A Madonna de Bellini não é um retrato

"Catherine Opie: o gênero do retrato", exposição em cartaz no MASP até 27 de outubro, ao apresentar o trabalho da artista norte-americana, denota esgotamento e autorreferencialidade.

Há décadas Tom Jobim eternizou um modo curioso de entender a oposição a um trabalho exitoso. “No Brasil, sucesso é ofensa pessoal”, cimentou o compositor. Ocorre que a afirmação é ao mesmo tempo uma resposta a nossa síndrome de vira-lata, mas também um sintoma do lugar dedicado à crítica no país. A opinião discordante não raro assume a face pública da inveja e do recalque; herética e intempestiva, não soa estranho que a crítica especializada se tenha convertido numa espécie de endosso pouco agudo e interessado nas benesses que a bajulação pode proporcionar. Esta introdução, um tanto empolada, tem por objetivo apenas salientar que este que escreve tem consciência da chave usual com que será lido seu texto — isto é, pensando (de modo otimista) que “três gatos pingados” serão dele leitores. Sem pretender ressuscitar o embuste da crítica de arte, que de combalida passou a defunta olvidada, desejo apenas alinhavar alguns comentários esparsos sobre a exposição apresentada pelo Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand. 

Catherine Opie: o gênero do retrato, parte da programação dedicada às Histórias da diversidade LGBTQIA+, é um passeio pela produção fotográfica de Catherine Opie. Junto à exposição, ocorre em simultâneo a mostra Lia D Castro: em todo e nenhum lugar. Como o próprio título indica, o foco é interrogar o lugar ocupado pelo retrato na produção de Opie, em especial, na relação que estabelece com as dimensões do gênero e da identidade. Daí o trocadilho do título, que lança mão da aplicação do termo “gênero” tanto para distinguir as modalidades tradicionais da pintura (história, paisagem, retrato, natureza-morta etc.) quanto para designar a diferença entre as performances sociais da identidade. O gênero do retrato, assim, pretende reclamar pela tematização da identidade de gênero no gênero retrato. À distinção existente na língua inglesa entre genre e gender, os organizadores exploram o caráter homônimo dos termos nas línguas neolatinas — ainda que o texto de apresentação se limite a apontá-la no português. Do genus latino, as aplicações subsequentes todas apontam ao caráter daquilo capaz de engendrar identidade ou se referir ao tipo.

A autodefesa como estratégia

À exceção de algumas poucas fotografias onde o que se vê é a mise-en-scène ou o interesse espacial, grosso modo, as obras são fotografias de estúdio do tipo retrato, em sua maioria enquadrando troncos ou faces de pessoas LGBTQIA+. De sensibilidade ímpar, os cliques de Opie são altamente sensíveis à situação vivencial de seus retratados, explorando na aparente superficialidade das imagens técnicas uma profundidade existencial. No catálogo preparado para exposição os trabalhos recebem, além da reprodução das obras, um aparato crítico que conta com contribuições de Guilherme Giufrida, que organiza a mostra junto com Adriano Pedrosa, Ashton Cooper, David Joselit, Jack Halberstam e Vi Grunvald. A iniciativa, já usual no museu, é em si louvável, não fosse o custo exorbitante do catálogo — comercializado por R$ 149,00. Os fatos falam por si. O texto de Giufrida, que se pretende uma leitura embasada nas ideias de Judith Butler, constrói-se por meio da exploração do conceito de performatividade. Conceito de extração foucaultiana, com que Butler interroga as estruturas da normatividade na estabilização da identidade, do gênero e da sexualidade. O texto é aqui útil pois nele se escancara a hipótese que ampara a decisão expositiva: mesclar as fotografias de Opie com obras do acervo de pinturas europeias do museu. 

