Nem verdadeiro nem falso: ontologias de gênero em exposição

Uma resposta ao texto "A Madonna de Bellini não é um retrato”, de Matheus Madeira Drumond, publicado pelo Estado da Arte em 23 de outubro de 2024.

No intuito de fortalecer o bom debate crítico no campo da arte contemporânea, cada vez mais raro nas escassas mídias escritas sobre o tema, gostaria de propor uma breve réplica ao artigo “A Madonna de Bellini não é um retrato”, de Matheus Madeira Drumond, publicado em 23 de outubro de 2024. Trata-se de uma resenha crítica sobre a exposição Catherine Opie: o gênero do retrato, em cartaz no MASP entre julho e outubro deste ano, da qual fui um dos curadores. 

Reitero que a construção do gênero retrato na arte europeia, motivo originário do século XV, exprime uma revolução na maneira de representar o humano. No entanto, essa afirmação da identidade do sujeito desenvolveu-se às custas de vários limites formulados para esses corpos e resolvidos de formas variadas pelos artistas. É inegável que as distinções entre aquilo que seria apropriado em um retrato de uma mulher e de um homem são absolutamente hegemônicas na história da retratística em geral, para além dos artistas presentes na coleção do MASP e independente de algumas possíveis e raras exceções.

A afirmação do autor de que “parece um tanto perverso depositar sobre os retratos o peso de estruturas que se enraizaram de modo deliberado na cultura” revela uma concepção absolutamente convencional de que as imagens seriam ora meras ilustrações, ora neutras, em relação às transformações nas sociedades. A cultura é tecida também pelas imagens, cuja fabricação gera efeitos sobre ela. Vivenciamos nas últimas décadas um movimento radical, ainda que minoritário, no modo como as performances públicas de expressões não-binárias de gênero podem aparecer nos espaços. As imagens foram tanto artífices quanto receptoras dessa abertura de possibilidades, e isso pode ser apreendido também através das obras de alguns artistas, como Opie. O gênero do retrato não se encontra, nesse sentido, obsoleto, pelo contrário, parece ser reafirmado, reconfigurado e disputado por esses movimentos. 

A ideia de justapor mais de cinco séculos de história da representação de figuras humanas como motivo na pintura, através de obras importantes da coleção do MASP — de valor histórico e artístico, vale dizer, sem equivalente no Brasil — visa sobretudo revelar a própria pesquisa de Opie. Ela mesma é uma profunda estudiosa e entusiasta dos artistas em exposição, escolhidos em diálogo com ela. Em seu trabalho, a fotógrafa cria conexões e paralelos com essas formas de composição consagradas pela cânone através de longos processos de relação com suas amigas e parceiras registrados em seu estúdio. 

Vista da galeria que recebeu a exposição de Catherine Opie, no MASP. Foto: Eduardo Ortega.

O intuito da mostra nunca foi reificar toda a trajetória do gênero do retrato a apenas sua condição binária, tampouco criar um argumento evolucionista, ou menos ainda sugerir uma espécie de juízo moral às complexidades das posições de gênero e possibilidades sexuais de cada período histórico. Basta notar que a disposição das obras na galeria não é de modo algum cronológica, para além das análises presentes nas dezenas de verbetes sobre as pinturas e fotografias instaladas no verso dos trabalhos. O próprio autor mostra conhecimento desse conteúdo no seu artigo, como em relação ao lugar empoderado das mulheres nas banhistas de Renoir ou o homoerotismo subjacente ao São Sebastião de Perugino. 

Em uma exposição dessa escala, vale julgar o argumento curatorial baseado não apenas no ensaio publicado no catálogo — cujo objetivo central, explicitado no próprio, nunca foi explicar cada um dos diálogos na exposição, mas propor uma conexão entre as teorias da performatividade de gênero de Butler e a obra fotográfica de Opie. Tampouco o escopo daquele texto, nem da exposição, era esgotar o tema do retrato, mas articulá-lo a partir da obra de Opie, refletindo sobretudo sob os marcos do tempo histórico que compreende os seus trabalhos em exibição na mostra (de 1987 a 2022). 

No Renascimento figuras terrenas passam a ser representadas pela pintura, emergindo através das obras a ideia de individualidade, de sujeitos em busca de afirmação para si mesmos e perante a sociedade. No mesmo sentido, em Opie, parece haver o desejo de dar legitimidade a novos corpos, subjetividades e experiências. Em um contexto de crise das manifestações macropolíticas binárias, o pensamento e a prática artística caminham em direção a uma micropolítica de matriz identitária, performada nas ruas, bares, clubes — e, por que não, também nos estúdios de fotografia. 

