por Laura Ferrazza
Nem sempre a beleza de uma construção ou de uma paisagem está em sua versão intacta, há algo de perversamente bonito em uma edificação arruinada. Nem todos são capazes de enxergar o belo a partir do caos. O amor pelas ruínas nasceu da nostalgia por um passado que não se pode mais vivenciar, se não através de seus destroços. Foi no século XVII que a arte alçou as ruínas do Império Romano, localizadas nos arredores de Roma, à presença garantida em paisagens bucólicas, como nas obras do pintor francês Claude Lorrain. Contudo, foi somente no século XVIII que as ruínas se tornaram um verdadeiro fetiche.
Enquanto na Itália se exaltavam as ruínas da antiguidade greco-romana, na França e na Inglaterra alguns passaram a observar, também com encanto, as ruínas medievais. Na Inglaterra em especial, os restos mortais de construções como Castelos, mas principalmente velhas Igrejas e Mosteiros abandonados remetiam a um longínquo passado católico envolto em mistério. Uma vez que a Igreja Anglicana fora criada no século XVI pelo próprio rei, Henrique VIII.
No século XVIII, a mudança no gosto aparece até mesmo na maneira de se lidar com a natureza, como atesta a moda dos jardins paisagísticos ingleses. Esses jardins procuravam respeitar alguns acidentes naturais do terreno, a fim de escapar das formas excessivamente geométricas dos jardins palacianos franceses do período anterior. Desse modo, privilegiavam os caminhos sinuosos ladeados por árvores frondosas, além das quedas d’água, grutas falsas e, é claro, falsas ruínas. Todo esse estilo paisagístico havia saído das telas para ganhar vida no século XVIII. Faziam parte de um ideal estético chamado “pitoresco”, expressão derivada de “pinturesco” que significa “próprio para ser pintado”.
A nostalgia do passado e a presença das falsas ruínas nos jardins levaram a extremos excêntricos como a contratação de falsos “eremitas” ou “frades”, que ficavam sentados em ruínas e templos de jardins, retirados do mundo em contemplação. Assim, quando se mostrava o jardim aos amigos, uma visita ao eremita passou a ser uma diversão e a própria gruta em que ele permanecia tornou-se uma característica essencial da arquitetura dos jardins.
Foi dentro desse espírito que Horace Walpole iniciou a construção de sua casa de campo nos arredores de Londres em 1747. Horace era o filho mais novo do primeiro ministro da Inglaterra, mas era também um escritor, um esteta e um colecionador de arte. Sua residência, batizada de Strawberry Hill, tornou-se a mais influente construção extravagante da Inglaterra do século XVIII e inaugurou o estilo gótico ou melhor seria neogótico. A casa foi construída ao longo de cinquenta anos. A ideia de Walpole de um pseudocastelo para alojar as suas coleções inspirou-se parcialmente no entusiasmo em voga pelo ato de colecionar e pela construção de museus. Durante seu longo processo de construção, idealizado pelo próprio Horace, foi sendo realizado um processo de “goticização” do edifício. A estrutura em si respeitava as formas clássicas e o que havia era uma fina pele medieval, caracterizada pela utilização de elementos da arquitetura gótica como decoração, procedimento que na época recebeu o nome de “gothick”.
A fachada leste de Strawberry Hill era simétrica e, a despeito das janelas ogivais e dos detalhes góticos, não inspirava admiração reverente nem era teatralmente composta. Mais tarde, Walpole adicionou uma fachada norte, rematada por uma torre circular. A torre, emergindo das árvores, assemelhava-se a uma fortaleza de livro de histórias. Nesse ambiente propício, Horace Walpole escreveu um romance que viria a inaugurar o chamado “romance gótico”, intitulado “O Castelo de Otranto”, o qual foi também impresso no interior da residência. Walpole é considerado um pré-romântico, porque possuía uma sensibilidade mais clássica do que romântica. Sentado em sua biblioteca, ele teria mais facilmente se deliciado com os temores do mundo gótico do que se sentido oprimido por eles. Mas havia uma crescente devoção a tais horrores entre o público leitor, e seu romance – que evocava um mundo em que virgens indefesas estavam sob a constante ameaça de frades loucos – foi um grande êxito popular. O romance, assim como o edifício gótico, criou o mundo de fantasia que tanto atraiu os contemporâneos de Walpole e no qual ele encenava viver. A dramaticidade de um mundo tenebroso e funesto, patrulhado à meia-noite por agourentas figuras religiosas, era tão emocionante e agradável para o leitor da época quanto o eram provavelmente as gravuras que circulavam sobre a arquitetura da antiga Roma.