Sem ser exatamente um confronto com as fotografias, o texto de Giufrida é um aparato suasório. Quer, sobretudo,  justificar o que foi feito. Para isso começa por relembrar os episódios constrangedores das manifestações que culminaram no cancelamento da mostra Queermuseu — cartografias da diferença na arte brasileira, e aquelas contra a presença de Judith Butler num colóquio em São Paulo no ano de 2017. Que as questões que envolvem a sexualidade e o gênero são de tal maneira candentes, não há dúvida. O descompasso entre as modalidades de autodeterminação e as diretrizes morais, religiosas, políticas e institucionais é grande. Há certamente uma importância em fazer convergir o poder simbólico do museu e as imagens da diversidade de expressões de gênero e identidade. Mas tampouco pode o museu fazer disso uma estratégia de achatamento. Pinçamos a hipótese central do texto: “Reportando-se explicitamente a esses gêneros tradicionais da pintura ocidental, Opie usa formas clássicas de representação legitimadas pela história da arte para inserir outros sujeitos nessa convenção, capturando a construção de diferentes performances de gênero através da revisão crítica do gênero do retrato.” (p. 13) Segundo Giufrida, o mérito de Opie seria também se aproveitar de uma estrutura consolidada para apresentar novas formas de identidade no mundo social. Ou melhor, novas possibilidades de eclosão de outras formas de identidade. E as vestimentas, piercings, cicatrizes e tatuagens auxiliam em seu escancaramento.

Sucede que, para levar a cabo seu argumento, o organizador desliza de modo flagrante. Não fosse a cilada apenas textual, ela se desdobra na própria exposição: a abordagem, longe de ser formativa e inclusiva, é baseada num anacronismo contumaz. Vejamos sua hipótese para que se aclare o problema: “O gênero do retrato na pintura é um dos principais substratos para a construção da dualidade de gênero na história do Ocidente. Ao se estabelecer como gênero próprio da representação de corpos humanos, acaba por performar separações socialmente determinadas, mesmo que naturalmente recebidas, entre distinções binárias convencionais.” (p. 17) A sentença contém uma tese um tanto ousada que, para ser provada, precisaria de mais do que glosas esparsas dos textos de Butler. Parece mesmo assustador que se tome a visualização das performances de gênero no retrato como o substrato da dualidade convencionada homem-mulher. Como parece claro, os aparatos visuais certamente tiveram sua parcela de contribuição no estabelecimento do binarismo. Mas parece um tanto perverso depositar sobre os retratos o peso de estruturas que se enraizaram de modo deliberado na cultura. Mais ainda, sendo as performances de gênero todas elas históricas, portanto, não naturais ou imutáveis, parece mesmo perigoso que se reúna numa mesma sala, e sob um pretexto tão acabrunhado, obras provenientes de contextos temporais e sociais tão diversos. 

A sala expositiva do Masp. Foto: Eduardo Ortega.

Bastava cotejar compilados altamente competentes como a História da vida privada, organizada pelos historiadores franceses Philippe Ariès e Georges Duby, ou a mais recente História da Virilidade, organizada por Alain Cobain, Jean Jacques Courtine e Georges Vigarello. Isso para não falar da própria História da Sexualidade, de Michel Foucault, um verdadeiro monumento analítico dedicado ao tema. Seu primeiro volume, inclusive, se inicia com uma seção irônica, “Nós, vitorianos”, em que o pensador alerta sobre as descontinuidades que configuram a própria história da sexualidade. Ele escreve: “Diz-se que no início do século XVII ainda vigorava uma certa franqueza. As práticas não procuravam o segredo; as palavras eram ditas sem reticência excessiva e, as coisas, sem demasiado disfarce; tinha-se com o ilícito uma tolerante familiaridade.” (p. 10) Foucault nos lembra, contra o otimismo histórico-evolutivo, que o estado de coisas que encontrava no século XX não era necessariamente mais licencioso e permissivo que em alguns momentos históricos anteriores. Feita de descontinuidades, a história humana é mais errante que propriamente orientada. 

Se me é permitido dizê-lo, o discurso do museu e sua abordagem se igualam à toada jornalística e antirreflexiva. Mais interessado no alarido que na formação, toma o atalho  das proposições de efeito imediato, mas destituídas de espessura analítica. Sob a tarefa de mostrar um acervo de arte europeia constituído por um europeu emigrado em meados do século XX — que eventualmente (e de modo oportuno) aparece como estorvo —, esbarra na indecisão de enfrentá-lo ou tomá-lo apenas como arabesco propulsor. Embora o organizador aponte que Pietro Maria Bardi, diretor-fundador do museu, tivesse especial predileção pela arte figurativa, dada sua desconfiança de ser a abstração afastada do corpo social e elitista, sua tendência a adquirir obras de acento antropomorfo tem como marca a predileção por um aspecto compartilhado das existências: o corpo como imagem do humano. Como acrescento, as fotografias de Opie ajudam a completar esse inventário dos modos de ser/parecer do humano. Como constructos históricos, não autorizam que se tome o passado como um mero equívoco a ser — impossivelmente — corrigido. Tal raciocínio não levaria a tomar a instabilidade da performance de gênero como uma ontologia, rígida, a-histórica e acabada como aquela que o projeto se coloca como oposição?

