As alturas de Alex Flemming

Todos somos iguais e todos somos diferentes: na arte de Alex Flemming, a diversidade cultural é o valor celebrado. Um ensaio da curadora independente Angélica de Moraes sobre “Alturas” — e sobre as alturas de Flemming.

por Angélica de Moraes

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SEM TITULO (Série Alturas)/UNTITLED (Height Series)
Felipe Ehrenber, Taslima Nasrin, Rosa von Praunheim, Arthur Liuz Piza
Berlin 2010 | 200 X 140 CM | Tinta acrílica sobre tela | Coleção AF
Berlim 2010 | 200 X 140 CM | Acrylic on canvas | Collection AF
(Reprodução: alexflemming.com.br)

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Quando mergulhamos o olhar na série de pinturas “Alturas”, de Alex Flemming, é inevitável ficarmos seduzidos pela força colorista que emana do conjunto. Há nessa imantação tanto a memória da História da Arte como seu aggiornamento. O artista realiza de modo original uma outra proposta para o gênero retrato. Coerente com o foco de sua obra, fortemente ancorada na figura humana, ele substitui a imagem do corpo pelo índice da presença: a régua que informa a altura do retratado.

Há aqui uma dupla operação de linguagem. A figura se torna abstração e a neutralidade do fundo é subvertida por imagens multiplicadas por estêncil (técnica que integra seu vocabulário desde os tempos pioneiros do grafitti paulistano) ou por gestos rítmicos do pincel em igual voltagem de acontecimentos visuais do primeiro plano e disputando com ele a atenção do olhar. O estêncil é também recorrente nas letras, traçadas a normógrafo, ou seja, dentro de um padrão. O que se harmoniza conceitualmente com o padrão do sistema métrico para criar um paradoxo: as pessoas retratadas são aquelas que, dentro de suas atividades específicas, fugiram ao padrão graças aos talentos que sabem exercer.

”Alturas” é a mais longeva e extensa série entre tantas que o prolífico artista costuma tocar em paralelo. Celebra a Cultura produzida por personalidades as mais diversas, do Brasil ou do exterior. Iniciada em 1988 e realizada de modo ininterrupto desde então, é também um caminho para a percepção de sucessivas fases da produção pictórica do autor. Podemos afirmar até que é quase um resumo de todos os caminhos por onde andaram seus pincéis. O quase fica por conta da prudência necessária à análise de obra tão fértil em experimentações e hibridizações de meios, processos e linguagens ao longo de mais de quatro décadas.

A gênese de “Alturas” é muito própria e até autobiográfica. Com a clareza e a objetividade que caracterizam as idéias realmente criativas, Flemming apropriou-se e expandiu em pintura um antigo hábito incorporado ao cotidiano doméstico da sua família: medir o crescimento dos filhos. Quando garoto, habituou-se a ter sua altura conferida em uma régua de traços construída e acumulada em uma parede da casa ao longo dos anos e das mudanças graduais de estatura.

O procedimento, que ele replicou para todos seus retratados, consiste em tirar os sapatos e, de costas para uma tela previamente preparada e in progress com outras marcas-retrato, ficar imóvel para também ter sua estatura mensurada. Inevitável pensar que o personagem, nesse momento, pode ter conversas consigo mesmo e seu ego sobre como estará situado nesse ranking. Mas não é um ranking. Não se trata, é óbvio, de associar altura com qualidade de contribuição artística. Muito pelo contrário. O artista frisa que foi movido pelo desejo de sublinhar a importância da diversidade. “Todos somos iguais e todos somos diferentes”. A diversidade cultural é o valor celebrado.

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SEM TITULO (Série Alturas)/UNTITLED (Height Series)
Helio Campos Mello, Paulo Mendes da Rocha, Gil Vicente, Emanoel Araújo, German Lorca
Berlin 2010 | 200 X 140 CM | Tinta acrílica sobre tela | Coleção AF
Berlim 2010 | 200 X 140 CM | Acrylic on canvas | Collection AF
(Reprodução: alexflemming.com.br)

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Tirar os sapatos também tem carga metafórica: é o retorno ao chão, “de onde viemos e para onde vamos”, observa Flemming, que carrega consigo o atávico pendor germânico para os abismos existenciais da “Angst”.

