Artes

Viva Arte Viva: um balanço da 57ª Bienal de Veneza

por Isadora Mattiolli

A 57ª Bienal de Veneza, sob o título Viva Arte Viva, encerra seu período expositivo em novembro e nos deixa como legado renovadas perspectivas sobre a arte contemporânea. Segundo a curadora, Christine Macel, a mostra é uma celebração da arte e dos artistas – desenhada para abrir espaços às suas questões, práticas e estilos de vida. Essa escolha curatorial está em consonância com um entendimento que privilegia a ótica do produtor em detrimento do espectador. Ou seja, a exposição se constrói pelo ponto de vista do artista, da poética e da prática, e não mais pela reflexão estética derivada da contemplação. Este pelo menos é o enunciado de Boris Groys no livro Going Public (2010), ainda não publicado no Brasil. Para o autor, a política da arte desde a modernidade tem menos que ver com o seu impacto no espectador, do que com as decisões que levam à prática artística. Essa afirmação é um contraste com a tradição filosófica que moldou os estudos acerca da arte, baseando-se, sobretudo, em conceitos como o belo, o sublime e a experiência estética.

Para Macel, o papel, a voz e a responsabilidade dos artistas são mais cruciais do que nunca diante dos debates atuais. A fim de realizar uma Bienal-homenagem a eles, dentre os 120 convidados, constam jovens artistas, artistas que faleceram recentemente, e outros que ainda não são devidamente reconhecidos, apesar da importância de sua obra. É o caso, por exemplo, do pernambucano Paulo Bruscky, que, embora seja frequentemente citado na historiografia de arte brasileira – em especial por sua contribuição à arte conceitual e atuação na arte correio, não tem a mesma projeção internacional de alguns de seus conterrâneos, como Lygia Clark, Hélio Oiticica e Cildo Meireles. Sua instalação, Arte se embala como se quer (2017), inicia-se com uma performance que envolve uma paisagem típica de Veneza: o artista e seus assistentes levam caixas de transporte de obras de arte por meio de gôndolas, até a margem dos Giardini. As caixas foram posteriormente organizadas no gramado em frente ao Pavilhão Central, e simbolizam uma etapa do processo de montagem, anterior à publicização dos trabalhos.

Paulo Bruscky: ‘Arte se embala como se quer’ (2017)

Se Viva Arte Viva é uma exposição moldada para os artistas, e em seu tributo, qual é o papel designado ao espectador diante dessa curadoria? Não à toa, há uma significativa presença de obras interativas / colaborativas no conjunto de escolhas de Macel. Quando o público se envolve em um trabalho artístico que necessita de sua participação para existir, a obra já não se refere apenas a um autor, concretizando-se em um regime de coautoria. Essa autoria compartilhada se faz perceber de duas formas: pelo registro, como na performance coletiva Legarsi alla montagna (1981), da artista Maria Lai (Itália, 1919 – 2013), que engajou os moradores de Ulassai, pequena comuna na região da Sardenha, a criar uma obra pública inspirada em um conto de fadas local, no qual uma garotinha salva a sua cidade do desmoronamento de uma montanha ao seguir uma fita azul. Mas, também, pela ação in loco, como no projeto de confecção de lanternas, Green light – An artistic workshop (2017), proposto pelo artista Olafur Eliasson. Ao esperar uma de suas obras sensoriais e imersivas que simulam ambientes naturais, como monumentais quedas d’água ou sóis artificiais, o público se depara, pelo contrário, com um espaço comum e mundano, um laboratório – local, dentro do pavilhão da Bienal, para a fabricação coletiva de luzes feitas de material reciclado. Tais trabalhos parecem confirmar o enunciado de Lygia Pape, de que a arte é uma energia criadora, que cada um carrega dentro de si.

Maria Lai: Legarsi alla montagna (1981)

O ato curatorial consiste em colocar objetos artísticos e não artísticos em um mesmo lugar, afim de garantir um sentido mais amplo sobre tópicos de interesse público. Macel optou por fazer a curadoria de Viva Arte Viva, a partir de uma história com um prólogo e sete capítulos ou “famílias” de artistas. O prólogo consiste em dois pavilhões que revelam a premissa da exposição. O primeiro, o Pavilhão dos Artistas e dos Livros, indica trabalhos que refletem sobre o mundo material e espiritual dos artistas. O segundo, o Pavilhão das Alegrias e dos Medos, explora a relação do indivíduo e sua existência, a partir das emoções e sentimentos. Estes são seguidos pelo Pavilhão do Comum, Pavilhão da Terra, Pavilhão das Tradições, Pavilhão dos Xamãs, Pavilhão Dionisíaco, Pavilhão das Cores e o Pavilhão do Tempo e do Infinito, que definem a mostra principal. Além desta, há a presença de 86 pavilhões de países participantes, com seus temas, artistas e indagações particulares – revelando a dimensão desta que é a mais antiga Bienal do mundo, existente desde 1895.