O fantasma do verdadeiro

Recordo uma consideração agudíssima de Reinhart Koselleck, destacado teórico da história, que escreveu: “a verdade de uma história é sempre uma verdade ex post.” Como verdade que se constitui adiante, depois do acontecimento — que, segundo Kosellek, não possui sentido em si mesmo —, não pode ser inteiramente coincidente com aquilo de que é resultante. Tampouco é estanque e imutável. No âmbito de uma história da arte é a própria obra o acontecimento por excelência, o que supõe não ser justo confundi-la com as possibilidades futuras de sua historicização — claro, se ainda conservarmos o destaque dado à sua instância fenomênica. Mais ainda: tendo como objetivo expô-las, qual o sentido de apresentá-las de modo tão determinado, restando ao observador um lugar tão comprimido? Giufrida assim prossegue seu argumento: “a história do retrato não narra a representação de uma realidade que lhe é externa, mas que é fabricada pelos artistas e seus contextos. Tal operação formula a própria legitimidade de códigos de conduta, vestuários, expressões e limites corporais, que se manifestam na construção performativa daquilo que é real enquanto expressão bidimensional da figura humana, gerando efeitos que partem também das imagens para o mundo social.” (p. 17)

Via de regra, toda “representação” se estabelece sob algum ponto de vista. Sendo a realidade mais um arsenal a ser mobilizado do que propriamente uma substância estável, não parece nada admirável que os produtos que a tomam como ponto de partida sejam particulares e posicionais. Mais que a complexidade da figuração, a hipótese de Giufrida coloca em relevo o fantasma de uma verdade omniabrangente, fora do tempo e do espaço. Como o leitor já pode intuir, tudo isso cria o esteio sobre o qual será construída a hipótese de que as obras do passado são também elementos ativos na construção da normatividade de gênero e do apogeu da heteronormatividade. E, consequentemente, justificam a opção por apresentar as fotografias de Opie como contraste: o gênero retrato, que acolhe personagens outrora por ele obliterados, torna-se ao mesmo tempo uma indagação sobre o próprio gênero (enquanto forma simbólica) e sobre aquilo que ele denota das dinâmicas de gênero (enquanto performatividade humana). 

Um museu autoérotico

Mas a “Madonna” (1480-1490) de Bellini não é um retrato, nem pode ser um retrato o “São Sebastião na coluna” (1500-1510), de Perugino. E, ainda que a primeira possa ser tida como um paradigma do feminino e da maternidade, não se esquiva de ser uma ficção devota, que é também um exercício de interpretação e composição. A imagem de Perugino é homoerótica, sensual? Talvez seja, mas foi tida em algum momento como apta a figurar o sagrado. Deveremos então reconhecer que as fronteiras eram mais fluidas? Que as poses e a languidez do corpo masculino estavam menos submetidas a uma rigidez moral castradora? Isto é, ainda que pela via da figuração antropomorfa as pinturas supracitadas cruzem um problema de gênero, não o fazem pela via do retrato: gênero pictórico moderno estabelecido a partir de um indivíduo que possui ou possuiu existência histórica. Bastava que se fizesse uma leitura interessada do já traduzido ensaio de Jacob Burckhardt, “O retrato na pintura italiana do renascimento”, editado originalmente em fins do século XIX. Construído como uma apreciação histórica do gênero retrato na península itálica, concentra-se em averiguar a “afirmação do realismo e do individualismo na pintura italiana a partir do século XV” (Burckhardt, 2012, p. 74).  A oposição aqui estabelecida é simples: por caminhar pelo trajeto das relações facilitadas e limitantes, a convivência das pinturas com as fotografias de Opie parece falsamente propedêutica e demasiado indutora. Recorro a alguns exemplos para demonstrar a questão. “A arlesiana” (1890), de Van Gogh, personagem-tipo exposta ao lado de um retrato que contém na cena um jarro com girassóis, propõe quando muito uma irmandade grosseira entre as imagens. O tondo de Piero di Cosimo, a “Virgem com o menino” (1500-1510), ao lado de um tondo fotográfico, “Guilhermo & Joaquin” (2013), de Opie, é a apoteose de um entendimento rasteiro do formato e das relações que a cultura figurativa ocidental estabelece para com o cuidado infantil. “Diana”, nu posterior da atleta Diana Nyad clicado por Opie em 2012, ao lado da “Banhista e o cão griffon – Lise à beira do Sena” (1870), de Renoir, é uma indução pseudomórfica: a Lise de Renoir, além de indício da posição das mulheres na pintura ocidental, é também um avanço frente à canhestra pornografia olímpica das ninfas e musas que dominavam a cultura figurativa ocidental até o século XIX. Em adição a ser uma mulher, Lise é também uma antininfa, mas, sobretudo, é um fato pictórico complexo. 