Por outro lado, a própria prática do retrato passa a inscrever um outro tipo de memória coletiva, centrando-se em corpos que deverão ser lembrados em seu poder de resistência frente à violenta normatividade sexual e de gênero. Trata-se, em Opie, da apropriação da tradição e de marcadores associados às elites para dar a mesma condição de visibilidade a gêneros que muitas vezes não foram admitidos no universo de possibilidades da representação. 

Os personagens fotografados por Opie se inserem geralmente sobre fundos monocromáticos, em imagens com alto grau de estabilidade, contrastando com os processos de fluidez e risco vividos por grande parte deles em seus contextos. Interessa à artista a construção de uma subjetividade coletiva para dar visibilidade a uma comunidade que se quer fazer ver e existir socialmente, que se expõe e se apresenta para a sociedade com o objetivo de se afirmar e se legitimar, assim como as classes emergentes sempre o fizeram através dos retratos, produzindo-se como sujeitos históricos com um certo grau de solidez, influência e perenidade.

Apesar de o autor considerar tal proposição curatorial “jornalística”, “antirreflexiva”, de “efeito imediato”, “destituída de espessura analítica”, o escopo e a analogia propostos, me parece, não são nada ingênuos, superficiais ou desimportantes. O objetivo do projeto foi questionar a história do retrato a partir de discussões sobre gênero no presente, permitindo uma releitura de obras em relação, sem a pretensão de corrigir o caminho histórico tomado pelos artistas em seus contextos. Trata-se de ontologias de gênero em comparação, não em avaliação ou correção. 

As obras de Bellini e Piero di Cosimo, assim como algumas pinturas de gênero que não seriam estritamente retratos na exposição, expandem a concepção de corpos humanos para outros motivos da pintura. A Madonna, a santa à imagem de mulher, revela como a individualidade e o próprio retrato podem assumir o lugar do sagrado na modernidade. Não teria a figura da Virgem participado da construção de uma certa imagem de pureza, de mãe e do feminino? Contrapô-la ao autorretrato da artista amamentando seu filho não produz nenhum pensamento ou sensação? 

Se não for permitido colocar lado a lado imagens com graus distintos de conexão, sejam formais, conceituais ou temáticas, qual será a função do curador e de se fazer exposições, especialmente coletivas ou até mesmo individuais? Não seria essa uma das funções principais do exercício curatorial: colocar lado a lado objetos de artistas e tempos que a priori não teriam nenhum diálogo óbvio, mas, ao fazê-lo, criar outras possibilidades, sempre polissêmicas, de que uma obra seja vista? Como realizar exposições a partir de trabalhos de arte, que sempre são realizados no passado, se não propondo uma nova configuração curatorial a partir das inquietações do presente? 

Me parece um equívoco e um anacronismo historiográfico primário acreditar que teríamos acesso às próprias questões estéticas e sociais de cada um dos momentos históricos de quando as obras foram executadas. Nesta exposição, a premissa foi justamente inserir a obra de Opie dentro de uma instituição com esse modelo de coleção, a especificidade da mostra é dada pelo espaço e tempo em que ela se insere. Isso serve tanto para iluminar a obra de Opie quanto para abrir outras leituras sobre as pinturas do MASP. 

Se a sociedade dos indivíduos surge na modernidade simultaneamente aos retratos, por que não falar hoje de imagens que reinventam paradigmas sociais? Não seriam os retratos de Opie parte e agentes de novas concepções — nada absolutas, mas históricas e limitadas, é claro — de gêneros e sexualidades em ação? 

As experiências sexuais e de gênero consolidadas no trabalho de Opie não se pretendem verdadeiras em detrimento de outras que seriam falsas. Na verdade, ali na galeria tudo é de verdade dentro da ficção criada entre personagem e autor do retrato. Era impactante olhar para todos aqueles corpos e obras presentes na galeria como quase sujeitos, mesmo que achatados nas imagens bidimensionais, junto aos próprios visitantes, apresentando-se, misturando-se e impondo-se em suas diferenças. Mas essa força não depende só de quem mostra, depende também de quem quer ver.

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Guilherme Giufrida foi co-curador da exposição Catherine Opie: o gênero do retrato, no MASP.

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