A arte como consolo e esperança

A história da arte está repleta de exemplos de artistas que retrataram a dor, a guerra, o sofrimento humano e, claro, as epidemias ou pandemias. Diante dos inúmeros exemplos, Laura Ferrazza fala daqueles que nos trazem mais consolo do que imagens do caos e do horror.

por Laura Ferrazza

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Em tempos difíceis como o que estamos vivendo, procuramos buscar algumas formas de nos confortar e, claro, de reacender a esperança. Os artistas foram e são capazes de expressar em palavras ou imagens os sentimentos gerados por situações de crise em que nós, meros mortais, não conseguimos achar as palavras ou as formas para explicitar nossas sensações. A história da arte está repleta de exemplos de artistas que retrataram a dor, a guerra, o sofrimento humano e claro, as epidemias ou pandemias.

Diante dos inúmeros exemplos escolhi falar daqueles que nos trazem mais consolo do que imagens do caos e do horror. Não pensem que considero menores quadros impactantes como o Triunfo da Morte (1562) de Pieter Bruegel, o Velho (1525 – 1569), ou as inúmeras gravuras e pinturas da Dança Macabra que apareceram no período do auge da Peste Negra (século XIV e XV). A morte pode resultar em obras carregadas de uma beleza atemporal e deixa suas marcas na arte de inúmeras formas. Porém, acredito que, neste momento, precisamos de uma dose de consolo e de esperança que a arte pode igualmente nos oferecer.

Durante algum tempo a fé forneceu temas para os artistas. Mesmo que, hoje, alguns de nós não partilhemos mais das mesmas crenças, a perenidade das obras criadas com temática religiosa são capazes de nos emocionar e nos consolar por sua beleza. Um dos exemplos é a pintura da Pietá executada pelo pintor veneziano Tiziano Vecellio (1490–1576) entre 1573 e 1576. A escola veneziana de pintura, e esse artista em especial, eram conhecidos por suas obras repletas de luz e cores vivas, no entanto, esse quadro tem uma aparência diferente. Em 1573, Tiziano teria cerca de oitenta anos e era o pintor oficial de Veneza. Com a idade avançada ele começou a produzir quadros de temas religiosos e com tom mais trágico. Essa pintura em especial ele planejou como decoração para seu túmulo. Foi pensada a princípio para a igreja franciscana de Frari em Veneza, mas um desentendimento com os freis sobre o local em que ficaria a obra o levou a pedir sua devolução, que aconteceu em 1575. Enquanto o pintor ainda realizava sua obra, no ano de 1576, um surto de peste tomou a cidade. Tiziano e seu filho Orazio, que também era artista e trabalhava com o pai, acabaram vítimas fatais da peste. Assim, a pintura ficou inacabada e tornou-se sua última obra.

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Pietá de Tiziano, óleo sobre tela, 389 cm x 351 cm, 1576. Galeria da Academia, Veneza.

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O tema escolhido é o momento em que Maria carrega nos braços o corpo do Cristo morto. Em geral, esse tema conta apenas com esses dois personagens. Tiziano inova ao colocar outros dois personagens na cena: Maria Madalena, em pé ao lado esquerdo parece introduzir movimento na cena; do lado direito, ajoelhado ao lado de Cristo, vemos um homem idoso que seria o personagem Nicodemos (fariseu que seguia os ensinamentos de Jesus e auxiliou em seu sepultamento). Alguns estudiosos alegam que esse último poderia ser um autorretrato do artista que encara seu fim iminente ao olhar a face do Cristo morto.

Maria e Jesus ocupam o centro da cena que ocorre no nicho de um templo. Um feixe de luz desce do alto, mas a luz mais intensa parece emanar do corpo de Cristo. Essa luz contrasta com os tons escuros do ambiente e das vestes dos demais personagens. Os traços inacabados e os contrastes de cor conferem a cena uma aparência espectral e inquietante.  Maria usa um discreto manto azul, enquanto Nicodemos mal cobre seu corpo com um manto em tom de vermelho desbotado. Já Maria Madalena à esquerda se destaca em tons de verde e dourado parecendo querer irromper da tela, agitada, verdadeira, como que nos conduzindo da morte para a vida. Em meio às belas estátuas da cena, um relevo ao fundo nos lembra que, após a morte virá a ressureição; através da imagem de uma fênix, aquela que renasce das cinzas.

