A imagem além da superfície 

Matheus Madeira Drumond expande as ideias apresentadas em seu texto "A Madonna de Bellini não é um retrato". Mais do que debater a exposição do MASP que motivou sua crítica, ele propõe reflexões sobre o retrato no mundo ocidental e o papel dos curadores no cenário contemporâneo.

Leia os textos anteriores

A Madonna de Bellini não é um retrato

Crítica de Matheus Madeira Drumond à exposição “Catherine Opie: o gênero do retrato”, apresentada pelo Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand (MASP).

Nem verdadeiro nem falso: ontologias de gênero em exposição

Uma resposta ao texto “A Madonna de Bellini não é um retrato”. Por Guilherme Giufrida, curador da exposição de Catherine Opie no MASP.


Leia a tréplica de Matheus Madeira Drumond

Valendo-me da possibilidade de uma tréplica endereçada a Guilherme Giufrida, buscarei desdobrar algumas das questões colocadas em seu texto. Mais do que um debate acerca da exposição de Catherine Opie, que, aliás, já está encerrada, a intervenção se debruça sobre aspectos de natureza teórica. O que foi desenvolvido em A Madonna de Bellini não é um retrato já está escrito e não pretendo aqui reiterá-lo, tampouco oferecer-lhe um arremedo. Afirmar que a pintura de Bellini não é um retrato reclamava por uma avaliação mais minuciosa das relações que a cultura visual do Ocidente estabelece com a realidade. Se o termo ficção quase nunca aparece nos rincões das artes visuais, sua ausência assinala o pouco interesse que muitos analistas possuem pela triangulação complexa, permeada pela imaginação, que envolve obra, mundo e receptor. Como o arranjo das demandas que envolvem uma curadoria não raro produz um afastamento da minúcia analítica, tampouco parece que se deve anuir com espontaneidade exagerada a seus produtos. Nesse sentido, parecia forçoso alertar para a confusão que poderia se estabelecer entre antropomorfia e sujeito, em especial aquele psicologicamente orientado — fenômeno do crepúsculo da segunda modernidade. O que subjaz ao reclame é que não se deve deixar de observar a consistência interna das imagens, só capaz de ser vislumbrada ao se evitar projeções excessivas. A Madonna não é um retrato pois nenhuma pintura da virgem pode ser um retrato, a não ser que acreditemos na lenda hagiográfica de que teria o evangelista Lucas a ela retratado, criando assim um lastro fiável nos muitos ícones preservados mundo afora. Do contrário, toda aproximação deverá incidir sobre a forma como um pintor interage com uma certa tradição iconográfica. Mas se o interesse era desenvolver como uma certa tradição iconográfica incide sobre as expressões de gênero, eventualmente moldando-as, não sei se a melhor forma de fazê-lo é mesmo com a exposição que visitei.

Maarten van Heemskerck, São Lucas pintando a virgem e o menino, 1532. Frans Hals Museum.

Distintamente do que foi afirmado, não é possível situar a formulação do retrato no Renascimento, tampouco supor que só há cinco séculos é que a figura humana teve lugar na pintura como motivo. A gênese do retrato moderno, essa sim relacionada às cidades-estado italianas e à nova formulação política capaz de acolher novas possibilidades de tematizar a identidade, não ocorreu sem precedentes. Na Roma Antiga, império espraiado por todo o mediterrâneo, o retrato tornou-se uma prática corriqueira, tanto pelos conhecidos bustos, mas sobretudo nas pinturas em têmpera ou encáustica, em geral utilizadas nas práticas funerárias. Fitando a individualidade, vislumbravam a manutenção da imagem do indivíduo. Para que não fique o leitor desamparado de um aporte mais credível, transcrevo uma sentença conhecida de Marcel Mauss, destacado antropólogo:

Todos sabeis o quanto é normal, clássica, a noção de persona latina: máscara, máscara trágica, máscara ritual e máscara de ancestral. Ela aparece no início da civilização latina.

Mauss se referia à formulação da persona latina, gestada entre os romanos e antecedente necessário à formulação do eu e de sua configuração específica no ocidente. Chamo atenção do leitor à justaposição de pessoa e máscara, isto é, do ente e de sua aparência, coisa que em Mauss era reunida na indagação da aproximação entre persona e imago, do eu como figura de direito e como natureza verdadeira do indivíduo. Se nos muitos renascimentos, em minúsculo — menos hegemônico, tal como nos ensinou Erwin Panofsky (cf. Renascimento e Renascimentos) —, era o antigo que se reinvestia de interesse renovado, não soa estranho que junto das repúblicas se reacenda o interesse pela persona, reaparecendo assim o retrato e seu conseguinte êxito moderno.

