Cinema

Visconti e Mahler, muito além do adagietto

Por Jeffis Carvalho

Os créditos de abertura surgem editados ao sabor do movimento das cordas do agora famoso adagietto; a primeira imagem, em textura enevoada, é a de um barco a vapor no horizonte. O navio desliza pelo mar da costa de Veneza e tem início uma das mais sublimes e trágicas histórias sobre beleza, música, desejo e morte que o cinema nos legou. Morte em Veneza é o encontro do romance de Thomas Mann com a música de Gustav Mahler sob a batuta de um dos grandes regentes do cinema, Luchino Visconti. 

Quando a tela se acende lentamente, a fumaça do Esmeralda nos transporta também para um céu pálido que nos parece ser o crepúsculo –  e talvez seja, mas da alma –  e logo descobrimos que é de manhã. Gustav von Aschenbach está sentado no convés, envolto em seu cachecol, com frio; ele lê um livro de poemas e, ao mesmo tempo, cochila um pouco. Está alheio ao panorama de Veneza que a câmera de Visconti nos traz ao som do adagietto.  Aschenbach parece nervoso, até um pouco mórbido; mas fora isso ainda não temos informações sobre a sua motivação para a viagem nem para suas expectativas.

O romance, a música e o cinema. Conjugados por Visconti para compor uma partitura estética. Sob a mise-en-scène de Visconti, o personagem de Mann, inspirado no compositor, surge na tela concebido esteticamente como a tradução cinematográfica da música de Mahler. Em outras palavras, Morte em Veneza é um filme de Visconti com abordagem mahleriana ou, ainda, uma visão viscontiana de Mahler. Ouve-se a musicalidade mahleriana das imagens, vê-se a imagem da polifonia e compreende-se a derrocada desesperada, mas não menos apaixonada e trágica, do personagem romanesco moderno. Não é para muitos uma tal façanha, ao contrário, é para bem poucos. É para Luchino Visconti, o mais esteta de todos os cineastas que fizeram do cinema uma arte quase total. Morte em Veneza é mais do que a adaptação do romance de Thomas Mann com o adagietto de Mahler como trilha sonora. Com ele, Visconti concebeu mesmo um filme mahleriano. E aqui não se pretende defender possíveis interpretações da vida de Mahler para justificar essa tese. Ao contrário, estamos no terreno da pura forma, da estética mesmo e ela se revela mahleriana porque a intenção de Visconti é transpor para a tela, em imagens, movimentos e sons, a proposta polifônica da obra do compositor. Visconti sabe que Mahler inspirou Mann na concepção de Aschenbach e transforma o personagem do livro, um escritor, em um compositor exatamente por isso. 

Diz Visconti: 

Eu transformei Aschenbach de escritor em músico pois achei que era essa a verdadeira ideia de Thomas Mann. Há muitas provas disso. Tratava-se, inicialmente, de Gustav Mahler. Tive, então, a ideia de fazer o filme todo com a música de Mahler.

A música permite ao cineasta uma abordagem cinematográfica mais concreta e possível do personagem. Afinal, se no livro é pela escrita que penetramos na cabeça de Aschenbach e na sua consciência, Visconti se vale da música de Mahler para cumprir esse papel na transposição da obra para a linguagem do cinema. Visconti compreende, como também Mann, que Mahler traçava tantos paralelos entre a música – a sua proposta, principalmente – e o romance moderno, mais especificamente Dostoiévski e sua grande inovação: a polifonia de vozes dos personagens. A música, para Mahler, era antes de tudo polifonia.  

O aristocrático conde Luchino Visconti di Modrone (1906-1976) foi, talvez, o cineasta mais culto da história do cinema, no que rivaliza apenas com o sueco Ingmar Bergman. De sólida formação cultural – literatura, teatro, música e artes plásticas – Visconti pôs em cada fotograma de sua arte um pouco de reflexão sobre a forma e fez desta a ponte essencial para conceber o seu estilo. Como lembra David Bordwell, em Sobre a História do Estilo Cinematográfico, “pela perspectiva de um cineasta, imagens e sons constituem a mídia cinema na qual e através da qual o filme consegue o seu impacto nos planos da emoção e do intelecto. A organização desse material – como um plano é encenado e composto, como as imagens são unidas no corte, como a música reforça a ação – não pode ser uma questão indiferente. O estilo não é simplesmente decoração de vitrine em cima de um roteiro; ele é a própria carne da obra”. 