Assim, a Pietá de Tiziano traz o tema da morte, mas nos consola com sua beleza, com a esperança de uma ressureição e com um gesto de vida em meio a contemplação do fim.

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No século XVII, uma série de telas do pintor flamengo Antoon Van Dyck (1599–1641) dedicadas à Santa Rosália surgiram, também, no contexto de uma epidemia. Van Dyck nasceu na Antuérpia e foi discípulo de Peter Paul Rubens (1577–1640). Era comum entre os artistas daquela época passar um período na Itália, para conhecer os mestres da pintura italiana e formar uma clientela. Instalou-se primeiro em Gênova, onde alcançou grande sucesso como retratista da aristocracia, função pela qual se notabilizou. Corria o ano de 1624, Van Dyck deixou Gênova onde vivia desde 1621 e mudou-se para Palermo, na Sicília. Logo após sua chegada, a cidade foi atingida por um surto de peste que devastou grande parte da população e obrigou a instauração da lei marcial, quando até mesmo o líder político local faleceu da doença. As autoridades estabeleceram uma quarentena, semelhante a que estamos vivendo hoje; assim, o artista ficou recluso em sua casa/atelier.

Estando Van Dyck nessas condições, durante um ano e meio, produziu uma série de pinturas de cunho religioso, afastando-se da pintura de retratos. Ele sentiu necessidade, naquele momento, de expressar de alguma forma o desespero e ao mesmo tempo a esperança que ele e os demais cidadãos de Palermo vivenciavam. A série de quadros é dedicada à Santa Rosália, padroeira da cidade. Durante a epidemia, um grupo de frades franciscanos encontrou em uma caverna a suposta ossada da Santa. Rosalia Sinibaldi (1130–1160) foi uma nobre de Palermo descendente de Carlos Magno, tornou-se eremita e viveu em uma caverna no Monte Pelegrino nos arredores da cidade. Durante a peste do século XVII suas relíquias foram encontradas e carregadas pelas ruas da cidade e como que por milagre a peste arrefeceu. Os cidadãos da cidade passaram então a cultuá-la como sua salvadora.

As pinturas de Van Dyck mostram três momentos da vida de Santa Rosália; primeiro sua decisão de viver como eremita na caverna; depois, o instante logo após sua morte, quando os anjos a coroam como Santa; por fim, a tela que ficou mais conhecida: aquela que retrata a Santa durante a peste, lançando sobre a cidade as suas bênçãos. O título da obra é claro e direto: Santa Rosália Intercedendo pelas Vítimas da Praga de Palermo. No quadro, Rosália parece flutuar nos céus cercada por diversos querubins. Um feixe de luz desce das nuvens no alto da pintura e ilumina seu rosto. Na base da tela, na paisagem ao fundo, estaria a cidade de Palermo e o Monte Pelegrino. Um dos anjinhos vem coroar a Santa com flores e outro mais abaixo carrega uma caveira, símbolo da transitoriedade da vida que está presente nos outros quadros da série. O halo de luz em torno do rosto de Rosália e seu olhar elevado aos céus (que aparece também nos outros quadros da série) era comum nas obras devocionais do Barroco durante o período das Reformas Religiosas e indicava uma fé elevada, embora pareça ao observador atual um certo exagero dramático.

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Santa Rosália intercedendo pelos doentes da praga de Palermo, Antoon Van Dyck, 1624. óleo sobre tela 99,7 x 73,7 cm. Metropolitan de Nova York

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A intenção ao analisar esses dois exemplos da história da arte, produzidos em épocas de epidemias, foi demonstrar que cada artista e cada período reage a sua maneira e pinta com suas cores e formas as impressões causadas pela peste. A proximidade da morte ou o fato de estar cercado pelos horrores da doença provocaram tanto reações pessimistas como tentativas de consolo e esperança.

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