Histórias de artistas mulheres

Os contextos histórico-sociais que contribuíram para a construção da figura profissional da mulher artista, num ensaio do Prof. Luciano Migliaccio.

por Luciano Migliaccio

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Nos últimos cinquenta anos, os estudos de gênero na história da arte tiveram o grande mérito de destacar a necessidade de pesquisar a vasta temática da produção das mulheres, seus condicionantes sociais, e seu relevante aporte para a cultura visual nas diversas épocas e civilizações.

Uma recente mostra no MASP trouxe pela primeira vez ao Brasil obras significativas de artistas como Lavínia Fontana, Sofonisba Anguissola, Clara Peeters, Judith Leyster, Michelina Woutiers, Elisabeth Vigée-Lebrun, entre outras.

Contudo, colocar lado a lado pintoras italianas, holandesas, francesas e inglesas, a partir de critérios apenas cronológicos, pode comunicar ao público uma informação genérica, quando não imprecisa, baseada numa única noção que precisaria ser melhor compreendida e especificada: aquela da invisibilidade das mulheres na história da arte.

Se remediar a essa injustiça foi a motivação da primeira historiografia feminista, hoje torna-se relevante evidenciar as diversas estratégias e os contextos histórico-sociais que contribuíram para a construção da figura profissional da mulher artista, dentro de um campo tido como exclusivamente masculino. Este processo começou na Europa já antes da idade moderna e deveria ser entendido de acordo com a condição social da mulher em cada momento e cultura.

Em 1361–62, Giovanni Boccaccio, o autor do Decamerão, num escrito dedicado às mulheres ilustres, retomando as notícias biográficas do escritor romano Plínio o Velho, incluiu uma artista na sua galeria de figuras femininas exemplares e heroínas. Ao falar de Tamiris ou Timarete, filha do pintor grego Micon, por sua vez chefe de uma escola de pintura, escreveu que “ela desprezou os atributos do seu sexo, e praticou a arte do seu pai”.

Uma iluminura francesa do começo do século XV, que ilustra o texto do escritor florentino, representa uma mulher sentada com um espelho na mão, pintando seu autorretrato, quase estivesse maquiando seu rosto. Ela repudia assim as cores como meio de sedução, para buscar a fama por meio da arte; revela uma ambição supostamente masculina, mesmo sendo consciente do encanto que emana da sua própria imagem.

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Ilustração em De Mulieribus Claris, c. 1403

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Entre os séculos XVI e XVIII, as mulheres artistas, com raras exceções, surgiram dentro de ateliês familiares. Os pais quase sempre, às vezes os irmãos e os maridos, foram seus primeiros mestres e promotores. Muitas entre elas se especializaram em géneros que eram considerados mais adequados às supostas limitações do seu sexo: a pintura de retratos, de natureza morta e de flores, a iluminura.

Nos próprios autorretratos, representaram o ambiente do ateliê como uma extensão do lar, assim como a pintura foi uma atividade exercida ao lado dos papéis domésticos de filha, de irmã e de esposa, às vezes de dama de elevada condição social.

Já outras seriam responsáveis pela criação de uma linhagem de artistas ao feminino, construída principalmente na Itália, entre o século XVI e XVIII, a partir do tópico literário das séries de heróis e homens ilustres, em explícito diálogo com o universo intelectual masculino.

É suficiente mencionar Properzia De Rossi, Fede Galizia, Dianella ou Annella De Rosa, Elisabetta Sirani, Giovanna Garzoni, Giovanna Fratellini, finalmente as renomadas Artemisia Gentileschi e Rosalba Carriera, tidas como maravilhas do seu século. Vasari, Malvasia, De Dominici e outros biógrafos da época delas, fizeram questão de mencioná-las nos seus escritos. Ao escrever as vidas dos artistas de Bolonha, Cesare Malvasia preocupou-se em destacar o papel das mulheres entre os artífices ativos na cidade, e reuniu ampla informação sobre elas.

A escultora Properzia De Rossi foi acusada abertamente de usar a sua beleza para ganhar encomendas em detrimento dos seus competidores homens. O seu relevo figurando José e a esposa de Putifar, realizado para a fachada da basílica de San Petronio de Bologna, foi interpretado pelo misógino Vasari como expressão de uma paixão amorosa não correspondida, quase a manifestação impudica da sensualidade irracional da alma feminina. O escritor revelava o seu embaraço, frente a uma mulher, que, vivendo uma relação pública com um homem casado, se atrevera a fazer uma interpretação explicitamente erótica de um episódio bíblico, seguindo os passos de Marcantonio Raimondi, seu mestre, e de Giulio Romano, no ateliê de Rafael. Properzia também inventou novos géneros, e formatos de esculturas adequadas ao fazer feminino, que provavelmente eram já praticados nos conventos, com uso de materiais humildes, e os colocou no universo dos colecionadores. As fontes relatam que entalhou num caroço de pêssego uma crucificação considerada um prodígio.