Já se disse ou escreveu bastante sobre o romance de Mann, sobre a música de Mahler e muito sobre o filme de Visconti. As adaptações de grandes obras literárias para o cinema quase nunca correspondem à grandeza do livro, mas isso já se tornou um clichê. Como clichê se tornou também associar o adagietto – por questões extracinematográficas que fogem às intenções do próprio Visconti – ao imaginário da cultura gay contemporânea, conferindo-lhe uma característica de recepção redutora.  Se o quarto movimento da Quinta Sinfonia de Gustav Mahler – o adagietto – se consagrou como tour de force do filme – e da própria recepção da obra de Mahler a partir dos anos 1970 – Morte em Veneza, o filme – vai muito além dele. 

Tomando como ponto de partida a sua visão de que o cinema mais do que retratar a realidade, constrói uma realidade que lhe é própria, por seus meios, linguagem e forma, sem nunca deixar de espelhá-la, mas sempre isenta de artifícios, Visconti dá forma à música de Mahler. Mas não se trata de mimetizá-la, ou de tentar ilustrar, ou até mesmo imitar essa música por meio da imagem cinematográfica. Pelo contrário, Visconti propõe uma abordagem intelectual da música mahleriana. O objeto de sua concepção é filtrado por seu estilo cinematográfico e por meio dele – e só por meio dele – nos traz a proposta estética do compositor. 

Visconti encontra o seu ponto em comum com Mahler quando o adagietto nos conduz a Aschenbach em direção ao cais de Veneza e, deste, rumo ao Lido. No momento em que o barco Esmeralda entra no canal principal da cidade, a música de Mahler cessa. Sem o Adagietto como trilha, essa sequência é pura música de Mahler – uma música em forma de cinema. Ouve-se o apito do Esmeralda em primeiro plano e, ao longe, mas aos poucos ganhando volume, ouvimos uma marcha militar conduzida pela corneta solitária acompanhada do canto marcial da tropa em ligeiro trote; dela, um corte nos coloca na algaravia de ruídos e diálogos do desembarque.  Nessas rápidas pinceladas sonoras, Visconti nos conduz ao espírito da música mahleriana, à sua gênese estética polifônica. Recorro ao professor Jorge de Almeida em seu ensaio “Os Mundos de Mahler”: 

O “realismo” de Mahler também se manifesta no modo como sua “prosa” recolhe e reordena os materiais do mundo musical. A cada momento somos surpreendidos com a irrupção de bandinhas, fanfarras, valsas, canções populares, hinos e marchas, muitas marchas: triunfais, fúnebres, grotescas, demoníacas, celestiais. Como se antecipasse o procedimento vanguardista da colagem, Mahler aproveita o banal para denunciar a vulgaridade da música utilitária e comercial e, também, as expectativas de seu próprio público. Banalidades petrificadas e reconfiguradas nunca aparecem como banais; são, segundo Adorno, “alegorias do rebaixado, humilhado, do socialmente calado”.

Ao fazer isso, Mahler de certa forma antecipa muito do que depois poderá se observar no cinema, na gramática fílmica e como ela se coaduna para produzir emoção, beleza e síntese. Como destaca o maestro norte-americano Michael Tilson Thomas, em Keeping Score – Mahler:

Não são apenas as cores individuais que fazem as paisagens sonoras de Mahler, mas a maneira como ele as combina em novas possibilidades dramáticas, antecipando as técnicas dos grandes cineastas. 

E prossegue:

Como Schubert, Mahler era obcecado pela música das pessoas ao seu redor. Suas sinfonias são observações de como e por que pessoas de todas as classes sociais fazem a música que fazem. Essencialmente, Mahler alcançou as ambições sinfônicas de Schubert usando os métodos de Wagner. Ele alcançou sua ambição de fazer da sinfonia um mundo inteiro. Ele disse que “a sinfonia deve ser um mundo. Deve abraçar tudo”. 

A música de Gustav Mahler reflete a amplitude de sua experiência no mundo em rápida mutação do fin-de-siècle: tanto geograficamente – de uma vila boêmia a capitais mundiais brilhantes – quanto artisticamente – como poeta, maestro e compositor. Também reflete a profundidade de sua experiência interior: suas paixões, seus sofrimentos e sua contínua sensação de ser um estranho.

O ponto de confluência de Visconti com Mahler – que nos parece ter sido mesmo a principal motivação e inspiração para o filme – revela-se, então em sua plenitude. Visconti sabe e, mais do que isso, compreende a proposta de Mahler de que a sinfonia deve ser um mundo, “deve abraçar tudo”. Que mundo? Aquele criado e recriado pelo artista a partir da própria realidade, sendo-a sem nunca ser, porque é uma outra coisa, uma outra realidade. O cinema de Visconti é a criação e recriação de mundos – e, depois de Senso (1954) – torna-se mesmo uma proposta de arqueologia de mundos históricos que são resgatados para ganhar uma realidade toda própria e até mesmo contemporânea em sua concepção. Como destacou André Bazin, acerca de Senso (Sedução da Carne, 1954): 

(…) a distância histórica e todas as suas consequências, sobretudo nos meios aristocráticos e militares, são sentidas, antes, por seu aspecto pitoresco decorativo e espetacular. É o que se passa nos “filmes de época” e, a fortiori, em cores. Mas, a partir daí, Visconti se empenha, com uma minúcia cuja primeira qualidade é naturalmente de se fazer esquecer, em impor a esse cenário luxuoso, harmonioso e quase pictural, o rigor do documentário. 

