por Laura Ferrazza
Em 1638, os irmãos Le Nain ? um trio de pintores que tinha seu atelier em Paris desde 1630 ? produziram uma tela intitulada “Adoração dos Pastores”. Apenas seis anos depois, o também francês Georges de La Tour ? artista de maior renome e com maior circulação na aristocracia da época ? pintou uma obra com o mesmo nome e o mesmo tema. Trata-se de telas produzidas em um mesmo século, numa mesma década e na mesma cidade. Contudo, basta um breve passar de olhos para perceber ambas as obras tratam o mesmo tema religioso de formas imensamente distintas ? cada uma representando um estilo diferente, no contexto da arte francesa do século XVII.
O título “Adoração dos Pastores”, naturalmente, refere-se ao momento imediatamente posterior ao nascimento do menino Jesus, quando os pastores e seus rebanhos fazem uma cerimoniosa visita à criança divina ? cena muito repetida nos presépios. Imagens religiosas, como essa, ocupavam grande parte da produção artística europeia do século XVII; na França, é claro, o tema religioso tem viés católico. A prevalência desses temas tem relação direta com os acontecimentos que vinham sacudido a cristandade. No ápice do Renascimento italiano, no século XVI, a arte buscava a expressão da forma física perfeita por meio de estudos anatômicos, como podemos perceber na obra de Michelangelo. No século seguinte, a arte enveredou por novos e diferentes caminhos, e a obsessão com a forma perfeita deixou de estar na ordem do dia. A Reforma Protestante, a Contra Reforma Católica e as guerras religiosas delas decorrentes colocaram a fé no centro das atenções. Isso não sginifica, contudo, que todas as obras seguissem um mesmo padrão. Existiam diferentes correntes místicas e religiosas, e tais variações podiam influenciar a forma como cada artista via, sentia e experimentava sua própria fé.
No início do século XVII, a Espanha ocupou um lugar de destaque na arte europeia por diferentes motivos: seu poder político-econômico, sua corte poderosa, sua religiosidade ferrenha e, claro, pelo talento de artistas tão únicos como El Greco e Velásquez. Contudo, na metade daquele século, a França, já sob o governo de Luís XIV, se tornaria um centro irradiador da arte. Georges de La Tour e os irmãos Nain floresceram na época de Luís XIII, quando a arte francesa ainda apresentava características locais e peculiares ? mais tarde, haveria uma aproximação com a arte italiana no período do classicismo, com nomes como Nicolas Poussin e Claude Lorrain. Tanto La Tour quanto os Nain se inscrevem no grupo descrito pelo historiador Pierre Francastel como “pintores da realidade” ? embora esse realismo nem sempre coincidisse com o Real, muitas vezes pendendo mais para a idealização do que a observação direta do mundo. E suas formas de idealização nem sempre são as mesmas: como veremos, o grupo dos “pintores da realidade” inclui produções bastante díspares.
A tela dos irmãos Nain, de 1638, apresenta a Sagrada Família e o menino na manjedoura de acordo com um estilo clássico, com figuras bem moduladas, porém carregadas de um ar singelo. Destaca-se a presença de dois anjos ao lado do menino. Na frente, temos um pastor, caracterizado por seu cajado e pelo boi que o acompanha; ambos adoram a criança. Esse personagem utiliza trajes rústicos e se parece mais com um pastor da Antiguidade do que com um campônio francês. Ao lado do animal, uma pastora em trajes mais contemporâneos se debruça para olhar Jesus; ao seu lado, há um menino que parece distraído, olhando algo fora da cena central. Temos ainda a presença do burrinho, personagem característico da narrativa bíblica.
Outro fator que chama muito a atenção é o entorno da cena. O estábulo da narrativa bíblica foi transformado em uma espécie de construção romana com colunas e uma arcada. Do lado de fora, vemos as ruínas de um templo com colunas gregas e, ao fundo, uma paisagem campestre. O quadro nos dá a impressão de que a cena aconteceu ao ar livre. A preocupação com o céu e a paisagem de fundo é um traço característico da arte do século XVII, época em que a representação paisagística se tornou um gênero específico de pintura. Embora os irmãos Nain utilizassem a mesma assinatura em suas telas, o artista mais destacado entre eles era Louis ? cuja principal preocupação era, precisamente, a criação de paisagens de fundo, nem sempre baseadas em paisagens reais. Embora procurasse emular a luz natural, seus fundos eram povoados com imagens idealizadas de camponeses. De toda forma, aos olhos de hoje, a cena parece bastante convencional: de fato, ela foi pensada para estimular a devoção de pessoas simples. Das diferentes matizes religiosas encontradas na França do século XVII, os Le Nain seguiam a mais popular; era entre o público mais modesto que eles encontravam seus clientes.
A terra de Georges La Tour é completamente diferente. A cena se desenrola em um lugar fechado e escuro, iluminado unicamente pela chama de uma vela. A atenção está centrada nos personagens, que apresentam rostos e expressões faciais peculiares. A cena é composta através de um intrincado jogo de luz e sombras, utilizando a famosa técnica do claro-escuro. A criança aparece enfaixada à maneira do século XVII, e as vestes dos pastores seguem um estilo da época.
Georges de La Tour foi um pintor que alcançou notoriedade ainda em vida, chegando mesmo a ser pintor do rei. Sua obra demonstra afinidade com a mística religiosa na vertente franciscana. Proveniente da cidade de Lorena, no interior da França, ele não realizou viagens de estudos para outros centros europeus ? atitude que se tornaria comum na segunda metade do século XVII. Sua obra é recorrentemente comparada com a do italiano Caravaggio. Aliás, existiu uma corrente internacional conhecida como “caravaggismo”, que se difundiu por toda Europa durante a primeira metade do século XVII. Os pintores que seguiam essa tendência, como La Tour, usavam procedimentos técnicos de pintura marcados pelo uso de luzes contrastantes e do claro-escuro. Além disso, manifestavam uma atitude peculiar frente aos temas sagrados.
A produção artística de La Tour é marcada pela questão do “luminismo”: as cenas, preferencialmente noturnas, parecem iluminadas unicamente pela luz da uma vela, que normalmente está representada no quadro. As figuras são moduladas por essa luz difusa e algo irreal ? o olhar cuidadoso torna evidente que tais cenas não poderiam ser delineadas pelo clarão exíguo de uma única chama. No quadro “Adoração dos Pastores”, cabe a José segurar a dita vela, mas podemos notar uma luz teatral que ilumina o menino na manjedoura.
Ao comparar as duas telas homônimas, produzidas no mesmo local e na mesma época, torna-se claro que não podemos impor um rótulo absoluto à arte de um período sem cair no artificialismo. Embebidos da mística religiosa de seu tempo, cada um dos artistas apresentou, através de suas técnicas favoritas, a mesma cena sob ângulos diversos. Assim como, atualmente, cada um de nós pode vivenciar sua fé ou sua descrença de maneira muito particular, esses artistas, mesmo inseridos nominalmente num mesmo grupo, expressavam suas inclinações espirituais por diferentes caminhos de luz e sombra.