Sociedade

Vivemos o reinado da opinião?

por Luiz Bueno

As interações pessoais nas mídias sociais têm suscitado muita reflexão nos âmbitos acadêmicos e também nos debates públicos, talvez em especial pelo fato de trazerem à tona uma das grandes dificuldades de nosso tempo: o da necessidade de estabelecer a distinção entre informação e opinião. A capacidade que, hoje, as pessoas têm de divulgar suas opiniões ou de repassar a seus contatos virtuais informações não verificadas é o grande desafio para um mundo que sofre para depurar alguma informação confiável neste meio e para contornar os efeitos no mundo real daquelas opiniões ácidas e radicais muitas vezes pouco objetivas e, não raramente, falsas.

A importância que as pessoas dão à expressão de sua opinião pessoal ganha força em um contexto contemporâneo que é marcado por um aspecto da chamada pós-modernidade, que é a desconfiança sobre a ideia de que possa haver verdades objetivas. O abandono desta expectativa, como pretendo abordar aqui, é agravado pela emergência do individualismo e do subjetivismo. O abandono da expectativa de verdades objetivas associado ao subjetivismo e individualismo criam as condições para que o reino da opinião possa ser estabelecido entre nós.

O filósofo José Ferrater Mora lembra que os filósofos gregos da era clássica já lidavam com este problema: como depurar o que pode haver de verdade nas opiniões que dominam o espaço público? O problema começa pelo fato de que a opinião é o modo natural de acesso ao mundo real, que está em constante mutação. A opinião não é, em si, nem verdadeira nem falsa pois ela seria apenas um modo de afirmar algo sobre a realidade vivida. O filósofo aponta, ainda, que na era escolástica a opinião era entendida como uma forma de asserção que sempre “teme” a asserção contrária. Esse “temor” do contrário, já percebido pelos escolásticos, manifesta-se em sua plenitude em tempos de tecnologias de comunicação que dão capacidade de expressão às pessoas, a qual não tem frequentemente acompanhada pela capacidade para o diálogo e a reflexão.

O problema reside na natureza das opiniões, as quais não se originam na reflexão e na investigação racional mas, em geral, nascem e apoiam-se primariamente em sentimentos, hábitos ou costumes cuja veracidade ou validade não passaram pelo crivo da crítica racional.

A partir destes apontamentos, podemos notar que o problema da afirmação da opinião, que vivemos hoje em dia intensamente nos ambientes virtuais, não é um problema novo, mas que na sua conformação atual se diferencia daquele vivido pelos antigos gregos por dois aspectos: o primeiro, tecnológico, que permite a rápida disseminação dessas opiniões; e o segundo, que é marcado o sentimento contemporâneo de que ter uma opinião é um direito individual.

Esse segundo aspecto, o da opinião como um direito, apoia-se na importância, nascida na era moderna, que se atribui ao indivíduo. Tal importância, em nosso próprio tempo, se aguça em função do culto à subjetividade sustentado em um ambiente econômico que, por um lado capacita o indivíduo a exercer um razoável grau de escolha em seus hábitos de vida e de consumo, mas, por outro, que empurra estes mesmos indivíduos para um isolamento e solidão cada vez maior. Esse isolamento é seguido, ainda, por uma imensa tendência ao narcisismo, isto é, a culto de si mesmo cuja consequência mais evidente é a dificuldade de sustentar relacionamentos estáveis com outras pessoas.

Ora, é notório que essa exacerbação do individualismo nas sociedades democráticas e de mercado em que vivemos sempre pode nos aproximar perigosamente daquele tipo de condição que o filósofo Thomas Hobbes identificou como “guerra de todos contra todos”: onde impera o individualismo, aumenta o ambiente para a afirmação dos pontos de vista subjetivos, das opiniões.