Para Bazin, Visconti continuava, com Senso, tão neorrealista como em La Terra Trema (1948): “reconheço as mesmas preocupações essenciais”.  

Na busca pela polifonia como tradução imagética de Mahler, Visconti não se furta ao apelo – ainda que sempre elegante e sofisticado – de, por meio da música do compositor, encenar um misto de deslumbramento e vulgaridade, de belo e de grotesco, de medo e de desejo, de decadência e de morte. Para isso, além do adagietto da Quinta Sinfonia, Visconti se vale também do quarto movimento da Terceira Sinfonia de Mahler, que para o compositor era exatamente a tradução até então mais elaborada de sua proposta da sinfonia como criação de mundos. Mas Visconti faz muito mais.

Sem aviso, quando está para desembarcar, Aschenbach é abordado por um velho destemido, de cabelos vermelhos tingidos, lábios avermelhados e um rosto pastoso que zomba dele em saudação e adeus, arrastando suas palavras de forma quase ininteligível e pontuando suas observações com um riso sinistro: ” Au revoir, excusez , et bonjour , excelência! … E a propósito, senhor … (umedecendo seus dedos obscenamente em seus lábios) … nossos cumprimentos”. É o primeiro de vários affronts similares. No final do filme, Aschenbach, que tem uma semelhança chocante com este atormentador, confirmou as insinuações do velho em sua máscara de dor e morte, enquanto o seu querido Tadzio acena para o mar. É dentro desta forma clássica de mar, cidade, música e as máscaras da morte que a ação do filme está contida. 

Diz Visconti:

“Para mim, do velho do navio ao gondoleiro, ao diretor do hotel, são todos pequenos diabos que concorrem em determinar a sorte de Aschenbach e o levam aonde ele deve ir para encontrar aquele anjo da morte que o levará ao cumprimento de seu destino”. 

Se Visconti compreende Mahler, mais ainda entende a proposta de Mann ao criar Aschenbach inspirado no compositor. Visconti sabe que Aschenbach não é Mahler; mas sabe também que Mann se inspira nele porque o admira como um músico magistral e fica profundamente abalado com sua morte prematura. O que interessa a Mann – e, também a Visconti, na adaptação do livro – é essa figura de dois mundos, um artista em sua plenitude que se vê aturdido nesse tempo em mutação que a tudo estilhaça. A música de Mahler capta esse mundo – como o último romântico e o primeiro moderno –  e, diferentemente de Beethoven, tem a consciência de que agora o herói romântico está morto e, para ele, não há mais possibilidade de sobrevivência num mundo onde tudo o que é sólido realmente desmancha no ar, em fragmentos que a Física é a primeira a perceber e comprovar e que logo a Primeira Guerra Mundial tornará realidade em seus  milhões de corpos mortos, dilacerados e  mutilados de uma geração inteira da velha Europa. É esse espírito do tempo que Mann reflete na sua curta novela e que Visconti encena ao som de Mahler, orquestrando em imagens essa realidade da transição de dois mundos, sob a signo da decadência e da reflexão tardia sobre a beleza perdida, que num breve instante esteve prestes de ser reconquistada e, quem sabe, preservada. A música de Mahler está no filme, mas é o filme que se torna música mahleriana pela regência viscontiana. Ao cinema, mais do que a imagem, interessa a realidade, e Visconti leva ao início do século a sua abordagem neorrealista porque, como sintetizou Martin Scorsese, ele é o cineasta que faz “o neorrealismo do passado”. 

A sequência do primeiro encontro de Aschenbach com Tadzio, seu objeto de beleza e desejo, é concebida por Visconti como uma espécie de andante cinematográfico. Do livro de Mann, a sequência “pula” para as páginas do roteiro e torna-se, ela mesma, o guia para a cena. Tudo que é narrado no livro é o que acontece na tela – Visconti é tremendamente fiel à descrição de Mann, do cenário, da ambientação, das figurações, dos personagens e, claro da ação. É nessa sequência-chave – do livro e do filme – que Visconti se permite ir além de Mann e elabora uma mise-en-scène a partir da estética de Mahler. A proposta do cineasta é encenar o impacto da beleza de Tadzio em Aschenbach por meio de uma ousada coreografia cinematográfica sob o signo da proposta mahleriana. Esse andante cinematográfico é música em forma de filme. A música que ouvimos não é de Mahler – é a quase vulgar valsa da opereta A Viúva Alegre, de Franz Lehár, tão comum àquele ambiente e que hoje seria considerado um musak, ou música de elevador. Visconti se vale dessa valsa tocada por músicos de salão, ao vivo, porque é isso exatamente como talvez fizesse Mahler em suas composições, como uma espécie de colagem de referências dos ambientes sonoros que então formatavam a nossa modernidade urbana em contraponto aos sons da natureza que lhe eram tão caros em sua busca pela  criação de mundos.  

