”. Sobre o recorte organizado que um filme faz do mundo, ele concluiu: “Um filme teria, portanto, a ver com a “realidade”, com a condição que, do início ao fim do caminho que ele nos faz tomar, tudo aquilo que ele nos mostra remeta a outra coisa, e trama com essa outra coisa, por desdobramento ou oposição, redes de sentidos calculadas e incalculáveis.” Acerca disso, Chabrol disse: “A acumulação de detalhes não é feita para ser completamente apreendida pelo espectador, mas para que ele apreenda apenas um pouco e que sinta uma sensação estranha”.

Pois bem, se a mise-en-scène é um tudo e o tudo a seu respeito é a supressão do artista, o que vemos em Ciúme – O Inferno do Amor Possessivo é o que há para ver. Como o que há para ver é uma mulher que nunca é infiel, conclui-se que os pensamentos do protagonista são infundados. O que os olhos não veem não está revelado na mise-en-scène. Nesse sentido, o invisível está esperando para se manifestar fisicamente. Até que isso aconteça, se exige do sujeito uma paciência pelo porvir (esse espaço pode ser preenchido por algum tipo de fé, a qual varia de acordo com a particularidade da situação). Se o filme termina de maneira ambígua, sem um fim propriamente dito, é porque ele também se encerra num momento de espera.

Contudo, há uma consideração de ordem moral a ser feita. Como “sempre há outra história, há mais do que os olhos podem ver”, torna-se importantíssimo lembrar que, ao nos fazer olhar o mundo através de Paul, as edificações abstratas do personagem também são cenas que ele e o espectador veem. A montagem as coloca lado a lado com as que se desenvolvem concretamente. Se o que ele enxerga são instantes de traição, o que está além é justamente a fidelidade. Aquela mulher de gestos expansivos, personalidade extrovertida e sensualidade exuberante é fiel. Essa descoberta, inclusive, é uma das promessa finais do filme, quando o protagonista percebe que está insano e tenta clarear a mente dizendo “Deixe-me ver”. Em teoria, é isso que se manifestará no futuro. Caso ele seja capaz de diferenciar a realidade da imaginação, perceberá que não testemunhou um adultério, mas provas de amor. Uma vez feita a distinção, o que a mise-en-scène retratou de real e é uma fidelidade contínua (o crucifixo que Nelly sempre carrega no peito é um símbolo dessas características positivas). 

Abarcando toda a obra de Chabrol, essa resolução sinaliza um otimismo raro. Nos longas mencionados, o que estava escondido sempre é algo ruim. Em Ciúme – O Inferno do Amor Possessivo, ocorre o contrário. Assim, investigar o que está debaixo dos panos vale tanto para o Bem quanto para o Mal. E isso só foi possível a partir da mise-en-scène. É ela que revela uma lógica diferente e estabelece conexões possíveis, podendo ser opostas ou equivalentes. Eventualmente, é nela que também se mostrará a verdade ainda não visível. A única coisa que Chabrol nos pede é que, enquanto aguardamos, tenhamos um pouco de fé e confiança.

Miguel Forlin

Miguel Forlin é crítico de cinema e colaborador de diversas publicações na área.