Aliás, pseudomorfismo, conceito proposto por E. Panofsky e desenvolvido por Yve-Alain Bois, concorre a ser o núcleo duro da mostra, senão de boa parte das exposições propostas segundo aquilo que vem se configurando como a “moda Masp”. Bois, sobre o pseudomorfismo, escreveu: “O fato de dois objetos parecerem iguais não significa que eles têm muito em comum — muito menos o mesmo significado. Mas se eles têm algo em comum seria em seus propósitos, ou ao menos em suas condições de possibilidade.” (Bois, 2007, p. 27) A questão é um tanto simples: as aproximações morfológicas simplistas, conquanto possam ter alguma utilidade prática, correm o risco de anuir com exagerada espontaneidade a teses genéticas acabrunhadas. O que Bois chama de “redução histórica” é essa tendência a tomar o caminho fácil de analisar resultados contextualmente muito diversos sob a ótica de uma similaridade superficial. Não há por que cotejar muitos exemplos, basta que o leitor pense sobre a motivação com que “Angélica acorrentada” (1859), de Ingres, está colocada na exposição: um nu contido num formato oval. 

A convivência de obras absolutamente distintas e não poucas vezes discordantes parece se reduzir à hipótese de que todas elas em alguma medida estabilizam identidades de gênero binárias e estanques; quando delas se afastam, são prenúncios, quando na polaridade fazem morada, são confirmações da posição a ser combatida. Mas o denominador comum escolhido expõe a proposta ao equívoco. Entre composições alegórico-literárias, retratos burgueses, cortesãos, autorretratos e figuras religiosas, do século XV ao século XX, há uma sorte de descontinuidades. Se o retrato em Opie coloca em relevo as relações sociais que conformam os mundos do gênero e da sexualidade, o faz segundo sua experiência histórica. Que não é absoluta, nem pode ser vista como o lampejo de verdade no qual se encarna o esclarecimento sem tempo nem espaço. Estando o gênero humano inscrito no tempo, não há absoluto a ser buscado. Claro, Opie interroga a historicidade do retrato, atualiza sua mise-en-scène, critica suas convenções. Mas o gênero retrato, caso seja observada sua historicidade, não pode ser tomado como “gênero próprio da representação de corpos humanos”, mas das conformações históricas da identidade e da individualidade. Não basta apenas alertar para o anacronismo um tanto vulgar, mas sobretudo advertir que as questões de gênero tal qual postas nas últimas décadas são próprias de nosso tempo. Ou melhor, elas nos pertencem. Muito embora a experiência estética tenha como momento privilegiado a atualidade de sua efetivação, e sendo a história em larga medida sempre uma história do presente, não parece justo subsumir a diversidade das visões históricas ao absoluto de um presente pressuposto. Como escreveu o poeta de Itabira: “A terra é mais colorida do que redonda.” Limitá-la então para quê?

*

Matheus Madeira Drumond é doutor em História pela PUC-Rio e escreve sobre artes visuais.

COMPARTILHE: