Antoine Watteau sob o olhar do século XIX

A historiadora Laura Ferrazza apresenta ao leitor do Estado da Arte a clássica análise que Norbert Elias fez da obra do pintor francês Jean Antoine Watteau, além de um poema de Paul Verlaine.
Jean Antoine Watteau, “A Ilha de Citera”, 1709

por Laura Ferraza

Os julgamentos sobre a arte e os artistas nunca são neutros. A obra deixada por um pintor é quase um ser vivo que atravessa os tempos e, ao longo dessa jornada, passa por recepções das mais variadas, esquecimentos e retornos inesperados. Hoje falarei sobre as ressurgências do pintor francês Antoine Watteau (1684 – 1721) no contexto da sociedade francesa do século XIX, através de excertos do ensaio magistral de Norbert Elias sobre o célebre quadro “O Embarque para a Ilha de Cítera” (1719) e de um poema de Paul Verlaine (1844 – 1896).

A Peregrinação de Watteau à Ilha do Amor, de Norbert Elias.

No decorrer do século XIX, o papel de guia dos grupos de outsidresespecializados na produção artística e a tensão entre seu gosto e o da sociedade em geral tornaram-se coisa corriqueira. O gosto artístico do grande público (…), seguia, em grande parte, as inovações que vinham sendo desenvolvidas nos pequenos grupos de especialistas (…), que representavam com frequência, uma geração jovem em vias de ascensão, seus sonhos e protestos contra o gosto e a ordem estabelecidos pelas gerações mais velhas.

Foi em um grupo desse tipo que Watteau e, principalmente seu quadro sobre a partida para a ilha do amor foram descobertos e transformados em uma espécie de objeto de culto. O grupo foi criado no início do governo do assim chamado rei burguês Luís Filipe. Alguns membros desse grupo moravam numa casa velha, antes destinada à demolição, ainda do tempo do Antigo Regime e, por isso mesmo, carente de reforma. Tudo isso, correspondia às convicções e ao gosto do grupo, que desenvolveu ali uma forma de moradia comunitária onde mesmo quem não era morador podia entrar e sair à vontade. Em virtude do nome da rua onde a casa estava situada, o grupo, que ali floresceu de 1834 a 1837, ficou conhecido como círculo da Rue du Doyenné. Em lugar dos salões das grandes damas, que ditavam as regras do gosto artístico do período eram um pequeno grupo de artistas da Boêmia. É possível que o termo “boemia” tenha sua origem nesses grupos. De toda forma, um de seus mentores, Gérard de Nerval, reuniu algumas de suas produções literárias sob o título Petits Châteaux de Bohème (…).

Era um grupo de jovens artistas e escritores, românticos e conservadores, que procurava uma contra-imagem, um sonho, para compensar a rotina cinzenta e sóbria da sociedade burguesa. Acabaram achando o que procuravam caindo, talvez sem pensar, em uma restauração política, em um passado, particularmente na França pré-revolucionária do século XVIII. Sonhavam com a alegria, com a beleza dos trajes que as pessoas então vestiam, com a graça e a elegância de suas festas, que tentavam copiar. O desprezo ao rococó cedeu lugar à admiração. O pêndulo oscilou para o outro lado.

Gérard de Nerval era o dono e um dos moradores da casa da Rue du Doyenné. (…). Foi nessa situação que Nerval e seus amigos redescobriram Watteau e, sobretudo, sua peregrinação à ilha de Citera, interpretando o artista e sua tela segundo a disposição de seus espíritos, suas necessidades emocionais e ideais. Junto com a tela, Watteau tornou-se para eles uma espécie de figura de culto. Viam no pintor um representante do paraíso que haviam perdido, um exemplo da época suntuosa da Regência de Luís XV, em que casais de amantes se vestiam com roupas tão caras e coloridas, como se podia ver na tela de Watteau, e a vida se resumia a viagens de amor e bailes elegantes. Procuravam, então, reviver essa época, dando festas elegantes, e vendo a si mesmos como a “galante Bohème”. Nesse sentido, percebiam até a Citera de Watteau como a representação de uma festa do prazer. Mais uma vez uma máscara aparecia diante da obra; mais uma vez via-se o quadro, seletivamente, de maneira a relacioná-lo a ideais particulares, como representação pictórica de uma utopia coletiva.” (p. 41 a 43)

Recorrer a Watteau e à atmosfera de suas obras parece ter servido ao grupo descrito por Elias como uma fuga da realidade, já que a visão que tinham da sociedade de seu tempo era pessimista. A Europa vivia um momento político tenso, marcado pelas Guerras Napoleônicas e pelas Revoluções liberais de 1830 e 1848, que ocasionaram tensões políticas e sociais. Nesse contexto, o idílio representado pela obra de Watteau parecia uma excelente maneira de afastar-se da áspera realidade.

Algumas décadas mais tarde, em 1869, o poeta Paul Verlaine lançou um livro de poemas intitulado Fêtes galantes, referência ao gênero de pintura em cujo âmbito Watteau produziu tantas obras-primas; com efeito, a paternidade de todos esse gênero pictórico chegou a ser creditada a ele. Verlaine, por sua vez, ficou conhecido como o “Watteau da poesia”, por reproduzir em seus versos as imagens de sonho e mistério criadas pelo artista cento e cinquenta anos antes. Um exemplo é o poema “Clair de lune” (Luz da lua), que, assim como as pinturas de Watteau, nos introduz ao êxtase de um mistério angustiante. Nessas linhas encontramos aquela incerteza da ação que se desenrola em gestos latentes na pintura de Watteau e a mesma mescla de beleza e tristeza e que tanto intrigou os espectadores ao longo dos séculos:

Clair de Lune

Votrê âme est um paysage choisi
Que von charmant masques etbergamasques
Jouant du luth et dansant et quasi
Tristes sous leurs déguisements fantasques.
Tout en chantant sur le mode mineur
L’amour vainqueur et la vie opportune
Ils n’ont pas l’air de croire à leur bonheur
Et leur chanson se mêle au clair de lune,
Au calme clair de lune triste et beau,
Qui fait rêver les oiseaux dans les arbres
Et sangloter d’extase les jets d’eau,
Les grands jets d’eau sveltes parmi les marbres.

Luar

Vossa alma é uma paisagem escolhida
Que as máscaras e as bergamascas vão encantando
Tocando o alaúde e dançando e quase
Tristes sob seus mascaramentos fantásticos,
Cantando tudo no modo menor
O amor vencedor e a vida oportuna,
Parecem não acreditar em sua felicidade
E sua canção se mescla ao luar,
Ao calmo luar triste e belo,
Que faz sonhar os pássaros nas árvores
 E soluçar de êxtase os chafarizes,
Os grandes chafarizes esbeltos no meio dos
 mármores.

(tradução de Álvaro Cardoso Gomes)

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