Artes

Os Sentimentos Sociais na Arte: O Ressentimento

por Isabelle Anchieta

O Ressentimento: uma análise do mal sentimento dos impotentes na Arte

Eis que a guerra se inicia. O céu se agita. Ações desordenadas dão forma e expressão dramática a violência e a vingança humana. É a guerra. Em meio a milhares de corpos que se misturam e se confundem na luta corporal um homem alado, descalço, nos fita com um olhar decidido e se destaca pela grandeza e serenidade com que domina a fera. O homem versus o dragão. Não sem razão o gravador alemão Albrecht Dürer, autor desta, realizou uma série de imagens similares, usando ora São Miguel, ora São Jorge, como os guerreiros altivos contra a fera rebaixada e rastejante que cospe seu ódio pela boca.  

O tema não era novidade. Integrava de certa forma o repertório visual dos artistas da época, no caso o século XVI, em que dominavam os embates religiosos entre Santos e Diabos, Católicos e Protestantes. Mas igualmente, não se pode perder de vista o cruzamento do tema com as motivações pessoais que acabam por diferenciar os artistas. Se ater apenas aos estilos artísticos, pode ser perder o melhor do jogo e dos contraditórios sentimentos sociais que forjam e agitam as imagens. É preciso tentar uma sociologia da imagem, como defendo. Falando mais claro, poderia estar Dürer representando, por meio de um tema comum à sua época, um sentimento pessoal que vivenciava? A guerra que travava com outros pintores e o ressentimento de que era alvo?

Claramente Dürer era um artista inquieto, que “não tardou em provar que tinha mais do que meros conhecimentos técnicos, e que era dono daquela intuição e imaginação intensas que são o apanágio do grande artista”[2]. Iniciando a carreira com 15 anos de idade na oficina de Michael Wolgemut, Dürer contrariava o desejo de seu pai de que ele seguisse a carreira de ourives. Na oficina deste, Dürer aprende as técnicas da xilogravura na madeira e do talho doce em metal. Em seguida, como era comum aos jovens aprendizes, viaja para a Itália (em 1494 e novamente em 1505) e para os Países Baixos (1520) para aprender novas técnicas de produção de imagens. A primeira viagem à Itália, em especial, parece conferir a ele um sentido de valor próprio, já que o contato com artistas consagrados “mostram-lhe que o artista não precisava ser um artesão humilde e provinciano, pode ser famoso e receber homenagens”[3]. Bom lembrar que os artistas eram considerados, até então, artesãos menores. Nem sequer assinavam suas obras. Tal consciência dessa nova atribuição de valor social ao trabalho artístico pode ter motivado a produção de seus autorretratos: Dürer inseria-se em imagens oficiais e religiosas. Em uma delas, datada de 1500, tem a ousadia de se mimetizar a imagem de Cristo: “Dürer acreditava que sua missão artística refletia a de Jesus”[4].

A segunda ida a Veneza revela quanto seu nome e trabalho se tornavam alvo de admiração, cópia e ressentimento. Em uma carta a um amigo alemão, Dürer comenta: “Tenho muitos amigos entre os italianos que me advertem para não comer e beber com os seus pintores. Muitos deles são meus inimigos, copiam minhas obras nas igrejas e onde quer que possam encontrá-las; e depois denigrem meu trabalho e dizem que não é fiel à maneira dos clássicos”[5]

Percebemos aqui dois momentos na trajetória artística de Dürer. O primeiro: a descoberta do valor próprio pela consagração pública de sua obra e, o segundo, o seu revés natural: o despertar do ressentimento dos seus colegas. Essa moral dos fracos tão bem descrita na obra A genealogia da Moral, do filósofo Friedrich Nietzsche. O ressentimento, segundo Nietzsche, é diferente da inveja. Pois enquanto a inveja pode mobilizar o invejoso a buscar uma mudança de lugar, o ressentimento é o lugar da impotência, da passividade odiosa. Pessoas que, sendo incapazes de criar e agir para mudar seu destino passam a responsabilizar o outro por seu infortúnio. Mas o pior não é isso. Ouso dizer que religiões e teorias sociais usaram esse sentimento humano de “ódio apaixonado” em relação aos bens sucedidos, ao seu favor, legitimando, justificando e mesmo promovendo esse mal sentimento dos impotentes. Esses passam a fazer da vingança e da usurpação dos bens alheios o objetivo da sua existência. Quando, enfim, conseguem colocar sua teoria em prática, já sabemos quão desastrosas se revelaram as ditas “revoluções” movidas por ressentimento… Ditaduras, terrorismo policialesco, censura e graves violações dos direitos humanos. Em nome de uma suposta e artificial igualdade, controlam o que há de mais humano: a liberdade, incompatível na prática com a primeira. Porque “indivíduos livres não são iguais e indivíduos iguais não são livres”[6]. Simples assim.  

