Leonardo di ser Piero da Vinci, cinco séculos depois

Por Eduardo Kickhöfel, um ensaio sobre o homem universal do Renascimento: Leonardo di ser Piero da Vinci, cinco século depois.

por Eduardo Henrique Peiruque Kickhöfel

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Leonardo da Vinci. Estudo de um velho homem. Sanguínea sobre papel, c. 1490. Biblioteca Reale di Torino.A data desse desenho sugere que Leonardo o fez quanto tinha aproximadamente quarenta anos, fato que inviabiliza considerá-lo um autorretrato. Entretanto, e, parte devido ao suposto retrato de Leonardo que Rafael Sanzio pintou na Escola de Atenas, eis a imagem de Leonardo.

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Introdução

Pintor da Santa Ceia e da Mona Lisa, possivelmente as duas pinturas mais célebres do mundo ocidental, considera-se Leonardo da Vinci como homem universal do Renascimento[1], gênio que concebeu artes e ciências até então inauditas e antecipou o mundo moderno. Desde meados do século passado, essa descrição de Leonardo pouco circula entre estudiosos. Entretanto, muitos deles ainda aceitam concepções comuns, como considerar Leonardo como artista e cientista, e descrever seus estudos considerando disciplinas contemporâneas como geologia, hidrodinâmica e botânica, entre outras. Caso se queira entender Leonardo em seu próprio contexto, tanto quanto possível hoje, que se esqueça noções e disciplinas aprendidas e repetidas tacitamente.

Considerando o período e o personagem em questão, neste breve texto examina-se relações entre artes e ciências. Tem-se por foco os estudos de anatomia de Leonardo, pois talvez expressem de modo claro relações entre essas duas formas de conhecimento e explicam por que motivos Leonardo permanece, paradoxalmente, como um caso exemplar e único de sua época.

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Obstáculos

Na época de Leonardo da Vinci, acreditava-se que o mundo havia sido criado ex nihilo por Deus, também chamado de summo artifice, e que o homem era sua obra máxima que podia exercer sua vontade sobre as demais criaturas. Acreditava-se que Adão e Eva haviam efetivamente existido, pecado e expulsos do Paraíso, e que Jesus Cristo havia sido crucificado na província romana da Judeia para redimir os homens de seus pecados e mostrar-lhes o caminho da salvação.

Papas corruptos e príncipes tiranos guerreavam entre si e celebravam seus feitos terrenos e suas próprias famílias. Saqueavam antigas ruínas romanas e encomendavam obras de poetas, pintores e escultores de grande reputação e fama, buscando para si a grandeza da Roma de outrora. Letrados de fina erudição e grande retórica voltavam-se à vida cívica. Elaboravam discursos a respeito da dignidade e da excelência do homem, e se ocupavam da imortalidade da alma, em uma Europa miserável devastada por guerras e pestes que se expandia de modos inéditos sobre a Terra.

Reputados professores universitários se rendiam à autoridade de Aristóteles submetido às Sagradas Escrituras. Diziam que no centro do mundo estava a Terra imóvel, região mais baixa da criação formada por quatro elementos e repleta de geração e corrupção, de homens monstruosos e criaturas fantásticas, e concebiam uma natureza repleta de forças ocultas, espíritos e demônios. Diziam também que acima da Terra existiam sete planetas feitos de um quinto elemento incorruptível, Lua, Mercúrio, Vênus, Sol, Marte, Júpiter e Saturno, cada qual em sua esfera. Diziam ainda que após a oitava esfera das estrelas fixas estava o empíreo, no qual habitavam anjos em alegria perfeita, imóvel e infinita, região destinada aos eleitos. Astrólogos e magos também tinham elevada reputação, e homens como Girolamo Savonarola pregavam penitências e o iminente fim dos tempos, a ressurreição dos corpos e penas eternas aos pecadores.

Entretanto, novos autores, novas terras e coisas jamais vistas nos céus suscitavam novas artes e novas ciências, e reformas e condenações determinariam os séculos a seguir. Aquele mundo mais antigo do que moderno desapareceria para não mais voltar em poucas gerações, embora ecos daquele mundo ainda existam no mundo contemporâneo.

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Artes e ciências

Entender Leonardo nessa vasta e distante paisagem, aqui apenas vagamente esboçada, requer elaborar um mapa apropriado. Para obter isso, segue-se autores da época que enfatizaram definições de termos básicos, como Benedetto Varchi. No começo da segunda das Due lezzioni (Duas lições) publicadas em 1549, ele escreve: “Em qualquer disputa, em primeiro lugar deve-se declarar os termos principais para evitar o equívoco e troca de nomes.”[2]

Historiador e poeta, Varchi soube resumir diversas concepções aristotélicas comuns em sua época. Além disso, sua proximidade com Michelangelo Buonarroti, maior artífice de sua época, e Giorgio Vasari, pintor, arquiteto e autor de um célebre livro a respeito de vidas de artífices até sua época, Le vite de’ piv eccellenti architetti, pittori, et scvltori italiani (As vidas dos mais excelentes arquitetos, pintores e escultores italianos) publicado em 1550 e revisado em 1568 como Le vite de’ piv eccellenti pittori, scultori, e architettori (As vidas dos mais excelentes pintores, escultores e arquitetos) faz Varchi ponto de referência adequado para pensar questões conceituais para entender Leonardo.

No texto citado acima, Varchi declara os sentidos dos termos principais “arte” e “ciência”. Seguindo Aristóteles, ele diz que arte era “um hábito de fazer com razão verdadeira daquelas coisas que não são necessárias, cujos princípios não estão nas coisas, mas naquele que as faz”[3], ou seja, conhecimento prático buscado por seus resultados que produzia curas e operações mercantis, pinturas, esculturas e máquinas de guerra, por exemplo.[4] Varchi também diz que ciência era “a cognição das coisas universais e necessárias, e consequentemente eternas, tida mediante a demonstração”[5], ou seja, conhecimento teórico buscado por si só, como por exemplo conhecimentos de princípios e causas a respeito dos céus e de animais.[6] Artes e ciências faziam parte da filosofia em sentido amplo, ou seja, “a cognição de todas as coisas que existem, humanas ou divinas, tem por argumento e matéria o ente, ou seja, tudo aquilo que existe”, como diz Varchi no breve texto Divisione della filosofia (Divisão da filosofia).[7] Artes e ciências estavam dispostas em uma hierarquia clara, como ele diz nas já citadas Due lezzioni (Duas liçoes): “Todas as ciências, existindo na razão superior [do intelecto] e tendo mais nobre fim, isto é, contemplar, são sem alguma dúvida mais nobres que todas as artes, as quais estão na razão inferior e tem menos nobre fim, isto é, operar.”[8] Tal qual entre autores antigos, artes e ciências eram conhecimentos distintos entre si por seus objetos, graus de certeza e fins; quando mais abstrato, mais preciso e menos útil, melhor era tal conhecimento.

