Mães na arte: Uma homenagem ao olhar feminino da Madona à mulher moderna
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por Iasmine Souza
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Retratos de mães junto aos seus filhos são comuns na história da arte. O fascínio pela representação da mulher mãe atravessou séculos na iconografia ocidental e imortalizou cenas de colos amorosos e acolhedores. É certo que, da Pietà de Michelangelo aos arquétipos da mulher do maternalismo contemporâneo, as simbologias associadas à figura materna mudaram radicalmente, mas um elemento comum permaneceu presente nessas imagens: a beleza do vínculo entre mãe e filho, principalmente quando as mulheres passam de objeto de contemplação a criadoras de sua própria imagem.
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A representação feminina na arte sempre teve como um de seus temas românticos centrais o “ser mãe”, indissociável do “ser mulher”, e fez reinar por séculos no imaginário dos artistas o mito da mulher santa, provedora de alimento, proteção, e capaz de se entregar com sacrifício ao sobre-humano e indefectível amor materno. O que se vê, desde a pré-história, é a realização do feminino como fonte da vida. Prova disso é a “Vênus de Willendorf”, figura feminina mais famosa da idade da pedra, datada entre 22-24 mil anos antes de Cristo. A escultura, pequena em tamanho – possui aproximadamente 11 cm -, tem um significado grandioso: a força da deusa mulher como símbolo de fertilidade e fecundidade, representada por suas formas voluptuosas e abundantes, sobretudo na hipertrofia dos ventres, seios e quadris.
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As Madonas do Renascimento, por sua vez, são o exemplo artístico mais conhecido da mãe cuidadora piedosa e terna. As Marias e seus filhos surgem na pintura italiana como espelhos do maternar cristão, colocando em cena atmosferas comoventes da mãe que suporta com resignação a dor e o sofrimento. A Pietà de Michelangelo, supreendentemente serena — idealizada na aceitação da mãe que crê —, segura o Cristo morto em seus braços, após a Crucificação. Um olhar rápido sobre a arte produzida pelos grandes mestres entre os séculos XV e XVII é suficiente para constatar que o espaço pictórico da mãe atendeu à rígida associação entre a mulher e a imagem religiosa da Virgem Maria. E nenhum dos maiores mestres da renascença — seja Leonardo, Rafael ou Botticelli —, escapou de retratá-las santificadas, castas, impregnadas de valores religiosos, na atitude e na expressão.
A partir do século XIX cresce a representação da mulher associada à casa, parte do mito da heroína feliz no lugar doméstico: mãe amorosa que cuida, alimenta e educa. O espaço feminino na arte passa a corresponder ao espaço social ocupado pela mulher sob os mais convencionais aspectos da maternidade. Para Michelle Perrot, paralelamente ao retraimento da mulher real na sociedade, desenvolve-se uma ampliação das imagens, e o sexo feminino passa ser o espetáculo do homem na iconografia dos estilos modernos.[1]
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Pelos pinceis dos mais consagrados artistas da história, o decorrer dos séculos XIX e XX ocupa o universo da arte com uma vasta lista de imagens com mães, em número tão grande quanto a natureza única e peculiar do relacionamento entre mãe e filho. A conquistada liberdade no pintar acompanha uma profusa representação do tema conforme experiências, estilos e memórias pessoais. Mães segurando bebês, amamentando, delicadas, realistas, sensuais, em estado de profunda solidão ou alegria. Tantas que qualquer tentativa de esgotá-las estaria fadada ao fracasso. Surgem as mães impressionistas de Monet e Renoir, as primitivistas de Gauguin, a musa encorajadora expressionista do atormentado Van Gogh[2] e a mãe cubista de Picasso.[3]
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O que se percebe com certa tranquilidade é que a presença da mãe na narrativa tradicional da arte figurativa está atrelada a uma produção masculina, que atendeu com fidelidade à moral doméstica e ao modo de existir da mulher na sociedade patriarcal. Porquanto donos do monopólio dos pinceis, as imagens de mães permaneceram direcionadas ao masculino. A investigação histórica que leva ao resgate do olhar da mulher na pintura tem sido festejada nos últimos anos, e, por isso, por ocasião do mês das mães, é preciso celebrar a mulher artista como sujeito ativo da experiência intensa de ser mãe, ou, ainda, de vivenciar a esfera íntima feminina, na vida e na arte. E certamente é nesse resgate da artista mulher, outrora outsider dos cânones da arte, que está a chave da ressignificação dos temas convencionais ligados ao maternar. Onde estão os trabalhos produzidos por mulheres, mães ou filhas? Nesta oportunidade, celebra-se algumas das incríveis obras de mulheres que ficaram esquecidas pela historiografia tradicional.