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Properzia De Rossi, José e a esposa de Putifar

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Ainda em Bolonha, Lavínia Fontana herdou do pai, Próspero, o maior ateliê de pintura da cidade e o dirigiu a pesar de dar à luz onze filhos. O marido, Paolo Zappi, artista bem menos conhecido, acabou sendo o agenciador de obras e o procurador da esposa. Na época, as mulheres não tinham capacidade jurídica para poder atuar em contratos e negociações comerciais, quando estivessem casadas.

Já Sofonisba Anguissola nasceu de uma família da nobreza lombarda. Quatro das suas irmãs, Elena, Lucia, Europa e Anna Maria, foram pintoras: acabaram de pintar ao casar-se, ou seguiram pintando encerradas entre os muros de um convento. Ela retratou os irmãos junto com o pai que a encorajou na sua carreira de pintora, e enviou um desenho de mão dela a Michelangelo.

Num famoso autorretrato, ela apresenta sua própria imagem numa tela sendo pintada pelo seu mestre, Bernardino Campi. Assim, ironicamente brinca com o gênero do retrato duplo do professor e do discípulo, do pai e do herdeiro na vida ou na arte. Subvertendo os papeis tradicionais e introduzindo o fator do género, Sofonisba quase prediz ao maduro pintor que a sua fama será lembrada, sobretudo, por estar ao lado da imagem engrandecida da sua aluna.

Em virtude de suas habilidades, sobretudo, como retratista, mas também como música e cantora, Sofonisba tornou-se dama de companhia da rainha da Espanha, Isabela de Valois, e atuou como pintora de corte, contudo, sem ter esse título. Depois de se casar com um nobre siciliano e ficar viúva, retirou-se em Palermo onde Anthony Van Dyck fez questão de visitá-la e retratá-la, ainda que fosse quase cega e já tivesse deixado de pintar.

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Sofonisba Anguissola por Van Dyck, 1624

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A napolitana Luisa Capomazza, ao dizer do fantasioso biógrafo Bernardo De Dominici, encerrou-se na clausura para evitar o casamento e poder se dedicar à arte. A sua conterrânea Annella De Rosa, conforme relata o mesmo autor, acabou assassinada pelo marido pintor, ciumento da sua relação privilegiada com o mestre, Massimo Stanzione, que a considerava a sua aluna mais talentosa e costumava colaborar com ela.

O caso mais singular, contudo, foi, sem dúvida, o de Artemisia Gentileschi. Pena que até hoje não foi possível expor no Brasil nenhuma obra de autoria documentada desta artista, por exemplo, os autorretratos da Galleria Nazionale d’Arte Antica di Palazzo Barberini em Roma, ou da National Gallery de Londres, nos quais a artista se representa no ato de pintar, ou o autorretrato nos trajes de Clio, a musa da história, assinado e datado de 1632, conservado no Museo di Palazzo Blu em Pisa.

Artemisia teve grande presença no meio artístico e intelectual italiano da sua época. Foi a primeira mulher a ser admitida na Academia do Desenho de Florença. Conheceu Galileu, pintou para Michelangelo Buonarroti o Jovem, sobrinho neto do famoso artista, e promotor da casa museu dedicada ao grande antepassado; formou alunos célebres, sendo ativa em academias literárias e no meio musical nas cortes de Florença, de Roma, de Nápoles e de Londres. No final da década de 1630, estabelecida na capital da Itália meridional, sob a proteção do vice-rei espanhol, Artemisia alcançara um bem-estar notável, uma posição social e uma liberdade impensável antes para uma mulher artista e publicamente separada do marido.   Uma figura bem mais complexa daquela divulgada pela mídia que costuma destacar, sobretudo, o trágico episódio do estupro por parte do pintor Agostino Tassi, amigo do pai, o vergonhoso processo que seguiu e a conturbada trajetória biográfica e amorosa da artista.

Na época em que o teatro e o melodrama formavam modelos ambíguos de heroísmo feminino, a casta Susana, a luxuriosa Cleópatra, a viril Judite, Artemisia encenou sua própria galeria de figuras e sentimentos fortes, competindo com os artistas homens, em diálogo com pintores e mecenas que a admiraram por este motivo: o pai Orazio Gentileschi, Cristofano Allori em Florença, o duque de Alcalá e Massimo Stanzione em Nápoles, o rei Carlos I da Inglaterra.

