por Iasmine Souza Encarnação Novais
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“Metropolitan prevê prejuízo de 100 milhões de dólares”. Soou como uma tragédia grega para o mundo da arte o anúncio da gigante instituição no mês passado. Por aqui, na esfera íntima, a dramaticidade da afirmação me fez relacionar: se isso vai acontecer com o MET, como ficam os nossos museus locais?
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Nos últimos três meses, assistimos embasbacados ao lockdown dos mais robustos museus do planeta. Dia após dia, porta após porta, sem tempo para despedidas. Exibições planejadas por anos foram desplanejadas em poucos dias para atender às taxativas determinações governamentais.
Entender o que significa o fechamento de um museu passa necessariamente pela compreensão do papel destas instituições na sociedade. E, nesse ponto, a etimologia da palavra tem a nos ajudar. Museu vem do grego “Mouseion”, termo que era utilizado na Antiguidade para designar o espaço de contemplação destinado às divindades protetoras da ciência e da arte, e onde ficavam guardados objetos preciosos oferecidos aos deuses.
Ultrapassada uma história ligada ao colecionismo financiado por famílias da nobreza, com acesso pouco (ou nada) democrático, é apenas a partir do final do século XVIII – sob a afluência dos ideais revolucionários franceses – que o museu se fortalece como instituição educativa aberta, imbuída do objetivo de jogar luz à história do país e de seu povo.
Desde então, posiciona-se ao lado da sociedade, na medida em que, como conservatório do patrimônio histórico do passado, cria, no presente, o espaço ideal para formação da identidade de uma comunidade. E é assim que o museu desponta como lugar onde, por essência, o cidadão pode exercitar o senso de história e memória cultural.
Claramente, tudo muda muito desde Atenas. Contudo, em certa medida, ouso abraçar a herança dos gregos na acepção da palavra para pensar o museu como “guarda-tesouro” de um dos relacionamentos mais caros e preciosos à formação da consciência cultural: a interconexão pessoa-cidade. Isso porque a experiência de imersão proporcionada pelo museu permite ao cidadão compreender o sentido de pertencimento no espaço que habita, conectando-o à própria sociedade. E é por conta disso que, esteja você em qualquer canto do planeta, visitar um museu é um programa que dificilmente ficará de fora do seu roteiro turístico. Mais do que cartões postais, são paradas obrigatórias de conexão. E é exatamente a conexão, que, em tempos de isolamento social, virou artigo tão desejado quanto álcool em gel.
Diante disso, fica o impasse: como transplantar as paredes do espaço físico e construir uma comunidade culturalmente consciente e engajada no mundo digital? Como atrair para a arte os olhares cansados do excesso de informação do ambiente virtual? Em verdade, o processo de aproximação da arte com o público no formato virtual não é exatamente “mérito” do vírus. A crise apenas adiantou abruptamente o que já caminhava, transformando a incorporação das mídias sociais na estratégia de interação dos museus em demanda de absoluta sobrevivência do diálogo cultural.
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Naturalmente, o desafio de que falo aqui é bem maior do que apenas estar presente online. A chave está em fazer presente o acervo nas redes, democratizando os conteúdos e discursos de arte, que historicamente carregam uma bagagem cheia de erudição, quase desconcertante para muitas pessoas. É urgente a adaptação à nova realidade do stay-home-life. Agora, compreendido o papel dos museus e prejudicado o contato presencial, será preciso ir além para relembrar o propósito da arte, a fim – e a ponto – de que possa alcançar as pessoas dentro de suas próprias casas. Arte é inspiração, refúgio, afago para a alma. Muito mais do que expressão de beleza, é também um meio para ensimesmar-se e servir de abrigo para a energia emocional.
Sem apelar para qualquer discurso sofisticado, a arte está para a alma (aqui entendida como conjunto de sentimentos e emoções) assim como os alimentos estão para a força física. Por isso acerta Picasso ao afirmar, em célebre frase, que “a arte limpa da nossa alma toda a poeira do dia a dia”. Essa é a lição que os museus podem (e devem) oferecer majestosamente a um mundo aflito.
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Felizmente, a história da arte mostra que momentos de profunda crise nos rendem bons frutos. Rupturas são combustível para novas vanguardas, linguagens e uma dose maior ainda de liberdade artística. Foi exatamente o que aconteceu, por exemplo, com o período pós Segunda Guerra e a arte que se considera contemporânea. Uma nova mentalidade chega para estremecer antigos paradigmas.
E assim esperamos que seja após a pandemia. Que estejamos com a mente aberta para o novo dentro da arte. E, aqui, que fique bem claro o entusiasmo pelo novo como construção, e não como destruição. Ganha-se na comunicação leve e renovada, sem perder de vista a natureza da arte e a riqueza da sua história. Nesse ponto, a experiência com as mídias sociais deve proporcionar um território fecundo para ampliar no indivíduo a capacidade de ver e sentir, preparando-o para experimentar a arte, ainda que de casa, em sua máxima plenitude.
Portanto, uma vez revigorada a experimentação íntima da arte, restará potencializada a conexão cultural coletiva. Talvez esse seja o equilíbrio que vai bem em tempos dramáticos de quarentena: a conservação da herança imaterial da sociedade junto ao encantamento do aprendizado de voltar-se para dentro do si mesmo, ambos através da arte. Assim, um outro olhar sobre o mundo da arte estará consolidado, e, os nossos museus, fortalecidos. Até porque, depois de alguns dias (ou meses) presos à tela do celular, sedentos por sociabilidade, esperamos ser recebidos por instituições renovadas e vibrantes, quando esse momento finalmente chegar. E, certamente, após recalibrada experiência cultural além dos espaços físicos, o nosso contato com a arte não será mais o mesmo.
Por isso, mantenham-se vigilantes: prestigiem, compartilhem, salvem os nossos museus!