Quando nos damos conta, Visconti sintetiza nessa primorosa cena a proposta estética da música de Mahler, porque faz da câmera o narrador – não único, mas polifônico, porque ora é a voz de um possível narrador, ora é a voz do personagem; ora é a voz do próprio Visconti; e, finalmente, é também a voz de cada de um de nós no papel de espectador. Para isso – com a mesma ousadia, mas com proposta diferente, de Kubrick em Barry Lyndon – o zoom da câmera tantas vezes criticado como recurso fácil, aqui atinge uma sofisticação única, de encenação rara e bela.

Para tudo isso contribui o fato de que os melhores filmes de Visconti têm a rara qualidade de existir no espaço tanto quanto, se não mais, do que no tempo. Como lembra o crítico Maximilian Le Cain, “é um estilo intensamente visual de cinema, que envolve a imersão do público na atmosfera de cada cena para, gradualmente, sobrecarregá-los com isso, em vez de correr de uma cena para a próxima em busca da tensão narrativa. De todos os diretores que, cada um de sua maneira própria, praticam uma abordagem similar – Dreyer, Antonioni, Tarkóvsky, Jancsó, Angelopoulos, Tarr, certos filmes de Kubrick e Wenders – Visconti é o mais sutil, consciente ou inconscientemente ocultando seu radicalismo na “respeitabilidade” do gênero do período. Esse radicalismo foi alcançado através do constante esforço para contar suas histórias mais vividamente, em vez de fazer uso de qualquer programa estético preconcebido. Desta forma, Visconti pode ser percebido como a figura de transição no cinema europeu entre o classicismo e o modernismo”.

A única ação neste filme – como no romance – é o que se passa na mente de Aschenbach e é colorindo as cenas potencialmente neutras, às vezes quase documentais, que Visconti se vale de um humor apropriado para trazer esse filme à vida. O espaço aqui é frequentemente subjetivo, uma tela na qual o nosso herói moribundo projeta seus sentimentos. Ao mesmo tempo, lembra Le Cain, este espaço “permanece misteriosamente distante dele, exibindo toda a inescrutabilidade de um país estrangeiro. Este aspecto ligeiramente ameaçador de Veneza é sugerido desde o início. Como Aschenbach é trazido de gôndola do barco na abertura do filme, uma disputa com o gondoleiro o faz resmungar preocupado consigo mesmo: “Eu não entendo”. Nos estágios finais de Morte em Veneza, quando Aschenbach descobre evidências de uma epidemia de cólera que os habitantes locais tentam encobrir para o bem da indústria turística, o aspecto ameaçador vem à tona com a beleza agora corrupta dos becos e canais de Veneza mantendo uma sensação de morte à espreita”. Visconti, o mestre da decadência, nos seduz com seu domínio visual e vai nos revelando gradualmente o perigo no coração do trágico herói.  Concomitantemente, nos mostra o processo do amor sem esperança de Aschenbach por um menino que ele vê na praia. No momento em que sua morte se consuma, ela é associada, claro, à busca de seu ideal. Visconti mais uma vez se vale do espaço para contar sua história; e desta vez com uma delicadeza que ele nunca iria superar.

Espaço, tempo, ritmo, duração. A mise-em-scène de Visconti atinge, em Morte em Veneza o que se poderia qualificar de estado da arte. Ao “reger” a romance de Thomas Mann com a música de Gustav Mahler, Luchino entende, a um só tempo, o seu cinema, o romance moderno, a transição de dois mundos, a decadência decorrente disso, e faz do filme  também um manifesto mahleriano.  A babel linguística dos hóspedes do Hotel des Bains; a misteriosa língua falada por Tadzio e sua família (que depois descobrimos ser polonês); a fala insistente dos vendedores de morangos; o trote marcial dos militares; o canto russo de Mussorgski cantado pela mezzo-soprano  Mascia Predit;  a Risata, cantada pelos músicos de rua (1). Tudo, absolutamente tudo, é música nesse mundo sonoro concebido em imagens  por Visconti. 

Muito, muito além do adagietto. 

(1).Claudio M. Valentinetti.  Luchino Visconti, um diretor de outro mundo

Jeffis Carvalho

Jeffis Carvalho é jornalista, roteirista, pesquisador de cinema e consultor de comunicação.