Olafur Eliasson: Green light – An artistic workshop (2017)

A perspectiva poética que define a mostra principal, e que está mais acentuada nos dois pavilhões introdutórios, retoma a relação entre arte e vida, que nos anos 1970, mostrou ser uma forma de confrontar as arraigadas hierarquias e categorias da estética modernista e de sua premissa de autonomia da arte. Quando Groys define, em Going Public, que a reflexão estética não serve mais à análise da produção de arte contemporânea, ele também está criticando o conceito de “experiência estética”, o qual, em sua justificativa, prescinde de um espectador com uma educação formal em arte e filosofia, e essa educação reflete, de uma forma ou de outra, sua condição cultural e posição social privilegiada. Anteriormente, sob o sistema de patronagem, o artista era chamado a representar temas relativos à fé religiosa e aos interesses do poder político, ou seja, os enunciados de quem financiava sua profissão. Na atualidade, o público espera encontrar na arte representações das questões, tópicos, controvérsias políticas e aspirações sociais que afetam as pessoas em suas vidas cotidianas, ainda de acordo com Groys. Quando Macel se pergunta sobre o que move os artistas em sua prática, e se interessa pela subjetividade dos mesmos, a chefe-curadora do Centro Pompidou, está retomando a justaposição da arte e vida.

O que é ser um artista? Qual é a aparência do ateliê de um artista hoje? São algumas das perguntas levantadas a partir do Pavilhão dos Artistas e dos Livros. As fotografias e registros de performance Artist at Work (1978), de Mladen Stilinovic (Sérvia, 1947 – Croácia, 2016), promovem uma tensão entre ação e inatividade, marasmo e engajamento, uma vez que consistem em retratos do artista dormindo em sua cama, ou em bancos de espaços expositivos. Macel retoma em seu texto de curadoria a oposição entre otium e negotium, conceitos da antiguidade clássica, que se em outro momento simbolizavam um instante privilegiado da relação de si para consigo, atualmente é inapropriadamente traduzido como “preguiça”, um contraste evidenciado pelo trabalho de Stilinovic.

Outros artistas que lidam com essa dualidade é a dupla Yelena Vorobyeva, do Turquemenistão, e Viktor Vorobyev, do Casaquistão, em sua instalação The Artist is Asleep (1996), que reproduz o cenário de um quarto, com uma cama, na qual o “artista” está dormindo embaixo das cobertas, uma tapeçaria e um quadro nas paredes, uma lâmpada, e uma pantufa ao lado da cama. Ambas as propostas intercedem pela importância do tempo perdido e ocioso como essenciais para a prática artística, ameaçado pelas condições do liberalismo globalizado. Situação semelhante pode ser encontrada no work in progress, do americano Dawn Kasper, nomeado The sun, the Moon and the Stars (2017), presente na Sala Chini do Pavilhão Central. Em 2008, a artista não podia mais arcar com os custos de manter o aluguel de um ateliê. A partir daí, iniciou seu projeto de ateliê nômade, vivendo e produzindo dentro de museus e galerias, sempre deslocando seu material de trabalho para esses espaços, produzindo e interagindo com os visitantes.

Por que investigar a arte a partir da perspectiva poética é ainda mais importante agora? No cenário brasileiro, por exemplo, a voz e as ações dos artistas estão sendo, cada vez mais, desacreditadas, menosprezadas e deslocadas, radicalmente, de seu conteúdo original. Vivemos, na segunda metade de 2017, uma série de censuras às manifestações artísticas, sejam em exposições, peças de teatro ou performances, levadas à cabo por avaliações simplistas do que é a arte, do que ela representa e de sua contribuição cultural e social. A arte se tornou, nesse sentido, um terreno para manobras demogógicas, para fortalecer uma posição conservadora, em um momento pré-eleitoral. O silenciamento da arte e dos artistas, assim como de temas cruciais para exercitarmos nossa cidadania, como os ligados à sexualidade e à política, torna-se possível apenas a partir da descontextualização e distorção dos fatos e das representações. Em Viva Arte Viva, Macel reivindica um neo-humanismo, que articula o ato artístico como uma forma de resistência, liberdade e generosidade. Diante desse cenário, é preciso manter-se ao lado dos artistas, nos apropriarmos de nossa energia criadora e, principalmente, atentar-se para a perspectiva de produção da arte, e não de seu consumo.

Isadora Mattiolli é graduada em Artes Visuais pela UFPR, mestre em História, Teoria e Crítica de Arte pela UFRGS, e curadora independente.