Desmistificando a ética

Partindo de mais uma recente e interminável polêmica, mais um recente caso de homofobia, um ensaio do Prof. Denis Coitinho abordando os diversos equívocos que existem sobre nossa compreensão da natureza da ética e o que ela exige de nós.

por Denis Coitinho

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Gostaria de comentar o caso do jogador de vôlei Maurício Souza, que foi desligado pelo Minas Tênis Clube após repercussão negativa de suas postagens no Instagram, que claramente manifestavam sua indignação com a bissexualidade do novo Super-Homem, e isso em razão do caso nos ajudar a melhor compreender a complexidade da ética. Em sua conta do Instagram, em 12 de outubro, ele postou a reprodução da ilustração do beijo entre o novo Super-Homem, Joe Kent, e outro homem, criticando a história em quadrinho da DC Comics, que anunciou a bissexualidade do personagem, escrevendo na legenda: “Ah é só um desenho, não é nada de mais. Vai nessa que vai ver onde vamos parar…”. Depois, publicou: “Hoje em dia o certo é errado e o errado é certo… Não se depender de mim. Se tem que escolher um lado, eu fico do lado que eu acho certo! Fico com minhas crenças, valores e ideias”. Após uma repercussão muito negativa entre os torcedores, patrocinadores e diversos atletas, como foi o caso da manifestação de Douglas Souza, atleta assumidamente homossexual, que cobrou por medidas mais duras, foi advertido pelo Clube em 26/10, multado e orientado a se retratar. Após esta posição mais firme do Minas, que estava sendo pressionado pela Fiat e Gerdau, os patrocinadores, que claramente não queriam associar suas marcas ao preconceito, o jogador postou um pedido de desculpas em sua conta do Twitter no mesmo dia e postou um vídeo em seu Instagram no dia seguinte, com o seguinte teor: “Hoje estou pedindo desculpas por minha opinião ter ofendido alguém. Ter opinião e defender o que se acredita não é ser homofóbico nem preconceituoso”. Como a retratação foi insuficiente, o Clube rescindiu o contrato com o jogador. Além disso, o técnico da Seleção brasileira de Vôlei, Renan dal Zotto, declarou ao Jornal O Globo em 27/10 que o jogador não teria mais lugar no time em razão da homofobia, dizendo: “É inadmissível este tipo de conduta do Maurício e eu sou radicalmente contra qualquer tipo de preconceito, homofobia, racismo”...

Deixando de lado as importantes questões sobre os limites do cancelamento, o excesso do politicamente correto e a liberdade de expressão, creio que uma análise mais detalhada do ocorrido pode nos ajudar a melhor compreender os diversos equívocos que existem sobre nossa compreensão da natureza da ética e o que ela exige de nós. Um primeiro erro é pensar que a ética é apenas uma questão de opinião pessoal, que ela não é objetiva, estando baseada puramente em valores individuais, sobretudo emocionais. Um segundo equívoco é pensar que sabemos claramente o que é certo e errado, justo e injusto. Se fosse assim, porque discordamos tanto sobre questões morais? Por exemplo, não discordamos sobre ser correto ou não contar piadas de gays, negros e mulheres? Um terceiro problema é considerar que a ética trata exclusivamente de valores e ideais religiosos e familiares, mesmo quando contrapostos aos valores e ideais coletivamente aceitos, o que parece nos levar ao mito de pensar que se apreenderia a ser ético quando criança, que se aprenderia o certo e errado já na infância, via influência familiar. Mas como pesar razões morais e decidir um certo curso de ação sem maturidade cognitiva? Deixem-me iniciar com este último mal-entendido.