Retrato de múmia em têmpera sobre madeira, representando uma mulher. Período Romano, Egito, 160–170 d.C. The British Museum.

É conveniente ter em conta, por exemplo, que a figura humana terrena é já o substrato da revolução que Giotto di Bondone (1267-1337) propõe à pintura ocidental. Nas cenas da vida de São Francisco que pintou em Assis, além do teatro sacro que envolve a hagiografia do santo, o que salta aos olhos é o caráter histórico e episódico de sua vida. Menos celeste e mais pedestre, o São Francisco de Giotto une impulso à verossimilhança e mundanidade, no sentido de uma transcendência que se fazia com as mãos e no tempo dos homens. A propósito, verossimilhança e antropomorfia não se confundem. Enquanto o retrato só se tornaria possível por meio de um tratamento naturalista, isto é, pela ênfase nos traços característicos de seu referente, o corpo como imagem do humano é um campo de tal modo amplo e destacado da prerrogativa da verossimilhança. Desde a aurora das comunidades humanas, empenas rochosas e cavernas foram marcadas por esquemas antropomorfos — basta que se observe algumas das pinturas do sítio arqueológico Serra da Lua, situado no Baixo Amazonas, ou da Serra da Capivara, no Piauí. Embora não sejam exatamente verossimilhantes, enquanto se concentram em ser esquemáticas, são um modo outro de tomar a figura humana como motivo. Antropomorfo, cabe assinalar, não se confunde com realista. Antigo, muito antigo, ele atravessa as mais diversas comunidades humanas e não se reduz a uma reiteração binária.

Giotto, Il dono del mantello, dalle Storie di san Francesco, 1290-95. Affresco, 2,7 x 2,3 m. Assisi, Basilica superiore di San Francesco.

A imagem, o que isso significa?

Opondo-se a uma afirmação exposta em A Madonna de Bellini não é um retrato, Giufrida escreve: “A afirmação do autor de que ‘parece um tanto perverso depositar sobre os retratos o peso de estruturas que se enraizaram de modo deliberado na cultura’ revela uma concepção absolutamente convencional de que as imagens seriam ora meras ilustrações, ora neutras, em relação às transformações nas sociedades.” Recorro a sua contraposição para expandir um pouco o raciocínio combatido, que aí aparece um tanto sumarizado. Ele terá alguma importância para os parágrafos que se seguem. Sem supor serem os retratos meros produtos de um processo social, tampouco parece possível não frisar a comparticipação entre processo histórico e produção artística que junto deles se entrevê. Mais que uma condicionante, o processo histórico aparece como um vetor de ação conjunta, capaz de criar o anteparo que estabelece o horizonte de possibilidades. Se a atividade poética se vale da imaginação para extrapolar o estabelecido, nem por isso pode-se afirmar que sua atividade tenha a ele transcendido ou que não o tome como problema a ser enfrentado. Como o artigo frisava, e o leitor atento terá notado, a objeção recaía sobre o fato de a exposição sublinhar o binarismo na cultura pictórica ocidental, abstendo-se de demonstrar como ele, mais que uma constante absoluta, é também um fenômeno entre outros. Mas, sobretudo, privando-se de indicar como ele se desenvolve nas estruturas da cultura — elemento obrigatório para uma exposição de um museu que se propõe formativo. 

Pinturas rupestres da Serra da Capivara, Piauí. 

O que o curador chama de concepção absolutamente convencional, prefiro chamar de travão analítico. Se é próprio do midiático se lançar sem reserva à novidade, é próprio da crítica especializada manter-se diante dela em algum estado de hesitação. Como demonstrou a pensadora francesa Marie-José Mondzain em seu ensaio “A imagem pode matar?”, é preciso se perguntar pelo poder das imagens, mas tampouco se deve anuir a uma imprecisa função mística capaz de tomá-las como sujeitos. Ainda que sem tomar as imagens como superestruturas, ao modo de um marxiano aguerrido, não se descarta por completo o valor da estrutura. Como sua existência só se completa na relação travada com seu receptor, é preciso ter em conta que ele age nas malhas da cultura, sempre mais opaca que o brilho cintilante das superfícies. 