Leitores contemporâneos, acostumados a pensar pintores e escultores como Leonardo e Michelangelo quase como semideuses imortais, talvez fiquem surpresos ao saber que no Renascimento artes não tinham grande excelência e dignidade, e que pintores e escultores faziam suas vidas como artífices, ou seja, homens que produziam obras seguindo contratos feitos por papas, nobres e mercantes que tinham funções religiosas e cívicas.

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Tradições florentinas

No começo do século XIV, Dante Alighieri ainda pensava que a vita activa era inferior à vita contemplativa, como ele escreveu no Convivio (Convívio): “Esta vida é a mais divina e, se a coisa que é mais divina é mais semelhante a Deus, manifesto é que esta vida é a mais amada por Deus.”[9]. Entretanto, havia um processo de mudança em curso. Poucas décadas após, Francesco Petrarca e outros letrados começaram a louvar a vita activa e certas artes para fins da vida civil, tendo por modelo textos de Marco Túlio Cícero. Esses homens buscavam textos antigos e se chamavam “umanisti”, dedicando-se a um ciclo de estudos chamado Studia humanitatis, que compreendia gramática, retórica, poesia, história e a parte da filosofia chamada ética ou moral.

Por volta de 1430, o poeta e cidadão florentino Matteo Palmieri escreveu o Libro della vita civile (Livro da vida civil), livro que visava educar cidadãos para bem viver em uma “optima republica”. Em uma crítica velada a estudos escolásticos que remonta a Petrarca, Palmieri diz: “Não creio que ler nos faça viver melhor nem mais virtuosos, pois o fim de cada bem não é aquele de entender, mas aquele de operar.”[10] Palmieri não invalidava a vita contemplativa, mas colocava importância na vida do homem neste mundo. Por volta de 1450, Giannozzo Manetti, em seu livro De dignitate et excellentia hominis (De dignidade e excelência do homem), louva certas artes: “São nossas, isto é, humanas, porque se vê claramente terem sido feitas por homens: todas as casas, todas as fortificações, todas as cidades, enfim, todas as construções da circunferência da Terra, que são tamanhas e de tal forma admiráveis, que com justiça se deve afirmar, por sua grande excelência, que são obras antes de anjos que de homens. Nossas são as pinturas, nossas as esculturas; nossas são as artes, nossos os conhecimentos, nossas […] as sabedorias; nossas são, enfim, para que não nos demoremos em falar de uma a uma, uma vez que, na verdade, são infinitas, todas as descobertas, todas as diversidades de línguas e de escritas.”[11] Elogios à vita activa e ao homem também viriam de filósofos como Marsilio Ficino e Giovanni Pico della Mirandola, contemporâneos de Leonardo.

Em um âmbito de artífices, de fato, o humanista e arquiteto Leon Battista Alberti louva de modo inédito pintores, arquitetos e escultores em seus livros De pictura (De pintura), escrito em 1435, De re aedificatoria (De edificação) terminado em 1452, e De statua (De estátua), escrito por volta de 1460. Alberti traduziu para o italiano o livro a respeito da arte da pintura em 1436, dedicando-o a Filippo Brunelleschi, arquiteto que inventara a perspectiva para uso de artífices e que então terminava de erguer a cúpula de Santa Maria del Fiore, catedral de Florença. No primeiro livro, ele descreve noções básicas geometria para artífices, e sua breve menção à anatomia sugere que artífices estudavam anatomia de corpos humanos para desenhar e pintar: “Primeiro se desenha o nu, depois o circundamos de panos, assim pintando o nu primeiro coloquemos seus ossos e seus músculos, os quais depois cobriremos com suas carnes de modo que não seja difícil entender onde está cada músculo.”[12] Os dois livros seguintes tratam de arte e artífice, e Alberti diz como ele pensava a formação de um artífice: “Agrada-me que o pintor seja douto, tanto quanto possa, em todas as artes liberais, mas primeiro desejo que ele saiba geometria.”[13] Alberti alude às artes liberais, ou seja, conjunto de disciplinas do Trivium (gramática, lógica e retórica) e do Quadrivium (aritmética, geometria, música e astronomia) que eram ensinadas em universidades como estudos preparatórios às faculdades superiores como direito e medicina. Vindas de escolas antigas, essas artes haviam sido incorporadas a divisões da filosofia e eram diferenciadas de artes mecânicas, estas naquela época ainda em grande parte desprovidas de conhecimentos elaborados. A distinção entre arte e ciência feita acima em linhas gerais corresponde à distinção entre artes mecânicas e artes liberais. Nesse sentido, Alberti visa instruir uma arte mecânica com artes liberais. Dito de outro modo, Alberti diz que artífices utilizem ciências para sistematizar suas artes em vista de operar a partir de princípios e causas, para então dizer quantas ciências existiam em suas artes e obras. Assim, certas artes teriam nova excelência e dignidade, e artífices teriam mais reputação e fama.