Se a era contemporânea, pós-moderna, assume que a antiga aspiração por verdades objetivas é falsa, tudo se tratando apenas de perspectivas ou de narrativas, qual o compromisso que um indivíduo terá de expressar algo que seja verdadeiro? O ambiente individualista e narcísico é mais do que propício à explosão de uma infinidade de “opiniões”. Não é necessário ser verdadeiro, basta que cada um possa exercer seu direito a ter uma opinião. E se essa opinião não precisa corresponder a fatos ou ser racionalmente fundada, sua base será, então, apenas o sentimento do indivíduo, que ganha expressão. Sentimentos, que em si mesmos são de outro âmbito que não o racional, e sua expressão pública na forma de opiniões, talvez sejam a base da extrema dificuldade de se originar diálogos produtivos no âmbito virtual e também no cenário político brasileiro, ambos ambientes muito propícios à expressão de posições pouco racionais, pouco objetivas e muito radicais. Não havendo diálogo, há apenas confronto de opiniões.

Na medida em que as opiniões são sustentadas teoricamente na concepção de que o que se tem são apenas “narrativas”, que podem ser construídas e desconstruídas com a mesma intensidade, aqueles aspectos do costume e do hábito no campo social que tinham a função de freios dos comportamentos inadequados perdem sua força. O filósofo alemão Peter Sloterdijk afirma que esses procedimentos foram historicamente necessários como forma de contenção da bestialidade humana. Na medida em que se desmonta esta estrutura moral, os comportamentos inadequados antes contidos começam a reemergir nas relações sociais. Algo como se essa estrutura funcionasse como uma grande cúpula, ou uma tampa, que confinasse os comportamentos agressivos, mas que, à medida em que essa tampa é retirada pela afirmação do individualismo, do relativismo cultural, do fracasso do projeto humanista, a bestialidade humana volta a se manifestar em intensidade crescente. Algo que se pode notar exemplos tão variados como os tiroteios em escolas nos Estados Unidos ou nas atitudes agressivas das pessoas nas mídias sociais.

O individualismo, o subjetivismo e o narcisismo são todos sintomas de um tipo de estrutura psíquica e intelectual que tem se consolidado em nosso tempo. Não é por menos que se observa que muitas pessoas buscam apenas a sua auto-expressão, não o diálogo; a afirmação pura e simples da sua opinião, não a busca da reflexão junto com outras pessoas. Alain Finkielkraut, já nos anos 80, chamava isto de uma “sociedade adolescente”, isto é, uma sociedade que, tendo desvalorizado e estando pouco afeita ao esforço no seu preparo intelectual, provoca o que ele designa como “a derrota do pensamento”. Uma sociedade que consome informação da mesma forma que consome roupas de marca, não tem as suas ações – e opiniões – baseadas na reflexão, mas apenas no gosto pessoal. O gosto pessoal é o que resta quando o pensamento já não é mais relevante.

Talvez seja por essa mesma razão que não apenas as pessoas repetem o que ouvem ou leem sem checar fontes ou a veracidade das informações nas mídias sociais, mas também que as pessoas acreditam no que leem. Ora, se o que resta é o gosto, cada um acredita naquilo que mais se aproxima de suas preferências, de seus sentimentos. Afinal, refletir e investigar as informações recebidas não é mais tão relevante assim. Basta que elas se afinem com aquilo que cada um já pensava e preferia.

Poderíamos perguntar, então, se estamos vivendo um verdadeiro retrocesso no campo do diálogo público, do debate de ideias. Afinal, se há cerca de 2.500 anos, desde que os gregos criaram a disciplina chamada filosofia exatamente para poder apurar se haveria algo de racional e verdadeiro nas opiniões, teremos fracassado nesse objetivo? Como me disse recentemente um amigo, historiador, “talvez sequer tenha havido evolução desde os gregos, no que respeita à opinião, para que possamos pensar em retrocesso”.

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Luiz Bueno

Luiz Bueno é Bacharel e Mestre em Filosofia e Doutor em Ciências da Religião. Professor de Filosofia na FAAP. É autor do livro "Gertrude Himmelfarb: Modernidade, Iluminismo e as Virtudes Sociais", publicado pela É Realizações.