Nos autorretratos já mencionados ela frequentemente alude à alegoria da pintura descrita na Iconografia de Cesare Ripa: “mulher bonita, com cabelos pretos, e espessos, espalhados e retorcidos de diferentes maneiras, com cílios arqueados, exibindo pensamentos fantásticos… Segure o pincel com uma das mãos e a paleta com a outra”. Era uma maneira para identificar-se com seu ofício e sua própria vocação de artista.  No quadro da Galleria Barberini, Artemisia surge pintando o rosto de um homem, talvez a lembrança de uma paixão, ou uma alusão ao mito grego de Kore filha de Butade, sobre a origem da pintura e da escultura. Ela própria, então, é a pintura ou uma das artes irmãs, uma figura excepcional, uma musa.

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Autorretrato de Artemisia Gentileschi, c. 1638-39

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Outra artista de Bolonha, Elisabetta Sirani é exaltada pelo biográfo Cesare Malvasia, já mencionado, por ser uma mulher que sabia “pintar e desenhar como um grande mestre”. Aluna do pai, Andrea, um dos principais colaboradores de Guido Reni, e do próprio Guido, Elisabetta também teve entre os seus mecenas figuras destacadas como o cardeal Leopoldo de’ Medici, grande colecionador de pinturas e desenhos. Ela também, rivalizando com Artemisia, se aventurou na produção de retratos históricos e alegóricos, sobretudo, de personagens femininos.

A artista que mais soube sobressair, dirigindo-se a outro tipo de público masculino, composto, sobretudo, dos estrangeiros que, cada vez mais numerosos, visitavam a Itália, foi a veneziana Rosalba Carriera, definida “a primeira pintora do seu século”. A empreendedora Rosalba não era filha de um artista, a sua pintura surgiu no mundo feminino e doméstico das costureiras e das bordadeiras que em Veneza possui tradições seculares. Começou pintando figurinhas em tabaqueiras e iluminuras vendidas como souvenir ao público aristocrático do Grand Tour. Nestas obras, a pintora inventou um gênero original de imagem feminina, entre o retrato e o tipo ideal. Os viajantes podiam assim sonhar com a lembrança daquelas cortesãs que eram uma das atrações de Veneza.  Em seguida, utilizando de forma inédita o crayon colorido, Rosalba criou uma tipologia de retrato nova pela técnica brilhante e pela informalidade da representação, que condicionou todo o desenvolvimento moderno deste tipo de pintura, não apenas na Itália.  Seus admiradores foram príncipes e nobres venezianos e estrangeiros, mas também grandes amadores, colecionadores e marchand como o cônsul inglês Smith e os franceses Pierre-Jean Mariette e Pierre Crozat.

Estreitou amizades com outras célebres mulheres intelectuais da sua época como a escritora e tradutora Luisa Bergalli, esposa do escritor iluminista Gasparo Gozzi. O ateliê de Rosalba, que divulgou seu repertório através de inúmeras versões, também foi todo feminino; as suas principais colaboradoras foram as irmãs, e Felicita Sartori, ela também famosa pelas pinturas a pastel e pelas iluminuras, frequentemente cópias de obras da renomada mestra.

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Autorretrato de Rosalba Carrier, c. 1743-47

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A partir desses antecedentes, as mulheres artistas ganhariam reconhecimento público no meio europeu. Ao mesmo tempo, se afirmariam ao longo do século XVIII também no campo da música, do balé e do teatro, determinando, por sua vez, o surgimento de novos tipos de retrato, documento da afirmação de inéditos caracteres sociais femininos, não mais heroínas antigas, ou figuras destacadas por seu status social, mas divas e protagonistas do meio das artes.

Elisabeth Vigée Lebrun, Adelaide Labille-Guiard e Angelika Kaufmann foram as herdeiras de Rosalba e colocaram a mulher dentro do mundo das cortes europeias, das academias, da pintura de história. Estas artistas, contudo, cada uma a seu modo, testemunharam a crise da posição feminina no campo artístico, na conturbada passagem entre a sociedade de corte do Ancien Régime e a liberal surgida da Revolução Francesa.

Naquele momento, o papel público e político assumido pelos artistas profissionais, ao exemplo de David, relegou as artistas que não praticavam os grandes géneros da pintura monumental e acadêmica de história numa situação marginal. É, sobretudo, nesta fase, que se formou o mecanismo de ocultamento da presença feminina excluída do mundo das instituições públicas de ensino artístico. Nesse momento histórico a tese historiográfica proposta por Linda Nochlin, já em 1971, torna-se realmente explicativo para evidenciar a invisibilidade das mulheres na história da arte. A afirmação do sistema de ensino e promoção das artes dentro da esfera pública determinou, de fato, um retrocesso da presença e da visibilidade feminina, ao qual as mulheres não deixaram de reagir.