Entretanto, por mais louvor que tivessem, artes ainda eram conhecimentos práticos. No primeiro capítulo de seu livro a respeito da arte da pintura, Alberti afirma que como pintor seu objetivo é escrever sobre “as coisas colocadas ao ver”, mas não sobre as coisas “separada toda matéria” que matemáticos mediam. Em outras palavras, Alberti aceitava a visão platônica tradicional caracterizada pela divisão entre o sensível (horaton) e o inteligível (noêton) na base da filosofia ocidental e da distinção entre arte e ciência.[14] Nesse sentido, artífices tinham interesses limitados a suas atividades práticas. Lorenzo Ghiberti, autor das duas principais portas do Batistério de Florença, no fim de sua vida escreveu um importante texto chamado Commentarii (Comentários), no qual ele descreve artes antigas e artes de sua própria época, que termina com sua autobiografia, a primeira conhecida de um artífice, e compila textos de óptica e anatomia. Como Alberti, Ghiberti, também enfatiza disciplinas liberais que artífices tinham de saber, mas também restringe o escopo de seus estudos. Em seu texto, que ele escreveu por volta de 1450, após elencar uma série de disciplinas ele escreve: “Ainda necessita ter conhecido a disciplina da medicina e ter visto anatomias, de modo que o escultor saiba quantos ossos existem no corpo humano quando quer compor a estátua viril, e que saiba os músculos que existem no corpo do homem e assim todos os nervos e ligamentos que existem.”[15] Então, ele conclui: “Não necessita ser médico como Hipócrates, Avicena e Galeno, mas bem necessita ter visto as obras deles, ter visto anatomias, ter por número todos os nervos e todos os ligamentos que existem na estátua viril; das outras coisas da medicina, não necessitamos tanto.”[16] Artífices produziam obras como pinturas e esculturas, mas não escreviam tratados de medicina e de anatomia, por exemplo. Não obstante inúmeros elogios à vita activa, eles sabiam que ciências tinham o mais nobre fim, ou seja, contemplar, e que suas artes tinham o fim menos nobre, ou seja, operar. Leonardo teria de enfrentar sua condição de artífice e “homo senza lettere”, como ele se descreveria poucos anos após.[17]

No fim do século XV, pintores e escultores pintavam mais e mais figuras nuas. Antonio del Pollaiuolo, como diz Vasari, fez dissecações: “Ele entendeu dos nus mais modernamente do que os outros mestres antes dele; e anatomizou muitos homens para ver a anatomia deles, e foi o primeiro a mostrar o modo de desenhar os músculos que tinham forma e ordem nas figuras.”[18] Eis opinião plausível, embora não documentada diretamente. Entretanto, pouco após Michelangelo Buonarroti seguiria esse rumo, como conta Vasari: “Fez para a igreja de Santo Espírito da cidade de Florença um crucifixo de madeira, que se colocou e está acima do semicírculo do altar maior para satisfação do prior, o qual lhe deu moradia; ali, muitas vezes esfolando corpos mortos para estudar coisas de anatomia, começou a dar perfeição ao grande desenho que teve depois.”[19] Eis outra opinião plausível, também não documentada diretamente. De qualquer modo, Michelangelo produziria obras em que figuras humanas nuas teriam papel central e influenciariam miríades de artífices das gerações seguintes.

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Leonardo da Vinci, artes e ciências

Leonardo levou adiante essa tradição florentina que aproximava artes e ciências. Nascido em 1452 em Vinci, pequena cidade perto de Florença, por volta de 1469 Leonardo já fazia parte da oficina florentina do escultor, ourives e pintor Andrea del Verrocchio. Nessa oficina, Leonardo teve contato com conhecimentos de geometria e anatomia, entre outros, que ele conhecia como seus contemporâneos artífices. Em Florença, ele realizou poucas pinturas, entre as quais a Anunciação e o Retrato de Ginevra dei’ Benci. Duas obras não entregues, como a incompleta Adoração dos Magos, possivelmente mancharam sua incipiente reputação como pintor.

Leonardo se mudou para Milão por volta de 1482, possivelmente a mando de Lorenzo dei Medici, chamado il Magnifico. Nessa cidade, ele começou a estudar matérias que artífices não estudavam, como por exemplo latim, que supriria sua falta de educação formal e daria a ele acesso a textos antigos que na época eram cada vez mais estudados. Seus estudos de geometria e óptica ultrapassavam conhecimentos práticos que artífices usavam para realizar obras, e deus estudos de anatomia estão entre os mais significativos desse período. Entre 1485-87, Leonardo fez experimentos com uma rã, dissecando-a e pinçando sua medula: “A rã subitamente morre quando sua medula é perfurada. E primeiro vivia sem cabeça, sem coração, sem entranhas ou intestinos ou pele. E aqui, então, parece que está o fundamento do movimento e vida.[20] Poucos anos após, em 1489, ele planejou um livro intitulado De figura umana (Da figura humana), sugerindo planos ambiciosos para se aventurar em matérias de pouca utilidade para artífices: “Esta obra deve começar com a concepção do homem e descrever a natureza do útero, como a criança habita nesse útero, até que estágio ela nele permanece, a maneira de seu vivificar-se e alimentar-se, seu crescimento, que intervalo existe de um estágio de crescimento a outro, que coisa a impele para fora do corpo da mãe, e por qual razão ela sai para fora do ventre de sua mãe antes do devido tempo.”[21] Entre diversas outras notas, Leonardo faz apenas uma breve menção a matérias úteis a artífices: “Depois, descrevas como ele é composto de vasos, nervos, músculos e ossos.[22] Nessa época, Leonardo já não era mais um artífice, pois ele queria conhecer formas e usos do corpo humano como filósofos naturais e médicos conheciam, incluindo causas de movimentos. Também não era um filósofo natural ou médico, pois não planejava um livro como livros de anatomia de sua época, mas sim um livro que incluiria demonstrações através de desenhos que teria por fim a arte da pintura. Leonardo aproximava artes e ciências de modos inéditos. Em meio a esses estudos, ele desenhou máquinas de guerra e fez a primeira sistematização das mecânicas pela mecânica, ou seja, planejou máquinas utilizando conhecimentos de física e matemática. Além disso, como artífice da corte de Ludovico Maria Sforza ele planejou canais e festas, tocava viola da braccio e improvisava poesias em festas, produziu pinturas, especialmente a primeira versão da Virgem das Rochas, o Retrato de Cecilia Gallerani e a Santa Ceia, e deixou inacabada uma imensa escultura equestre em homenagem a Francesco Sforza, que seria destruída após a queda da cidade para soldados franceses em 1499.