É interessante notar que o desmoronamento e a decrepitude eram tão persistentemente cultivados pelos aficionados do estilo gótico como o eram pelos entusiastas do neoclássico. O mais notável edifício criado pelo reflorescimento gótico setecentista, foi Fonthill Abbey, em Wiltshire, que pertencia a William Beckford. Strawberry Hill foi a fonte e o modelo dos edifícios góticos de toda a Europa, mas Fonthill foi a espetacular maravilha do seu tempo. Tal como Walpole, Beckford era um conhecedor de arte e de antiguidades. Sua residência era um museu e um retiro, porque, ao contrário do socialmente requisitado Walpole, Beckford tornou-se um proscrito social, ampliou suas paixões para muito além da coleção de obras de arte e entregou-se à flagrantes excessos sexuais. A sociedade de seu tempo o condenou ao ostracismo e ele adotou sem relutância o papel do excêntrico herói “gothick” que enfrentava as convenções e o mundo.
Nem Beckford, nem seu arquiteto, James Wyatt, planejaram a construção com seriedade. O proprietário queria concretizar seu sonho assim que o concebeu e o arquiteto cumpriu prazos impossíveis com um trabalho de qualidade inferior. A torre central, uma “folly” que não servia a qualquer propósito útil e era mais fraca do que outras partes do conjunto, desmoronou após 25 anos de sua inauguração sobre seus débeis alicerces, destruindo as alas adjacentes. A ruína de Fonthill esteve mais próxima do que qualquer outro evento de concretizar o ideal perseguido por arquitetos e amantes do gótico dessa época: a decadência de um sonho quase no mesmo instante de sua concepção.
Entre as curiosidades da vida de Walpole, está o episódio que protagonizou ao se envolver numa querela internacional com a Imperatriz da Rússia, Catarina, a Grande. Em 1778 a soberana arrematou a coleção que pertencera a Robert Walpole, pai de Horace. A mesma tinha sido herdada por seu sobrinho, George um famoso perdulário. A coleção era fruto da vida toda da aquisição de obras de arte por Robert que foi primeiro ministro durante 20 anos. Essa era a mais famosa coleção de arte particular na Inglaterra e uma das melhores do mundo. Constava de quase 200 quadros, inclusive “O sacrifício de Isaac” de Rembrandt, além de 15 obras de Van Dyck e 13 pinturas de Rubens. Catarina queria todos e após dois meses de negociação arrematou a coleção inteira por 36 mil libras.
Horace Walpole que sempre cobiçara as obras e esperava que um dia viessem a lhe pertencer, classificou a transação de “roubo”. Ele provocou uma onda de protestos indignados na Inglaterra que apregoavam ser intolerável que uma imperatriz estrangeira levasse embora um tesouro nacional. Mais do que uma coleção de quadros, seria retirado um capítulo inteiro da história e da cultura do país. Horace organizou um abaixo assinado para que a coroa inglesa comprasse a coleção de volta, mas fracassou. Na época ele disse que, se ele não pudesse ter os quadros, “seria preferível que fossem vendidos à coroa da Inglaterra do que à da Rússia, onde serão queimados num palácio de madeira na primeira insurreição”. A tal insurreição que ele previu acidamente em seu comentário ocorreu muito tempo depois, mas a referida coleção, por sorte, compõe ainda hoje o acervo do Museu do Hermitage em São Petersburgo. A maior das ironias é que mais tarde Horace tornou-se o herdeiro de seu sobrinho, mas já não havia mais muito o que comemorar.
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