Maria Quitéria x Dom Pedro I: o díptico da Independência do Brasil

De um lado, o imperador representa (de forma idealizada) o nascimento de um governo nacional; de outro, a primeira mulher a lutar no exército brasileiro representa os milhares de voluntários que lutaram por uma liberdade que não veio ao fim da guerra.

Se é fato que as imagens, sobretudo dos nossos heróis, são campo de disputa privilegiado da identidade nacional, proponho, neste texto, não propriamente uma oposição entre as imagens de Maria Quitéria e Dom Pedro I, mas uma ampliação e complexificação da nossa história incluindo outras imagens para além do quadro do “Grito do Ipiranga”, do pintor paraibano Pedro Américo.

“O Grito do Ipiranga” (1888), de Pedro Américo, em destaque no Museu do Ipiranga.

No centenário da Independência, em 1922, um retrato de Maria Quitéria, a primeira mulher a lutar no exército brasileiro, foi encomendado pelo então diretor do museu do Ipiranga, em São Paulo, Afonso Taunay, ao pintor italiano Domenico Failutti — que, por sua vez, cita o retrato feito pelo inglês Augustus Earle (1824). A releitura retrata uma Maria Quitéria mais feminina e, sobretudo, mais “morena”, para atender à representação do “povo brasileiro”. Um tipo social considerado importante para ser simbolizado no ambiente mais destacado do museu, o Salão Nobre.

Tanto é que, curiosamente, os retratos de Quitéria (e um de Leopoldina) tomam o lugar dos quadro dos caipiras (1893-94) do pintor José Ferraz de Almeida Júnior. Eles acompanhavam, até então, nas laterais, o quadro mais célebre do museu, precisamente O Grito do Ipiranga (1888), de Pedro Américo.

Foi uma proposta e uma troca em tudo feliz e ousada do diretor Afonso Taunay. Tanto por destacar o papel da Bahia e, assim, desvelar uma independência em nada pacífica, por meio de Quitéria, quanto por conferir importância a mulheres, como a própria Quitéria e também Maria Leopoldina. Em um ofício, a justificativa da encomenda dos quadros evidencia-se: “para que os menos sabedores da história fiquem tendo conhecimento de que nossa história não se fez por meio de conchavos e foi adquirida graças à efusão de sangue brasileiro”. 

O retrato da heroína por Augustus Earle que inspiraria o quadro de Domenico Failutti.

Até então, as disputas simbólicas pelo passado nacional, que se dão entre Rio de Janeiro e São Paulo, acabavam por obscurecer o protagonismo da Bahia nas batalhas pela independência do Brasil. O embate parecia, no centenário, sofrer um importante revés com a inserção do quadro da baiana Maria Quitéria em pleno Salão Nobre do museu. Um quadro vertical de grande dimensão (155 x 253,5 cm) que rivaliza, hoje, com o horizontal O Grito do Ipiranga. Se as crianças, os adolescentes e mesmo os adultos não sabem quem é a figura, ao menos terão curiosidade em saber. A presença da imponente e colorida imagem de uma personagem até hoje incomum (a mulher soldada) é de relevante importância para a rememoração histórica de Maria Quitéria.

Eis nosso díptico. Se, por um lado, Dom Pedro I representa (de forma idealizada) o nascimento de um governo nacional, Maria Quitéria, de outro, representará os mais de 14 mil brasileiros voluntários, em sua maioria negros e mesmo escravizados, que lutaram por uma liberdade que não veio ao fim da guerra. O Brasil era, para negras e negros, sinônimo de desterro e escravidão, mas também sua nova pátria. Esse lugar em tudo desencaixado e difícil era o espaço em que se devia, apesar de todas as dificuldades, ser também o local de alguma possibilidade, de alguma liberdade. 

O retrato de Maria Quitéria por Domenico Failutti.

“Lutar pelo que se vira contra nós”. Essa foi a luta dos negros no Brasil — e mesmo dos brancos e mestiços — por uma independência e por uma liberdade que, por fim, não chegaria para a maioria. Ainda assim, era preciso seguir e lutar pelo que se pensava justo e necessário. São essas pessoas aguerridas que, pelo pouco (ou quase nada) que a mudança da forma de governo poderá trazer em suas vidas, decidem pela independência e lutam ao lado de Maria Quitéria nesse dia.

Mais do que uma mulher em si, a imagem de Maria Quitéria funcionou (e ainda funciona) como um elo paradoxal entre um passado que ecoa e um futuro incerto na conformação de um imaginário do país e de seu povo. Um elo tenso de avaliação e de balanço da identidade nacional. Maria Quitéria parece responder a essa solução difícil e original de preservar e ousar, de conservar e inovar, simultaneamente. Uma mulher que luta por uma independência que conserva o imperador português, mas que deseja mudanças e liberdade para o povo. Quem sabe Maria Quitéria seja uma imagem do futuro? Símbolo da mediação, dos consensos (ainda que difíceis); uma imagem capaz de ultrapassar os tempos polarizados.

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Isabelle Anchieta é socióloga e autora do livro “Revolucionárias: Joana D’Arc e Maria Quitéria” (Planeta) e da trilogia “Imagens da Mulher no Ocidente Moderno” (Edusp).

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