Após alguns meses entre Mântua e Veneza, Leonardo voltou para Florença e iniciou pinturas diversas, como a batalha jamais terminada na Sala del Consiglio (hoje Salone dei Cinquecento) do Palazzo della Signoria (hoje Palazzo Vecchio) e a Mona Lisa. Leonardo também trabalhou como engenheiro militar para Cesare Borgia, condottiero filho do papa Alexandre VI, viajando através da Toscana e outras regiões da Itália, fez estudos de geometria e planejou um canal jamais construído que desviaria o curso do Rio Arno. Dos movimentos da água e da Terra, fez inúmeros estudos que hoje estão no Codice Leicester. No inverno de 1507-08, Leonardo voltou a estudar anatomia, iniciando seu período mais importante como anatomista. Ainda em Florença, ele dissecou um homem centenário, como ele próprio descreveu: “E este velho, poucas horas antes da sua morte, disse-me passar dos cem anos, e que não sentia outra falta em si além de fraqueza. E, assim, estando sentado sobre um leito do hospital de Santa Maria Nova de Florença, sem nenhum outro movimento ou sinal de algum acidente, passou desta vida. E eu fiz [a] anatomia para ver a causa de tão doce morte, na qual eu encontrei vir menos por falta de sangue e artéria que nutria o coração e os outros membros inferiores, os quais encontrei muitos áridos, enfraquecidos e secos. A anatomia eu descrevi muito diligentemente e com grande facilidade, por ser [o velho] privado de gordura e de humor que muito impedem o conhecimento das partes. A outra anatomia foi de uma criança de dois anos, na qual eu encontrei todas as coisas contrárias àquelas do velho.”[23]

Após compilar uma série de fólios, Leonardo continuou seus estudos em Milão por volta de 1510. Em um fólio de estudos repleto de textos e desenhos, Leonardo descreveu seus interesses e seus esforços como anatomista: “E se tu tiveres amor por tais coisas, talvez sejas impedido pelo estômago, e se este não te impedir, tu serás talvez impedido pelo pavor de estar durante à noite em companhia de tais mortos cortados e esfolados, horríveis de se ver. E se isto não te impedir, talvez faltará em ti o bom desenho, o qual pertence a tal representação, e se tu tiveres o desenho, este não será acompanhado com a perspectiva, e se esse assim for, faltará em ti a ordem das demonstrações geométricas e a ordem dos cálculos das forças e virtudes dos músculos. E talvez faltará em ti a paciência, de modo que tu não serás diligente. Se todas estas coisas estão em mim ou não, os cento e vinte livros por mim compostos darão sentença, sim ou não, nos quais eu não fui impedido pela avareza ou pela negligência, mas apenas pelo tempo. Adeus.”[24] Os “cento venti libri” possivelmente não eram livros, mas sim capítulos, e pode-se supor que Leonardo escrevia a respeito de matérias que estudava e de corpos que dissecava para terminar o livro que planejara vinte anos antes.

Leonardo lera o tratado Anothomia (Anatomia), que o médico de Bolonha Mondino de’ Liuzzi escrevera por volta de 1316 utilizando textos antigos e medievais, e suas próprias dissecações. Ele conhecia esse texto a partir da edição italiana do Fasciculus medicinae (Fascículo de medicina) de Johannes de Ketham, publicada em 1493. Além disso, no fólio em questão Leonardo menciona traduzir o livro De giovamenti (De utilidades) do persa Ibn Sina, conhecido como Avicena, e também faz referência a dois médicos italianos contemporâneos, Gabriele Zerbi, médico e professor em Bolonha e Pádua, autor do Liber anatomiae corporis humani et singulorum membrorum illius (Livro de anatomia do corpo humano e de seus membros simples), publicado em 1502, e Angelo Benedetto, tio de Alessandro Benedetti, médico considerado fundador de estudos de anatomia em Pádua de quem Leonardo tinha o Anatomicae, sive de historia corporis humani libri quinque (Anatomia, ou história do corpo humano em cinco livros), publicado pela primeira vez em 1493. Entretanto, diferentemente de médicos anatomistas que ensinavam em universidades e consideravam verdadeiras doutrinas vindas de autoridades antigas medievais e pouco dissecavam, ou apenas dissecavam para confirmar essas doutrinas, Leonardo vinha de uma formação prática em uma oficina. Ele escreveu nesse fólio que procurava um crânio, listando seus instrumentos de dissecação parcialmente esboçados no verso desse fólio de estudos, e que para ter “verdadeiro e pleno conhecimento” da anatomia do homem dissecara “mais de dez corpos humanos, destruindo todos outros membros e removendo com minúsculas partículas toda carne que em torno desses vasos existia, sem ensanguentar”, e que era preciso “ver tais desenhos”.[25] Ele desenhava “acompanhado com a perspectiva”, e queria que “o livro da ciência das máquinas vai antes do livro das utilidades”[26] do corpo humano. Leonardo utilizava seus conhecimentos de livros de anatomia e dissecava, e fazia demonstrações em parte sob forma de desenhos utilizando seus conhecimentos de ciência perspectiva e de ciência mecânica. Leonardo aproximava de modos inéditos ciências e artes. Seus estudos incluíam os “membros nutritivos” (estômago, fígado e demais órgãos abdominais), por exemplo, e seus estudos dos “membros espirituais” (coração e pulmões) mostram demonstrações geométricas de válvulas cardíacas, demonstrações que ele também usou para descrever o corpo humano como um conjunto de alavancas e moventes. Entretanto, Leonardo vivia em uma época em que noções teológicas e teleológicas faziam parte de estudos de filosofia natural, dos quais anatomia fazia parte. Em um fólio de estudos do coração, ele escreveu: “Instrumento maravilhoso inventado pelo mestre supremo.”[27] O “mestre supremo” era Deus, que operava através da natureza que, por sua vez, operava “no mais breve tempo e modo que é possível”.[28] Ele escreveu inclusive a respeito da “sagacidade da natureza”, imaginando formas naturais tendo intenções e fins tal qual filósofos naturais de sua época.[29]

Nessa época, Leonardo considerou publicar seus estudos de anatomia. Em um fólio praticamente pronto que mostra estudos da coluna vertebral, ele escreveu: “Mas por este brevíssimo modo de representar por diversos aspectos dar-se-á pleno e verdadeiro conhecimento, e para a realização de tal benefício que eu dou aos homens, eu ensinarei o modo de estampá-lo com ordem, e eu peço a vós, ó sucessores, que a avareza não forceis vós a fazer estampas em[30] Após anos entre Milão e Roma, Leonardo viveu os anos finais de sua vida em um castelo perto de Amboise como hóspede de Francisco I. Além de projetos e para o rei da França, documentos sugerem que Leonardo tentou organizar seus manuscritos para alguma eventual publicação. No dia 10 de outubro de 1517, Antonio de Beatis, secretário do Cardeal Luis de Aragon, visitou Leonardo e escreveu um relato: “Este gentil-homem compôs [estudos] de anatomia tanto particularmente para a demonstração da pintura, seja de membros como de músculos, nervos, veias, articulações, de intestinos e daquilo que se pode pensar tanto de corpos de homens como de mulheres, de modo que não foi feito ainda por outra pessoa. Vimos isso com nossos próprios olhos, e ele nos disse ter feito anatomia de mais de trinta corpos entre masculinos e femininos de qualquer idade. Compôs também a respeito da natureza da água, de diversas máquinas e de outras coisas, segundo ele disse, em infinitos volumes, e todos em língua vulgar, os quais, caso venham à luz, serão proveitosos e muito deleitáveis.[31] Leonardo morreria menos de dois anos depois, no dia 2 de maio de 1519, deixando milhares de desenhos e páginas manuscritas que teriam fortuna conturbada nos séculos posteriores, hoje distribuídas em inúmeros museus e coleções particulares.