É muito comum ouvirmos das pessoas que se aprende a ser ético quando criança, de forma que a partir da convivência familiar, em especial com os pais, se aprenderia que mentir é errado e que se deve respeitar os mais velhos, por exemplo. Também, é bastante comum ouvirmos pessoas afirmarem que se aprende a ser ético na escola, de forma que o certo e o errado moralmente seriam aprendidos da mesma maneira que aprendemos os conteúdos de matemática, gramática, ciências, história etc. É claro que a ética se aprende em toda interação social, seja na família, na escola ou no grupo de amigos. O problema é que essa forma de compreender o fenômeno moral não reconhece que o comportamento ético envolve uma deliberação pessoal sobre o que se deve fazer ou como se deve viver e isto requer uma competência cognitiva, competência essa que requer maturidade. Não se trata de apenas passivamente fazer A ou B, julgando a partir dos valores ensinados, mas de julgar, autonomamente, o que é o correto. Imaginem alguém que teria sido criado por Adolf Hitler e Eva Braum. Essa criança provavelmente aprenderia que não deve mentir, que deve respeitar os mais velhos e, também, que seria sua obrigação perseguir judeus e homossexuais. Como julgaríamos os atos dessa pessoa depois de adulta? Ela agiria corretamente quando não mente e quando respeita os pais, mas agiria incorretamente quando persegue judeus e homossexuais?

Se sim, parece ser o caso de exigirmos dos agentes um certo nível de autonomia, que lhes permitiriam refletir criticamente sobre os valores aprendidos a partir de certos princípios morais. Até porque uma série de valorações arbitrárias ao longo da história da humanidade, como racismo, sexismo e homofobia, foram atribuídas em certos contextos que não são mais legítimos contemporaneamente, como é o caso da escravidão e nazismo, do machismo-patriarcado e da heteronormatividade, respectivamente. Como já demonstrado corretamente por L. Kohlberg, o desenvolvimento moral dos agentes está intrinsecamente relacionado com o seu desenvolvimento cognitivo, de forma que julgar moralmente por medo do castigo, por egocentrismo, bem como segundo às convenções e regras sociais, apenas revelaria uma imaturidade moral, uma vez que esta valoração corresponderia aos níveis iniciais da consciência ética (pré-convencional e convencional). Apenas quando o agente faz uso de padrões normativos universais, como os direitos humanos, por exemplo, e princípios morais universais, como os que afirmam que a vida humana é mais importante que a propriedade por sua dignidade intrínseca (nível pós-convencional), é que se pode considerar justificada a valoração ética. Como justificar que o dever de não roubar seria mais importante que salvar a vida de um inocente? (Kohlberg, Essays on Moral Development, II, Harper & Row, 1984).

Retornando ao primeiro equívoco, é bastante corriqueiro pensar que a ética é apenas uma questão de opinião, de forma que cada um teria sua crença sobre o certo e errado e, assim, todas as crenças morais teriam equivalência epistêmica, ambas sendo verdadeiras. Por exemplo, alguns teriam a opinião de que a homossexualidade é errada e outros opinariam contrariamente, dizendo que a homossexualidade é correta, o mesmo em relação ao aborto e eutanásia etc. Por mais que seja difícil defender a objetividade destas crenças, uma vez que os conceitos de bom e mau, correto e incorreto, justo e injusto não existem na natureza, bem como é inegável a historicidade da moralidade, é importante ter em mente que a normatividade (ética) permeia nossas vidas, exigindo que se rejeite certas crenças e desejos por sua irrazoabilidade, que é um padrão normativo intersubjetivo. Como poderíamos censurar quem nos rouba? Se sofrêssemos uma violência, como assédio moral ou sexual, como poderíamos reclamar do ocorrido e exigir alguma reparação se os valores morais fossem puramente subjetivos, dependendo, inclusive, da opinião do próprio agressor? Isto não impossibilitaria toda a nossa vida em comum? Como afirmado por Korsgaard em The Sources of Normativity (Cambridge University Press, 1996, p. 47): “Conceitos normativos existem porque seres humanos têm problemas normativos. E temos problemas normativos porque somos animais racionais autoconscientes, capazes de reflexão sobre o que devemos acreditar e fazer. […] E se algumas vezes somos bem-sucedidos em resolver esses problemas, então devem existir verdades normativas”...