O conceito de medir é subvertido, portanto, por outra escala de valores: a relevância cultural, entendida aqui não só na esfera das artes mas também de outras atividades que, somadas, definem a cara do que é estar no mundo hoje e as muitas contribuições que tivemos para estruturar nossa própria visão de mundo, cada vez mais fragmentária e contingente, caleidoscópio de muitas facetas iluminadas que se completam por oposição ou complemento. Ou, como observa o autor, “um diapasão de comportamentos”.

A remissão ao universo da música é necessária também para observarmos o contraste entre os ritmos de tinta que dançam ao fundo e as escalas de cores sólidas recortadas em régua que regem o primeiro plano.  “Hoje a gente pode ver essa série de telas até como um código de barras de nossa época”, observa o pintor. Sem dúvida. Há algo de único e objetivamente identificador nessa soma de personalidades que não são agrupadas por atividades, mas resultam do acaso de estarem acessíveis ao convite do artista para visitar seu ateliê e aceitar o jogo de ingressar na tela sem privilégios de lugar e até mesmo de vizinhança. “Há, por vezes lado a lado, pessoas que representam idéias antagônicas”, observa.

As letras de normógrafo que, de modo criptográfico, seguem a verticalidade das réguas-personagens são índice do vocabulário visual do artista e que adquiriu sua face mais conhecida ao ser inserida na paisagem paulistana: remetem aos painéis fotográficos vitrificados da Estação Sumaré do metrô e da Biblioteca Mário de Andrade, dois poderosos ícones da presença da obra de Flemming em sua cidade natal.

O diálogo com a História da Arte se faz porque Flemming propõe uma resposta contemporânea a uma pergunta que remonta à Renascença e aos tempos pré-fotográficos. Qual a altura dos retratados? Essa informação podia ser (e era) substituída ou distorcida por escalas de valor agiográfico ou laudatório de algum poderoso mecenas, por exemplo. Os artistas sacros tinham uma obsessão: saber a altura de Cristo. Rafael Sanzio teria resolvido o dilema estabelecendo o padrão, por meio de elementos arquitetônicos (como colunas) que situavam a escala humana em suas obras.

“Desde 1989 mantenho no ateliê uma tela com fundo preparado a esperar os convidados que vou retratar”, conta o pintor. Essa disciplina de produção se manteve mesmo quando passou, em 1991, a ter dois endereços residenciais: em São Paulo e Berlim. Em ambos, há ateliê com essas telas in progress, daí resultando um panorama riquíssimo de diálogos culturais e protagonismos definidores de épocas, atitudes e conjuntos de valores culturais indeléveis em ambos os lados do oceano Atlântico.

A presente mostra é um recorte representativo dessa produção e abrange um arco de tempo generoso. A lista de personagens de cada tela é um convite a checar contribuições e verificar a porosidade delas em nós. O elenco é extenso, cheio de surpresas e descobertas de outros contextos geográficos e culturais ao lado de valores consagrados que já habitam nosso acervo de memórias. Há especialmente aqueles que nos ajudam a perceber de que amálgama somos formados e que conjunto de valores nos mantém em pé como pessoas e cidadãos.

Ao destacar essas personalidades, Flemming chama a atenção e homenageia de modo muito assertivo o valor estruturante da Cultura como indissociável de uma cidadania reverente à Vida. Celebra as medidas de nossos sonhos, que costumam transbordar de circunstâncias e restrições de momento.

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SEM TITULO (Série Alturas)/UNTITLED (Height Series)
Telmo Pires, Bert Rodriguez, Tuca Vieira, Ailton Carmo dos Santos Besouro, João Moreira Salles, Gilberto Gil
Berlin 2007 | 200 X 140 CM | Tinta acrílica sobre tela | Coleção AF
Berlim 2007 | 200 X 140 CM | Acrylic on canvas | Collection AF
(Reprodução: alexflemming.com.br)

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