Curiosamente, Leonardo não utilizou suas descrições anatômicas em suas pinturas, ao menos como Michelangelo e outros artífices utilizavam. Estudando anatomia, entre outras ciências de sua época, Leonardo tentou fazer da arte da pintura uma ciência em sentido estrito, ou ao menos uma arte que tinha tanta excelência e dignidade quanto uma ciência. Em fólios iniciais, ele já menciona conhecer causas de movimentos, e em um fólio tardio de estudos da mão ele desenhou dois rostos dissecados e escreveu: “h é o músculo da ira; o é o músculo da dor.”[32] O sorriso da Mona Lisa, aliás, implicava conhecimentos de anatomia, entre tantos outros. Anos após, de modo mais preciso, ele escreveu a respeito de conhecer cada parte a ponto de desenhar sem ver: “Quando os dois músculos a r puxam a perna para frente, os dois músculos b c relaxam e d alonga-se; e descreverás esta regra na ação de todos os músculos, e poderás fazer sem ver o [modelo] vivo quase todos os atos sem erro.”[33] Diversos textos do Libro di pittura, compilação de seus manuscritos feita por seu discípulo Francesco Melzi por volta de 1540, também sugerem essa abordagem. Semelhantemente, cada elemento de suas pinturas teria como base de estudos de filosofia natural, como movimentos de águas e seus efeitos sobre rochas, como se vê nas paisagem das pinturas Mona Lisa e Virgem e Santa Ana com o Menino.

Em termos práticos, os planos de Leonardo eram impossíveis. Além disso, Leonardo queria se fazer um “altore”, mas não soube elaborar sua “scienza della pittura”. De fato, aquela civiltà ainda distinguia artes e ciências e, se era possível aproximar artes e ciências, artes ainda eram artes e, voltando a Varchi, ciências tinham mais nobre fim, e eram mais nobres que artes. Entre contemplar e operar havia ainda um grande hiato. CCerto, Giorgio Vasari reconheceu a influência decisiva de Leonardo na arte da pintura na passagem do século XV para o século XVI.[34] Entretanto, isso ocorreu de modo independente da “scienza della pittura”. Se Leonardo deixou diversos discípulos pintores, especialmente em Milão, e influenciou inúmeros outros, não existem manuscritos de artífices feitos no século XVI semelhantes aos manuscritos de Leonardo. O caso permanece único, e não por acaso, Paolo Giovio escreveu por volta de 1523-27 que Leonardo “Não deixou um único discípulo célebre”.[35]

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Mona Lisa. Óleo sobre painel, c. 1503-05. Musée du Louvre. A pintura está muito escurecida, e restaurá-la talvez seja impossível dado sua condição de ícone. A imagem acima mostra a pintura com suas cores retocadas conforme a cópia do retrato que hoje pertence ao Museo del Prado, que talvez sugira a Mona Lisa em seu estado original.

There is one more thing…

Como entender Leonardo naquela distante paisagem? Artista implica pensar pessoas que expressam suas emoções e sentimentos, como Francisco de Goya y Lucientes, Vincent Van Gogh e Pablo Picasso, por exemplo. Artista implica entender arte como obra de arte, conceito surgido em meados do século XVIII que descreve obras apreciadas principalmente por suas características formais, não por suas funções cívicas e religiosas. Se certos documentos sugerem que artistas e obras de arte têm sua origem no Renascimento, Leonardo não faz parte desse conjunto nem fez obras de arte. Cientista, por sua vez, sugere um tipo profissional formado no século XIX que pesquisa em universidades e instituições semelhante, como Ludwig Boltzmann, Albert Einstein e Francis Crick, entre outros. Cientista implica noções de ciência experimental e matemática elaboradas por Galileu Galilei e outros filósofos naturais e matemáticos no século XVII, consolidada nos séculos seguintes, agora não mais contemplativas, mas principalmente operativas. Documentos sugerem que ciências contemporâneas têm origem na época de Leonardo, mas ele não faz parte desse conjunto e nem produziu ciência como hoje entendida. Nomear Leonardo como artífice, entretanto, implica outro conceito e outro conjunto, no qual estão pessoas que cardavam lãs, fabricavam sapatos e utensílios de metal, médicos, pintores e escultores. Nomear Leonardo filósofo natural talvez seja excessivo, pois ele não elaborou conceitos nem publicou seus manuscritos. Em suma, Leonardo fez sua vida como artífice que tinha interesse em matérias de filosofia natural e matemática. Não era universal, pois não sabia grego e latim, vale dizer, e não tinha interesses em questões metafísicas e éticas. Também não era gênio, conceito da época de Immanuel Kant.

Entretanto, suas obras fornecem exemplos notáveis e únicos de como ao longo do Renascimento conhecimentos teóricos e práticos interagiam de diversos modos, anunciando modos de pensar e agir que marcariam os séculos seguintes. Para quem já viu suas obras, de fato, resta certo espanto por serem tão próximas e ao mesmo tempo tão distantes. Talvez ele próprio indique esse espanto, em uma passagem de ecos platônicos que está no Codice Arundel: “E impelido pela minha ávida vontade, imaginando ver a grande abundância das várias e estranhas formas criadas pela artificiosa natureza, enredado pelos sombrios rochedos cheguei à entrada de uma grande caverna, diante da qual permaneci tão estupefato quanto ignorante de tais coisas, com as costas curvadas em arco e a mão cansada e firme sobre o joelho, e procurei, com a mão direita, fazer sombra aos olhos comprimidos, curvando-me cá e lá, para ver se conseguia discernir alguma coisa lá dentro; e isso me era impedido pela grande escuridão que lá dentro existia. Assim permanecendo, subitamente brotaram em mim duas coisas, medo e desejo: medo da ameaçadora e escura caverna, desejo de ver se lá dentro existia algo miraculoso.”[36]

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Notas:

[1] A palavra “Renascimento” aponta para um conceito histórico elaborado por Jules Michelet no livro Histoire de France, publicado em 1855. Usa-se “Renascimento” neste artigo por ser palavra operativa como introdução. Das alternativas de época, existem as palavras “renovatio”, “restitutio”, “regeneratio”, “reparatio”, “revocatio” e “rinascita”, as quais sugerem que certos letrados sabiam que estavam em meio a mudanças importantes.