Veja-se que a postagem inicial de Maurício Souza revelava uma indignação com o beijo gay do novo Super-Homem e uma opinião clara de que a homossexualidade é errada. Inclusive, em sua retratação, pede desculpas se sua opinião ofendeu alguém. Mas, afirma, por fim, que “Ter opinião e defender o que se acredita não é ser homofóbico nem preconceituoso”. Aqui o problema é que a opinião de que a homossexualidade é errada levou em não reconhecer como adequado que um super-herói, tal como o Super-Homem, seja bissexual, o que implica no erro moral do não reconhecimento da diversidade. Se não seria adequado um super-herói bissexual, seria adequado um juiz homossexual? E um jogador gay, seria permitido? A questão é que negar a legitimidade de representação dos gays é homofobia, uma vez que manifesta uma aversão irreprimível, uma clara repugnância aos homossexuais, lésbicas, bissexuais e transexuais. E considerando que a homofobia já foi equiparada ao crime de racismo no Brasil pelo STF, como justificar aos concidadãos que uma opinião homofóbica seja correta?

Penso que esse exemplo nos mostra mais claramente que a ética é o âmbito da vida humana em que elogiamos ou censuramos os agentes que agem de forma boa ou má, correta ou incorreta, justa ou injusta, ou que demonstram um traço de comportamento virtuoso ou vicioso. E a partir desta dimensão de elogio e censura, estabelecemos nossas obrigações morais, isto é, estabelecemos qual é a nossa responsabilidade ética. Por exemplo, em uma sociedade plural e democrática, é legítimo censurar os agentes por seus preconceitos sobre raça, gênero e orientação sexual, da mesma forma que é legítimo elogiá-los por seu respeito à diversidade. Mas por que essa censura ou elogio seria legítima e não arbitrária? Isso tem relação ao padrão normativo-moral ser social e não pessoal, o que inviabilizaria a ideia de regras morais privadas. Mas veremos isso a seguir, ao tratar do erro seguinte.

Quando perguntados a respeito das obrigações, a maior parte das pessoas diz saber o que é certo e o errado sem grande dúvida, até porque aprenderam com os pais, ou que é fácil ser ético. Esse modo de ver é uma simplificação evidente, uma vez que decisões morais são muito complexas e mesmo quando decidimos corretamente, nem sempre temos a força suficiente para agir de forma correspondente com o que se sabe que é o correto. Pensem em uma situação em que pessoas precisam de ajuda e que nós sabemos que é correto ajudar, mas que não agimos solidariamente porque estamos cansados. Mas, para além de certos consensos, em que todos podem concordar que a solidariedade é correta, que cometer homicídio e roubar é errado, que não devemos ser cruéis etc., discordamos a todo momento sobre a correção e o erro de várias coisas, como o sistema de cotas e o suicídio assistido, por exemplo, inclusive discordamos a respeito comportamento sexual das pessoas. Por exemplo, alguns consideram a promiscuidade errada, sobretudo para a mulher, enquanto outros acreditam que as pessoas são livres e donas de seus corpos. Há grupos cada vez maiores de jovens que defendem a virgindade antes do casamento, enquanto uma maioria não vê nada de errado com a prática do sexo antes do matrimônio. E, claro, muitos pensam que a homossexualidade, a bissexualidade e a transexualidade seja errada, enquanto outros não consideram que a orientação sexual das pessoas seja uma questão moral. Agora, o problema é: Se temos opiniões discordantes sobre o certo e errado, como devemos decidir e agir? Como determinar o erro e o acerto?