No belíssimo autorretrato de Elisabeth Vigée-Lebrun da National Gallery de Londres, ela, que seria a retratista preferida da rainha Maria Antonieta, se apresenta em pleno sol, ao ar livre, com um chapéu de palha que lhe protege os olhos, e a paleta na mão, competindo sem medo com Rubens, o mestre dos coloristas, e com Reynolds, o príncipe dos retratistas ingleses. O seu olhar sedutor desafia aquele do espectador, lembrando que os olhos e as mãos são também os meios principais do seu ofício de pintora. Por muitos anos não será mais possível encontrar uma imagem tão orgulhosa e ousada de uma artista.

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O autorretrato de Elisabeth Vigée-Lebrun, c. 1782

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Nos anos sucessivos à revolução, artistas como Vigée-Lebrun e Adelaide Labille-Guiard buscaram criar um espaço feminino no mundo do ensino artístico e nos géneros de representação. A primeira foi ainda a pintora das mulheres da aristocracia europeia em balanço entre as antigas monarquias e o universo napoleônico. Como havia retratado as antigas rainhas da França e de Nápoles, retratou Carolina Murat, irmã de Napoleão, casada com o rei-general Joaquim Murat. A segunda buscou criar um espaço educativo alternativo para um público feminino, antecipando, de fato, um caminho que iria se mostrar muito proveitoso com o passar do tempo. Ambas, no entanto, malgrado a indiscutível qualidade de suas obras, o seu talento, a sua capacidade profissional, frente ao prevalecer da função didática e política do artista que se afirmava, de maneira opressiva, na rígida hierarquia dos géneros, não puderam se não procurar um âmbito de temas e de ação exclusivo do seu próprio sexo.

Um exemplo claro do fenômeno que estamos descrevendo é a trajetória de outra artista francesa, Henriette Lorimier. Em 1806, ela recebeu uma medalha de ouro no Salon por um quadro de história ao feminino, que foi adquirido pela imperatriz Josefina. A tela, de ambientação medieval, figurava a rainha Joana de Navarra ensinando o filho Artur a rezar diante do túmulo do seu pai. Para os críticos, essa obra mostrando como uma mãe cumpre seu dever de educadora para com seu filho, era um exemplo do sucesso que uma mulher artista poderia alcançar ao se dedicar a esse tipo de assunto.

Contudo, uma revista da época, “L’Athenée”, insistia que ela limitasse sua atividade a este tipo de composições, escrevendo: “Vislumbramos para ela um sucesso ainda maior se ela se contentar em pintar as doces emoções da alma e os sentimentos delicados. Em suma, representar cenas da vida doméstica, deixando os assuntos históricos para os homens”. Afirmava-se assim a marginalização à redução da mulher artista nos limites de géneros menores, supostamente mais adequados ao universo e ao público feminino, senão a sua redução à categoria da amadora.

Este momento coincide com o surgimento da história da arte enquanto disciplina moderna e com a constituição do museu moderno de arte, que foi sua expressão decisiva.  A historiografia não foi mais formulada na base de biografias exemplares e dos cânones dos colecionadores, mas em função do significado histórico-político da produção artística dentro do desenvolvimento da cultura nacional.

É necessário partir desses pressupostos históricos para entendermos a construção da figura profissional da artista nos tempos e nas sociedades atuais. Relativamente ao século XIX, os estudos apontam a ampla presença de amadoras e a gradual inserção das mulheres nas instituições de ensino e nas exposições públicas, mas também a criação de ateliês privados voltados exclusivamente para a instrução artística das mulheres e as relações ali estabelecidas com o meio artístico profissional.

No Brasil, também seria importante fazermos finalmente bons catálogos das obras de artistas importantes como Abigail de Andrade, e Angelina Agostini, respetivamente companheira de vida e filha do grande caricaturista e abolicionista Ângelo Agostini, ou Georgina de Albuquerque, primeira mulher a ser professora e diretora da Escola Nacional de Belas Artes. Nas Américas, em conjunto, chama a atenção o número das mulheres escultoras neste período, da afro-americana Edmonia Lewis, nos Estados Unidos, a Nicolina Vaz de Assis e Julieta de França, artistas que tiveram grande relevância na construção do campo da arte no Brasil, só para citar alguns nomes. A escultura parece ter atraído muitas mulheres em virtude da sua relação com o esforço físico e o trabalho manual considerado tipicamente masculino, em contraste com meio das escolas de desenho para moças que estavam se tornando parte integrante do sistema educativo positivista. Malgrado não faltem estudos recentes e promissores, são temas que carecem ainda de aprofundamento. Discuti-los não cabe nos limites deste texto. Portanto, se a paciência dos leitores o permitir, vamos deixar para a próxima.

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‘Sessão do Conselho de Estado’ por Georgina de Albuquerque, 1922

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