[2] Varchi (1549, p. 58): “In ciascuna disputa si debbe la prima cosa (per fuggire l’equiuocazione, & scambiamento de i nomi) dichiarare i termini principali.” As transcrições de fontes de época editadas no século XVI foram feitas pelo autor deste texto; as demais transcrições vêm das edições mencionadas. As traduções também foram feitas pelo autor, excetuando a tradução de Varchi que está na nota 6.

[3] Varchi (1549, p. 61): “L’arte è uno habito fattiuo con vera ragione di quelle cose, che non sono necessarie, il principio delle quali non è nelle cose, che si fanno, ma in colui, che le fa.” Varchi traduz a definição aristotélica que está na Ética nicomaqueia (VI, 1140a).

[4] A palavra “arte” também designava ofícios ou profissões que usavam conhecimentos práticos. No Il libro dell’arte (O livro da arte), que o pintor toscano Cennino Cennini, que escreveu o por volta de 1400, esses dois sentidos de arte estão colocados de modo claro. No primeiro capítulo, Cennini elogia Giotto di Bondone, dizendo que ele “ebbe l’arte più compiuta che avessi mai più nessuno” (“teve arte mais completa que tivesse qualquer um”), ou seja, conhecimentos práticos para pintar, e ele se descreve como “picholo membro essercitante nell’arte di dipintoria” (“pequeno membro em exercício da arte da pintura”), ou seja, do ofício ou profissão da pintura. Cf. Cennini (2003, p. 62-63). Adiciona-se que, por metonímia, a palavra “arte” também identificava organizações que agrupavam homens que tinham e exerciam artes, como por exemplo a Arte della Lana e a Arte dei Medici e Speziali de Florença.

[5] Varchi (1549, p. 59): “Scienza […] non è altro, che la cognizione delle cose vniversali, & necessarie, & conseguentem?te eterne, hauuta mediante la dimostrazione.” Varchi também traduz a definição aristotélica que está na Ética nicomaqueia (VI, 1139b).

[6] Essas definições de arte e ciência estão em uma discussão a respeito dos cinco hábitos da alma humana, divididos em hábitos contemplativos (intelecto, sabedoria e ciência) e práticos (prudência e arte) tal qual em Aristóteles, mas servem para caracterizar conhecimentos práticos e teóricos em geral, como Varchi sugere no texto Dei prolegomeni o precognizioni (1859, p. 808): “Se la filosofia ha per obbietto tutto l’ente, cio è comprende tutte le cose di tutto l’universo, chiara cosa è che non si può ritrovare cosa alcuna in luogo veruno, la quale non caggia sotto la Filosofia; la quale fu divisa da alcuni in tre parte, da alcuni in due. Ma perchè cotale divisione è stata fatta e dichiarata da noi più volte, ci rimetteremo a quelle divisioni, e diremo solamente, che nel principio di tutte l’opere, si deve dichiarare se la materia che in cotal libro si tratta è scienza o arte.” (“Se a Filosofia tem por objeto todo o ser, isto é, compreende todas as coisas de todo o universo, clara coisa é que não se pode encontrar coisa alguma em lugar algum que não caia sob a Filosofia; a qual foi dividida por alguns em três partes, e por alguns em duas. Mas, porque tal divisão foi feita e declarada por nós mais vezes, nos remeteremos àquelas divisões, e diremos apenas que, no princípio de todas as obras, se deve declarar se a matéria que em tal livro se trata é ciência ou arte.”) Tradução inédita de Iryna Dahmen Carbonero. O par arte e ciência, de fato, está mencionado em dezenas de fontes de época.

[7] Varchi (1859, p. 794): “La Filosofia, la quale è la cognizione di tutte le cose che sono, così umane come divine, ha per soggetto e materia sua l’ente, ciò è tutto quello che è.”

[8] Varchi (1549, p. 60): “Tutte le scienze, essendo nella ragione superiore, & hauendo piu nobil fine, cio è contemplare, sono senza alcuno dubbio piu nobili di tutte l’arti, le quali sono nella ragione inferiore, & hanno men nobil fine, cio è operare.”

[9] Alighieri (1993, II, cap. IV): “Questa vita è più divina, e quanto la cosa è più divina è più di Dio simigliante, manifesto è che questa vita è da Dio più amata.”

[10] Palmieri (1529, p. 10v): “Io non credo che il leggere ui faccia meglio uiuere: ne anche piu uirtuosi, pero che il fine dogni bene è non quello intendere, ma secondo quello operare.”

[11] Manetti (1532, p. 129-130): “Nostra namq[eu], hoc est humana sunt, quoni? ab hominibus effecta, quae cernuntur, omnes domos, omnia oppida, omnes urbes, omnia deniq[eu] orbis terrarum aedificia, que nimir? tanta & talia sunt, ut potius angelorum quàm hominum opera, ob magnam quandam eorum excellentiam, iure censeri debeant. Nostre sunt picturae, nostrae sculpturae, nostrae sunt artes, nostrae scientiae, nostrae […] sapientiae. Nostrae sunt deniq[eu], ne de singulis longius disseramus, cum prope infinita sint, omnes adinuentiones, nostra omnia diuersarum linguarum ac variarum litterarum genera.”

[12] Alberti (1980, cap. 36): “Prima si disegna ignudo, poi il circondiamo di panni, così dipignendo il nudo, prima pogniamo sue ossa e muscoli, quali poi così copriamo con sue carni che non sia difficile intendere ove sotto sia ciascuno moscolo.”

[13] Alberti (1980, cap. 53): “Piacemi il pittore sia dotto, in quanto e’ possa, in tutte l’arti liberali; ma in prima desidero sappi geometria.”

[14] Alberti (1980, cap. 1): “Ma in ogni nostro favellare molto priego si consideri me non come matematico ma come pittore scrivere di queste cose. Quelli col solo ingegno, separata ogni matera, mesurano le forme delle cose. Noi, perché vogliamo le cose essere poste da vedere, per questo useremo quanto dicono più grassa Minerva.” (“Mas nesta nossa discussão peço muito que me considerem não como matemático, mas como pintor a escrever estas coisas. Aqueles apenas com engenho, separada toda matéria, medem as formas das coisas. Nós, porque queremos as coisas colocadas ao ver, usaremos tanto quanto dizem uma Minerva mais gorda.”)