Estando além do verdadeiro e do falso, nem por isso, quando se mostra aguda, a imagem deixa de afrontar o estabelecido —  e a existência de atos de censura só ratifica a hipótese de uma estrutura, qualquer que seja. Sem reiterar o estabelecido, não se pode deixar de observar que com ele interaja de modo contínuo. Palavra que ao mesmo tempo indica o medium e a operação mental, imagem é uma noção complexa. Sua face mais luminosa é a dificuldade que apresenta à formulação de um conceito competente. Sobre o ajuizar estético, Adorno escreveu: “As obras de arte só são compreendidas onde sua e a experiência atinge a alternativa entre o verdadeiro e não verdadeiro, ou como etapa prévia, aquela entre o certo e o errado”. A objeção ao modo como as pinturas se encontravam na exposição se depositava sobre o fato de que ali o que se sublinhava não era a instabilidade de seus sentidos possíveis, mas uma amarração temática, intimamente ligada a uma questão candente, que conduzia assim o público a asserções apressadas. Enquanto imagens, tanto as fotografias de Opie como o acervo sofriam com a determinação imposta pela proposição, que se fixava numa questão abrasada do debate contemporâneo. 

Projeto e demanda

Com tal discussão, não se contesta a variedade de atribuições a que se podem lançar os curadores, que devem poder tratar de questões temáticas, monográficas, geográficas e temporais. O que se salienta é que sua atividade, longe de fitar a independência que a crítica historicamente tanto procurou, estabelece-se numa rede intrincada de interesses. Sendo vitimados em muitos casos pelas urgências do mundo midiático, ou mesmo por tópicos que não necessariamente brotam de uma analítica das práticas artísticas, sua posição envolve tensão e angústia. Devem ao mesmo tempo ser agudos ao amplificar o sentido das obras, estar atentos aos novos posicionamentos solicitados pela esfera pública, assim como a toda e qualquer novidade que possa surgir. Se possível, intuí-la com certa antecedência. Não cabe aqui reiterar a já maçada discussão sobre a indústria cultural, o que nos levaria forçosamente a situar sua atividade no seio da espetacularização. Sabemos que não é assim. Ocorre que reprisar a crítica institucional eternamente não soa muito frutuoso, menos ainda acompanhar a batuta sedenta e volátil do mercado — sorrateiro em capturar pautas e discussões. Se a base de atuação das instituições de arte parece hoje inteiramente alinhada ao que ocorre na seara mercadológica, não se assusta que se contamine com as formas discursivas nele reinantes. Comprimido entre servir de esteio aos negócios das artes, ser o palco mais promissor das novas pautas do contemporâneo, manter patrocinadores e patronos, investir a arte de um sentido transformador, provar sua utilidade institucional e parecer sempre rejuvenescido, o museu mingua em sua capacidade de ser um tanto inútil e propositivo. 

Ainda que seja positiva a penetração da produção ultra contemporânea nos programas institucionais, ou mesmo que seja mais que necessária a construção de novas problemáticas no seio do discurso oficial dos museus, nem por isso soa prudente que se estabeleça uma promiscuidade entre as instituições de arte e o mercado. Ou mesmo que neles se sobreponha a lógica de consumo, mais interessada na identificação imediata do que na discussão. O vai-e-vem de agentes, alocados no gume afiado que separa o público do privado, é menos danoso que uma certa crença que confunde não-hegemônico e publicitário. O publicitário, por sua vez, é inimigo da indagação e do dissenso. Fita o efeito imediato e versa a linguagem cômoda do expectável.  Daí o fato de que o projeto de um museu democrático e inclusivo se converta na demanda de um museu democrático e inclusivo. Como demanda, a proposição convive harmonicamente com os interesses contrários de quem verdadeiramente o dirige, como exemplifica o episódio do veto às fotografias do MST pelo MASP, em 2022. Do contrário, com o projeto, assinala-se uma ação mais alentada, profunda, capaz de tematizar os novos problemas de modo frontal, sem exagerado presentismo, ciente do lugar que a arte ocupa na sociedade contemporânea e da posição das instituições na esfera pública. Claro, sem descuidar do papel formativo, que inclui forçosamente o contraditório.

Se é o curador aquele que nas instituições está encarregado de propor exposições, recai sobre ele a tarefa de reinterpretar acervos e obras. Deve fazer parte de sua atribuição a cautela de não sobrepor seu gesto criativo àquilo que tem por turno apresentar, preservando a espessura do que escolhe expor. Deposita-se sobre suas costas o peso de inquirir a tradição, aclarando questões que eventualmente subjazem aos recortes propostos. Mas deve também conter o impulso de ser a voz das imagens, refrear sua inclinação à suplementação discursiva, conservando assim a consistência interna das imagens de que trata. Aliás, a função das imagens passa também pela folga de uma função determinada. Folga essa que desaparece quando a justaposição taxativa, em vez do intervalo, salienta apenas a relação.

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Matheus Madeira Drumond é doutor em História pela PUC-Rio e escreve sobre artes visuais.

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