É nessa mesma direção que o filósofo diz que a ação do ressentido é fundamentalmente uma reação. Uma moral negativa, que diz não a tudo o que não é seu, “esse não é seu ato criador”.  Por isso, o ressentido precisa de um “inimigo”, um antagonista para justificar a sua existência fracassada. Ao contrário do que acontece com aqueles que o filósofo chama de pessoas vigorosas e necessariamente ativas, incapazes de levar a sério seus inimigos e suas desgraças. Uma pessoa forte “digere suas experiências vividas, como digere suas refeições, mesmo quando necessita engolir pedaços duros”[7]. Pessoas essas que igualmente “não separam a felicidade da ação neles, o fato de ser ativo entra de maneira necessária na felicidade;  tudo isso está em profunda contradição com a felicidade que caracteriza os seres desprovidos de poder, oprimidos, de sentimentos venenosos e hostis, a quem a felicidade aparece sob a forma de estupefação, de sonho, de repouso, de paz, (…) numa palavra sob forma passiva”[8]. Os ressentidos, são para Nietzsche “sacerdotes ascéticos, inimigos da vida e negadores” [9] de suas paixões, contradições e irracionalidades. A única coisa a que se permitem é a sede de vingança e é ela que fundamentalmente agita suas vidas medíocres.   

Mas o filósofo não deixa de alertar para o perigo e o vigor do ódio do ressentido contra os felizes. O faz por meio de um belo conselho, que reproduzo na íntegra, colocando-o na companhia da imagem de um altivo São Jorge realizado por Dürer, em 1508. A imagem retrata o fim da batalha. Nela o homem, sob o império de si mesmo, pisa o dragão rastejante, dominado, incapaz, assim, de vomitar seu ódio pela boca. Nietzsche diz:  

“Estes são todos homens do ressentimento, todo um mundo fremente de subterrânea vingança, inesgotável, insaciável em irrupções contra os felizes e também em mascaramentos de vingança, em pretextos para vingança: quando alcançariam, realmente o seu último, mais sutil, mais sublime triunfo da vingança? Indubitavelmente, quando lograssem introduzir na consciência dos felizes sua própria miséria, toda a miséria, de modo que estes um dia começassem a se envergonhar da sua felicidade, e dissessem talvez uns aos outros: ‘é uma vergonha ser feliz! Existe muita miséria!’… Mas quão grande e funesto erro seria o dos felizes e robustos, se algum dia duvidassem de seu direito à felicidade! Para trás esse mundo às avessas!” 

NOTAS:

[1] O texto está composto por trechos inéditos da trilogia “Imagens da Mulher no Ocidente Moderno”, que será lançado este ano pela EDUSP , também de autoria da socióloga Isabelle Anchieta.

[2] Ernst Gombrich, op. cit., 2008, pp. 343.

[3] Andrew Graham-Dixon (org.), Arte: O Guia Visual Definitivo da Arte, 2011, p. 169.

 [4] Idem, p. 168.

[5] Albrecht Dürer apud Ernst Gombrich, História da Arte, 2008, p. 349.

[6] Adriano Gianturco, palestra Democracia e Liberdade, 2019;

[7] Nietzsche, A Genealogia da Moral, p. 125. 

[8] Idem p. 36.

[9] Idem, p.117. 

Isabelle Anchieta de Melo

Isabelle Anchieta de Melo é doutora em Sociologia pela USP, jornalista, mestre em Comunicação Social pela UFMG. Recebeu prêmio como Jovem Socióloga brasileira pela Associação Internacional de Sociologia com apoio da UNESCO.