[15] Ghiberti (1998, cap. I, II.8): “Ancora bisognia avere conosciuta la disciplina della medicina et avere veduto notomia, acciò che .llo scultore sappi quante ossa sono nel corpo humano, volendo comporre la statua virile, e sapere e muscoli sono nel corpo dello huomo e così tutti nervi e legature sono in esso.”

[16] Ghiberti (1998, cap. I, II.10): “Non bisognia esser medico come Ypocrate et Avicenna e Galieno, ma bene bisogna avere vedute l’opere di loro, avere veduto notomia, avere per numero tutte i nervi e tutte le legature che sono nella statua virile; altre cose di medicina non bisognano tanto.”

[17] Conforme suas próprias palavras, polemizando contra aqueles que desprezavam sua “esperientia” face a conhecimentos de autoridades, como ele escreve no Codice Atlantico (Leonardo da Vinci, 1975-80, f. 327v): “So bene che per non essere io literato, che alcuno presuntuoso gli parrà ragionevolmente potermi biasimare coll’allegare io essere homo sanza lettere. Gente stolta! Non sanno questi tali ch’io potrei si come Mario rispose contro a’ patr[i]zi romani, io si rispondere dicendo: quelli che dell’altrui fatiche se medesimi fanno ornati, le mie a me medesimo non vogliano concedere. Diranno che, per non avere io lettere, non potere ben dire quello di che voglio trattare. Or non sanno questi che le mie chose son più da esser tratte dalla sperienzia che d’altrui parola, la quale fu maestra di chi bene scrisse, e cosi per maest[r]a la piglio e quella in tutti casi allegherò.” (“Sei bem que por não ser eu letrado que a algum presunçoso parecerá razoável me culpar por seu eu homem sem lestras. Gente estúpida! Não sabem estes tais que eu poderia, como Mario respondeu aos patrícios romanos, eu sei responder dizendo: aqueles que dos trabalhos de outros se ornam, os meus eles não querem conceder a mim. Dirão que, por eu não ter letras, não poderia bem dizer aquilo de que quero tratar. Ou não sabem aqueles que as minhas coisas são mais tiradas da experiência do que da palavra de outros, a qual foi mestra de quem bem escreve, e assim por mestra eu a tenho e ela alegarei em todos os casos.”)

[18] Vasari (1568, vol. 1, p. 468): “Egli s’intesi degl’ignudi piu modernamente, che fatto non haueuano gl’altri maestri innanzi a lui, & scorticò molti huomini, per vedere la notomia lor sotto. Et fu primo a mostrare il modo de cercar’ i muscoli, che hauessero forma, & ordine nelle figure.”

[19] Vasari (1568, vol. 2, p. 720): “Fece per la Chiesa di Santo Spirito della città di Firenze vn Crocifisso di legno, che si pose, & è sopra il mezzo tondo dello altare maggiore a compiacenza del priore, il quale gli diede comodita di stanze; doue molte uolte scorticando corpi morti per studiare le cose di notomia, cominciò a dare perfettione al gra[n] disegno che gl’hebbe poi.”

[20] Leonardo da Vinci (1980-85, K/P 1v): “Il ranocchio subito more quando e’ li è forato il midollo della schiena. E prima vivea sanza capo, sanza core o alcuna interiore o intestine o pelle. E qui, adunche, par che stia il fondamento del moto e vita.” Imagens e transcrições críticas dos manuscritos de Leonardo podem ser vistas na página e-Leo: Archivio digitale di storia della tecnica e della scienza.

[21] Leonardo da Vinci (1980-85, K/P 81v): “Questa opera si debbe principiare alla concezione dell’omo e descrivere il modo della matrice, e come il putto l’abita, e in che grado lui risegga in quella, e ’l modo dello vivificarsi e cibarsi e ’l suo accrescimento. E che intervallo sia da uno grado d’accrescimento a uno altro, e che cosa lo spinga fori del corpo della madre, e per che cagione qualche volta lui venga fori del ventre di sua madre innanzi al debito tempo.”

[22] Leonardo da Vinci (1980-85, K/P 81v): “Dipoi descrivi come li è composto di vene, nervi, muscoli e ossa.”

[23] Leonardo da Vinci (1980-85, K/P 69v): “E questo vecchio di poche ora innanzi la sua morte mi disse lui passare cento anni, e che non sentiva alcun mancamento nella persona altro che debolezza. E così, standosi a sedere sopra un letto nello ’spedale di Santa Maria Nova di Firenze, sanza altro movimento o segno d’alcuno accidenti, passò di questa vita. E io ne feci notomia per vedere la causa di sì dolce morte, la quale trovai venire meno per mancamento di sangue e arteria che notria il core e li altri membri inferiori, li quali trovai molto aridi, ’stenuati e secchi. La qual notomia discrissi assai diligentemente e con gran facilità, per essere privato di grasso e di omore, che assai impedisce la cognizione delle parte. L’altra notomia fu d’un putto di due anni, nel quale trovai ogni cosa contra[r]ia a quella del vecchio.”

[24] Leonardo da Vinci (1980-85, K/P 113r): “E se tu arai l’amore a tal cosa, tu sarai forse impedito dallo stomaco; e se questo non t’impedisce, tu sarai forse impedito dalla paura coll’abitare nelli tempi notturni in compagnia di tali morti squartati e scorticati e spaventevoli a vederli; e se questo non t’i[m]pedisce, forse ti mancherà il disegno bono, il qual s’appartiene a tal figurazione; e se tu arai il disegno, e’ non sarà accompagnato dalla prespettiva; e se sarà accompagnato, e’ ti mancherà l’ordine delle dimostrazion geometriche e l’ordine delle calculazion delle forze e valimento de’ muscoli. O forse ti mancherà la pazienza, ché tu non sarai diligente. Delle quali se i’ me tutte queste cose sono state o no, i cento venti libri da me composti ne daran sentenzia del sì o del no. Nelli quali non sono stato impedito né d’avarizia o negligenzia, ma sol dal tempo. Vale.”

