por Laura Ferrazza
Desde tempos remotos, o homem já demonstrava o desejo de eternizar sua imagem e seus feitos. O retrato, assim como outros tipos de imagens que identificam determinadas pessoas, tem uma história própria, que se liga à intenção de deixar à posteridade um registro de nossa passagem pelo mundo. Nos tempos em que a arte preservava um forte teor mágico e a política e a religião se fundiam, os governantes já ordenavam que se fizessem registros de sua figura – embora não possamos dizer que se tratasse propriamente de retratos, no sentido em que entendemos esse gênero visual na atualidade. Um exemplo é a Paleta ou Estela do Rei Narmer, datada de aproximadamente 3000 a. C., uma das peças de arte mais antigas que se tem notícia. A pedra de ardósia, com 64cm de altura, retrata um dos reis egípcios responsáveis pela unificação territorial entre o chamado Alto e Baixo Egito – feito de proporções gigantescas para aquela civilização. A pedra possui relevos de ambos os lados; num deles, destaca-se a figura do rei. Devido às convenções artísticas do período, as figuras não têm uma identidade visual marcante, havendo grande semelhança entre umas e outras. É possível identificá-las, no entanto, porque seu nome geralmente se encontra inscrito em alguma parte da imagem, assim como os atos mais relevantes de seu governo. Tudo isso auxilia a identificação das figuras históricas.
A crença egípcia da vida após a morte foi responsável pelo desenvolvimento precoce do retrato como substituto ou fator identificador do morto. Além da construção de um túmulo grandioso, onde o corpo sagrado do faraó – que era um deus encarnado – devia repousar, tudo era feito para que sua vida continuasse no além. Esse tudo incluía a presença de objetos pessoais, as pinturas parietais que lembravam sua vida, seus feitos, etc. Mas o que mais me interessa aqui, um busto ou retrato para que o morto pudesse se reconhecer. Além é claro da mumificação para a preservação do corpo, a imagem também manteria vivo. A preocupação com a preservação dessa imagem é marcante, uma vez que foram encontradas nas pirâmides de Gizé salas tumulares com uma série das chamadas “cabeças reserva”, todas identificadas como sendo da mesma pessoa, eram cópias que deveriam garantir que o morto encontraria sua imagem caso a original se perdesse.
Embora, em sua maioria, as figuras retratadas no Egito e no antigo Oriente Médio fossem muito semelhantes, algumas surpreendem por sua individualidade. Um bom exemplo é o governante acadiano Gudea (ca. 2130 a 2100 a.C.), da cidade de Lagash. Havia na Mesopotâmia uma longa tradição em representar reis com barbas e cabelos compridos. Contudo, em todas as esculturas em que foi representado, Gudea aparece careca e sem barba. Essa é a marca que o identifica. Mudanças desse tipo podem ter sido motivadas por momentos políticos específicos ou por posturas pessoais de alguns governantes. No Egito o caso mais conhecido é o do faraó Aquenáton (ca.1352-1336 a.C.) da XVIII dinastia, no período conhecido como Novo Império (ca. 1550- 1069 a.C.). Esse rei modificou algo basilar na cultura egípcia: sua religião. Dentro de um vasto panteão politeísta, Aquenáton escolheu adorar um único Deus, Aton. Consequentemente, houve uma profunda modificação nas rígidas normas da arte egípcia que haviam variado muito pouco desde a Estela de Narmer. No lugar da aparência rígida e atemporal de seus antecessores, Aquenáton fez-se retratar com um rosto e pescoço alongados; o corpo também aparecia com formas mais curvas. Os retratos do rei e de sua família durante esse período são rapidamente identificáveis por suas características peculiares. A mudança causou tamanha celeuma que seu célebre filho Tutancâmon (ca. 1332- 1323 a.C.) teve de reverter das ações paternas, lentamente restaurando a antiga ordem em todas as esferas, incluindo as artes. Ainda assim, é possível perceber em seu reinado a influência da revolução causada por seu pai, principalmente nas pinturas murais e relevos decorativos.
Na Antiguidade, materializar visualmente um feito era uma forma de reforçar sua perenidade, demonstrando a força e o poder do governante. É o impulso narcísico do homem que quer sempre ver sua imagem refletida e, de preferência, imortalizada. É claro que essas representações envolveram boa dose de idealização, à medida em que o retrato foi se tornando um gênero específico dentro da história da arte. Um gênero de grande importância também na história da indumentária, pois os retratos são uma forma possível de conhecer as vestimentas usadas em cada época. Mesmo os trajes, contudo, são e foram afetados pela problemática da representação e da idealização. O conceito e os códigos da retratística variaram imensamente ao longos dos tempos, ao sabor dos gostos, da cultura e da técnica de cada época. O que unifica as obras de diferentes períodos é a representação da imagem de alguém que existiu e que, daquela maneira mágica inerente à imagem, segue existindo.
Como já se disse, o homem sempre procurou interferir na forma como sua imagem sobreviveria a ele mesmo. Portanto, buscar verossimilhança em um retrato é um tanto inócuo. O que mais impressiona é que esse desejo da representação visual de si não arrefece. Se no início o retrato é reservado aos líderes, em pouco tempo estende-se aos seus familiares e subordinados mais próximos, até falarmos em períodos que assistem a uma democratização do retrato. O tema é vasto e segue tendo uma importância inegável na atualidade, mas o caminho até aqui é longo e será abordado paulatinamente em minhas próximas colunas.
Ao fim e ao cabo, nos resta uma certeza: por mais de cinco mil anos a humanidade não abandonou o desejo de ter sua imagem capturada de alguma forma. Nessa captura, perpassa o desejo de continuarmos vivos através da imagem. Por isso, mesmo que as intenções e as técnicas variem imensamente, e através de todas as transformações sofridas pela arte de forma geral, a figura humana em sua essência continua sendo um dos temas centrais da produção visual.