Artemisia Gentileschi, primeira mulher aceita na Academia de Belas Artes de Florença, na Itália, e considerada a única pintora do período barroco que obteve reconhecimento histórico, em “Madonna and Child”, 1613, retratou uma mãe que se prepara para amamentar o filho. Para a época, a cena tem uma naturalidade inesperada, e a nudez parcial reforça a intimidade do momento, atestando o que mais fascina até hoje na obra de Artemisia: o olhar feminino, de dentro para fora, que nenhum homem poderia traduzir.
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Em 1789, Élisabeth Louise Vigée-Le Brun pintou um autorretrato com a sua filha Julie. E como comunicou perfeitamente bem o prazer genuíno do abraço em sua filha, que chega a ter uma atitude contemporânea, aconchegada em seu pescoço!
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Com uma assinatura singular no mundo dominado pelos homens na pintura impressionista, Mary Cassatt, sempre interessada pelo comportamento feminino, talvez tenha sido vencedora no quesito retratos de mães e filhos. Em uma de suas obras, a mãe descansa ao lado do filho, cercados de brancos travesseiros e cobertores. A expressão da mãe, que parece perdida em seus pensamentos, deixa muito à imaginação, mas considero provável a interpretação de que nem sempre a mulher estava animada na fatalidade do seu papel social.
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Na vasta produção contemporânea, o que se observa é um número crescente de artistas mulheres que exploram a temática da geração da vida e as atividades relacionadas ao maternar não mais sob a perspectiva da mãe glorificada — realizada em sua feminilidade através da procriação —, mas da mulher que alcança a verdadeira plenitude ao reconhecer-se parte de um vínculo complexo, repleto de emoções, inseguranças e incertezas. Afastada da realidade estática do ambiente doméstico e do lugar sagrado, remodela-se a imagem da boa mãe, que dá lugar a uma mãe amorosa, vigorosa, mas por vezes incapaz de docilidade e de colo sincero, em toda a sua humanidade.
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Não encontramos nenhuma conduta universal e necessária da mãe. Ao contrário, constatamos a extrema variabilidade de seus sentimentos, segundo sua cultura, ambições ou frustrações.[4]
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Já em 2016, a pintora afro-americana Amy Sherald redefine a postura tradicional da Madona e reposiciona a mulher no mundo contemporâneo, livre das cargas opressivas do confinamento da estética materna idealizada. A jovem, que encara fortemente o espectador — e que parece dizer no olhar tudo que as pinceladas ainda não haviam mostrado —, carrega a filha nos quadris em uma pose desconstruída. A menina, acoplada à mãe, observa-a com devoção.
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É certo que percorrer a imagem da mãe história da arte é tecer uma rica gama de associações históricas e revisitar estereótipos da maternidade perfeita e benevolente: uma tarefa que exige fôlego e absoluto cuidado para não cometer anacronismos. Mas é também deparar-se (e admirar-se) com uma série de incríveis obras que homenageiam o amor construído entre mães e filhos, sobretudo quando resgatada a produção e a perspectiva da mulher na arte. Que a profundidade do elo materno continue a servir de inspiração aos artistas em suas criações!
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Notas:
[1] Michele Perrot, Os excluídos da história, Editora Paz & Terra, oitava edição, ver p. 235.
[2] Ver “Retrato da mãe do artista“, 1888.
[3] Ver “Mãe com crianças e laranjas”, 1951.
[4] Elisabeth Badinter, Um amor conquistado: o mito do amor materno, Editora Nova Fronteira, segunda edição, ver p. 367.
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