[25] Leonardo da Vinci (1980-85, K/P 113r): “E tu che di’ esser meglio il vedere fare la notomia che vedere tali disegni, diresti bene se fussi possibile vedere tutte queste cose che in tal disegni si dimostrano in una sola figura, nella quale con tutto il tuo ingegno non vedrai e non arai la notizia se non d’alquante poche vene, delle quali io, per averne vera e piena notizia, ho disfatti più di dieci corpi umani, destruggendo ogni altri membri, consimando con minutissime particule tutta la carne che d’intorno a esse vene si trovava sanza insanguinarle, se non d’insensibile insanguinamento delle vene capillare. E un sol corpo non bastava a tanto tempo che bisognava procedere di mano i’ mano in tanti corpi che si finissi la intera cognizione, la qual ripricai due volte per vedere le diferenzie. (“E tu que dizes ser melhor ver uma anatomia do que ver tais desenhos, dirias bem se fosse possível ver todas estas coisas que em tais desenhos demonstra-se em uma só figura. Em uma anatomia, com toda tua habilidade, não verás e não terás mais conhecimento do que de alguns poucos vasos, dos quais eu, para ter seu verdadeiro e pleno conhecimento, dissequei mais de dez corpos humanos, destruindo todos outros membros e removendo com minúsculas partículas toda carne que em torno desses vasos existia, sem ensanguentar mais do que o mínimo possível por causa dos vasos capilares. E um corpo apenas não bastava para tanto tempo, e eu necessitava proceder passo a passo em muitos corpos até chegar ao conhecimento pleno. Isto eu repeti duas vezes para ver suas diferenças.)”

[26] Leonardo da Vinci (1980-85, K/P 113r): “Il libro della scienzia delle macchine va innanzi al libro de’ giovamenti.

[27] Leonardo da Vinci (1980-85, K/P 71r): “Instrumento mirabile invenzionato dal sommo maestro.”

[28] Leonardo da Vinci (1980-85 K/P 104r): “La natura operi in tutte cose nel più brieve tempo e modo ch’è possibile.” (“A natureza opera em todas as coisas no mais breve tempo e modo que é possível.”)

[29] Leonardo da Vinci (1980-85 K/P 147v): “Li nervi c[h]e movano il piedi inverso la cavicchia, ovver giuntura del piedi, sono nf. Adunque f è comune a due moti, cioè alza[re] e piegare il piedi. E qui vedi la sagacità della natura, come l’ha provveduto di due cause di moto in ogni membro, acciò che, mancando l’una, l’altra, se non in tutto, in parte sopplisca.” (“Os nervos que movem o pé em direção à clavícula, ou juntura do pé, são nf. Assim, f é comum a dois movimentos, isto é, levantar e dobrar o pé. E aqui vejas a sagacidade da natureza, como ela proveu com duas causas de movimento em cada membro, de modo que faltando uma a outra, se não de todo, em parte substitui.”)

[30] Leonardo da Vinci (1980-85, K/P 139v): “Ma per questo brevissimo modo del fugurarli per diversi aspetti, se ne darà piena e vera notizia e, acciò che tal benifizio ch’io dò all’omini, io insegno il modi di ristamparlo con ordine, e priego voi, o successori, che l’avarizia non vi costringa a fare le stampe in…” A última palavra não é mais legível, mas possivelmente era “legno”, ou sejam madeira. Xilogravuras não permitiam imprimir desenhos precisos como Leonardo fazia.

[31] Citado por Villata (apud Marani, 1999, p. 365): “Questo gentilhuomo ha composto de notomia tanto particularmente cun la demostrazione de la pictura sì de membri come de muscoli, nervi, vene, giunture dintestini et di quanto si può ragionare tanto di corpi de huomini come de donne, de modo non è stato mai anchora facto da altra persona. Il che habbiamo visto oculatamente et già lui dixe haver facta notomia de più de xxx corpi tra mascoli et femine de ogni età. Ha anche composto de la natura de l’acque, de diverse machine et d’altre cose, secondo ha referito lui, infinità de volumi, et tucti in lingua volgare, quali se vengono in luce, saranno profigui et molto delectevoli.”

[32] Leonardo da Vinci (1980-85, K/P 142v): “h è il muscolo dell’ira; p è il muscolo del dolore.”

[33] Leonardo da Vinci (1980-85, K/P 148v): “Quando li due muscoli a, r tirano, la gamba s’alza innanzi e li due muscoli bc s’allentano e d s’allunga. E questa regola descrivi nella operazione di tutti i muscoli e potrai fare sanza vedere il vivo quasi ogni atto sanza mancamento.”

[34] Após comentar os artífices anteriores a Leonardo, Vasari escreveu (1568, vol. 2, proemio): “Ma lo errore di costoro dimostrarono poi chiaramente le opere di Lionardo da Vinci, il quale dando principio a quella terza maniera, che noi vogliamo chiamare la moderna, oltra la gagliardezza, & brauezza del disegno, & oltra il co[n]traffare sottilissimamente tutte le minuzie della natura cosi? a punto, come elle sono; con buona regola; miglior ordine; retta misura, disegno perfetto, & grazia diuina; abbondantissimo di copie, & profondissimo di Arte; dette veramente alle sue figure il moto, & il fiato.” (“Mas os erros daqueles mais tarde foram demonstrados nas obras de Leonardo da Vinci, que, dando princípio à terceira maneira, que nós queremos chamar de moderna, além do vigor e do virtuosismo do desenho, e além de forjar sutilissimamente todas as minúcias da natureza feitas assim como elas são, com boa regra, melhor ordem, medida correta, desenho perfeito e graça divina, abundantíssimo em cópias e profundíssimo na arte, deu a suas figuras o movimento e o sopro de vida.”)

[35] Giovio (apud Barocchi, 1971, p. 9): “Nullum celebrem discipulum reliquerit.”

[36] Leonardo da Vinci (1998, f. 155r): “E tirato dalla mia bramosa voglia, vago di vedere la gran copia delle varie e strane forma fatte dalla artificiosa natura, ragiratomi alquanto infra gli onbrosi scogli, pervenni all’entrata di una gran caverna, dinanzi alla quale restado alquanto stupefatto, e igniorante di tal cosa, piegato le mie reni in arco, e ferma la stanca mano sopra il ginocchio, e colla destra mi feci tenebre alle abbassate e chiuse ciglia, e spesso piegandomi in qua e in là per veder dentro vi disciernessi alcuna cosa, e questo vietatomi per la grande oscurità che là entro era. E stato alquanto, subito salse in me due cose: paura e desiderio, paura per la minacciante e scura spilonca, desiderio per vedere se là entro fusse alcuna miracolosa cosa.”

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