Creio que uma alternativa interessante seja considerar se o que se acredita correto pode passar no teste das principais teorias morais, como o utilitarismo (consequencialismo), modelo deontológico (kantiano) e ética das virtudes. Por exemplo, ver se o que achamos certo maximiza o bem-estar (ou felicidade) dos envolvidos, se desejaríamos a sua universalização e se não toma os agentes apenas como meios (instrumentos), bem como se seria aprovado por um agente virtuoso. Vejamos um exemplo. Alguém pensa que o egoísmo é correto. Essa opinião seria facilmente reprovada pelas teorias morais, pois um ato egoísta não maximizaria o bem-estar dos envolvidos e não desejaríamos que esse comportamento fosse universalizado, bem como seria reprovado por um agente virtuoso, tal como alguém solidário. É claro que podemos ter casos mais difíceis, em que certos atos seriam aprovados por alguma(s) teoria(s) e reprovado por outra(s). Pensem no caso do suicídio assistido. Do ponto de vista consequencialista, o ato seria correto porque maximizaria o bem-estar dos envolvidos, mas da perspectiva deontológica o ato seria errado, pois não desejaríamos que a regra que aprova o suicídio se tornasse universal. Também, pela ética das virtudes, parece que teríamos a condenação do ato.

Agora, o nosso caso específico é o de saber se um ato preconceituoso ou uma opinião preconceituosa passaria no teste acima. E a resposta é claramente negativa, pois um ato preconceituoso não maximizaria o bem-estar dos agentes, em razão de gerar muito ressentimento na comunidade LGTBQIA+, produzindo instabilidade social, bem como não desejaríamos a universalização dos preconceitos e, ainda, este ato seria reprovado por um agente virtuoso, como alguém tolerante e de mente aberta. No fim das contas, uma opinião preconceituosa é errada porque ela não seria aprovada pelos agentes a partir de uma perspectiva imparcial e virtuosa, em que se reconhece o direito igual de todos os envolvidos e a obrigação de levar em conta os seus sentimentos e interesses. Isso parece mostrar que a moral tem relação com o coletivamente aceitável.

Por fim, o último problema é considerar que a ética trata exclusivamente de valores e ideais religiosos e familiares, mesmo quando contrapostos aos valores e ideais coletivos aceitos pela comunidade. Por exemplo, muitos pensam que o comportamento ético seria apenas o de seguir o que a sua religião exige ou fazer aquilo que é recomendado pelo grupo familiar. Se se aprendeu na igreja que o comportamento homossexual é errado, bem como se se aprendeu na família que um casal é formado apenas por um homem e uma mulher, então, a crença que condena a homossexualidade seria certa, bem como os valores familiares tradicionais. O problema é que as igrejas, em alguns casos, podem exigir coisas erradas, como o sacrifício humano e a guerra santa, por exemplo, além de existirem igrejas que respeitam a diversidade. Então, como identificar a correção levando em conta apenas os dogmas e recomendações religiosos? Como bem colocado no argumento de Eutífron, se um ato X fosse injusto (impiedoso) apenas porque Deus julga que X é injusto, a justiça dependeria exclusivamente da vontade divina, o que seria arbitrário, nos restando a alternativa de considerar que Deus juga que X é injusto porque de fato X é injusto, o que nos possibilita reconhecer a independência da ética para a determinação da justiça e injustiça (Platão, Eutífron, 10b-10c).

Outro problema com essa forma de pensar é que muitas famílias ensinam coisas erradas aos seus filhos. Por exemplo, há famílias que ensinam que você deve ser egoísta, que não deve respeitar as regras para ter vantagem pessoal. Há outras famílias que são preconceituosas, seja com negros, mulheres e homossexuais. Há outras que, inclusive, ensinam que atos cruéis, como tortura, sequestro e assassinatos, são corretos e necessários, como no exemplo de JoJo, dado por Susan Wolf, que em razão de ser  filho de um ditador sádico que comete uma série de crueldades, também se torna um ditador sádico e cruel (Sanity and the metaphysics of responsibility, 2003, p. 379-380). Assim, é razoável supor que alguém criado em uma dessas famílias iria naturalizar esses erros, não identificando adequadamente os seus deveres para com a comunidade moral e política.

Considerar o certo e errado ao arrepio das teorias éticas, do que é legalmente instituído e, também, do que é exigido no mundo do trabalho não parece ser uma estratégia muito frutífera, sobretudo para os que estão preocupados com a possiblidade de uma vida em comum.

Kant e amigos à mesa, por Emil Doerstling, c. 1892-1893.
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