por Laura Ferrazza de Lima
Vale a pena começar este artigo relembrando uma música do cancioneiro popular brasileiro, da autoria de Tião Carreiro e Lourival dos Santos, que atende pelo sugestivo nome de “A coisa tá feia”. Composta em 1983 ela trata, como o título sugere, das variadas agruras hipotéticas de uma crise econômica. Os autores enumeram diferentes sinais de súbita decadência financeira, em várias esferas da atividade humana. Por exemplo: “já está no cabo da enxada quem pegava na caneta” e “Já tem doutor na pedreira dando duro na marreta”. Contudo, a frase dessa canção que chamou minha atenção enquanto historiadora da arte foi: “Se o Picasso fosse vivo, ia pintar tabuleta”. Sim, é uma referência ao pintor Pablo Picasso (1881-1973), que, na visão dos autores do verso, se vivesse no Brasil naquela época, estaria em tal situação que para sobreviver teria de pintar tabuletas, como um sinal de derrocada social e econômica.
Esclarecendo: tabuletas, no nosso idioma, é o mesmo que placa ou letreiro. Antes da produção industrial, as pessoas pintavam à mão os letreiros e as logomarcas de seus comércios. Não posso dizer com certeza se Picasso ficaria ofendido em ter de pintar tabuletas, uma vez que ele não se limitou a pintar quadros, mas também fez cerâmica, esculturas, cenários para teatro. Essa atitude do pintor não era exatamente nova. Até o século XVIII, era comum. Foi durante o século XIX que a produção artística se especializou em pintura ou escultura, deixando as artes decorativas para os artesãos. Essa amálgama foi retomada apenas pelos ditos vanguardistas do século XX.
Contudo, pode-se falar com certeza sobre um pintor que quis, por sua própria vontade, pintar uma tabuleta — a qual, por sinal, tornou-se famosa —: o francês Antoine Watteau (1684–1721). Como de praxe em sua época, Watteau não só produziu quadros e desenhos, como também decorou portas de carruagens e tampos de piano, pintou painéis decorativos para residências e produziu cenários para Ópera. Mas foi no ocaso de sua curta vida (vale lembrar: ele faleceu aos 36 anos) que Watteau decidiu pintar sua tabuleta.
Produzida entre 1720 e 1721, a obra em questão recebeu em francês o título L’Enseigne de Gersaint, o que pode ser traduzido como “A insígnia de Gersaint” ou “A tabuleta de Gersaint”. A tabuleta foi pintada em duas partes: dois painéis complementares em óleo sobre tela, que deveriam ficar à esquerda e à direita da porta de entrada da loja do marchand Édme Gersaint (1694–1750), na Pont Notre-Dame de Paris. Juntando-se os dois painéis, a tabuleta tornou-se o maior quadro pintado pelo artista, com 1,66 x 3,06 m, além de ter sido sua última obra. Na ocasião, Watteau estava hospedado na casa de Gersaint, que era seu amigo, na parte superior do estabelecimento. Em geral, a placa de uma loja era um ornamento mais singelo. Nesse caso, contudo, foi pintada por um artista conhecido e membro da Real Academia de Arte. O quadro foi feito em oito dias. Watteau trabalhava apenas no período da manhã, já que seu estado frágil de saúde não lhe permitiria pintar por mais tempo. A tabuleta ornamentou a vitrine por apenas quinze dias e logo foi adquirida por um comprador desconhecido. Mais tarde, entre 1744 e 1754, foi adquirida por Frederico o Grande da Prússia, um grande admirador do trabalho de Watteau. Hoje no museu do Palácio de Charlottenburg, em Berlim.
Ao contemplar atentamente a tabuleta pintada por Watteau, um mundo de possibilidades se abre aos nossos olhos. Nela, o artista foi capaz de apresentar uma síntese da sociedade francesa no início do século XVIII. O que nela está retratado, teoricamente é a fachada e o interior da loja de Gersaint. Os personagens e seus trajes, contudo, carregam muitos códigos imagéticos, que ajudam a compreender desde o estilo e as escolhas do artista até o funcionamento daquela sociedade.
A vida quotidiana foi um tema de interesse para a pintura do século XVIII. Watteau estava pouco disposto a fazer juízos morais ou afirmações metafísicas em suas obras. No caso da tabuleta de Gersaint o artista não estava trabalhando sob encomenda, tampouco com uma temática pré-estabelecida. Simplesmente se ofereceu para pintar uma tabuleta para o seu amigo. Um clima de cena amorosa perpassa a tela; mas, diferente das famosas fêtes galantes pintadas pelo artista, o amor ocupou o espaço de uma loja, em vez de um jardim, e a compra e venda tomam o lugar da música. Esse deslocamento faz sentido, pois a vida na cidade era cada vez mais valorizada na época da Regência (1715-1723).
A imagem produzida possui um efeito em trompe-l’oeil. Ela não apenas produz a ilusão de dissolver a parede do ambiente, pois uma pessoa entra nele vinda diretamente da rua, mas também dilata o reduzido espaço da loja transformando-a num grandioso cômodo, com seu vislumbre de um salão com altos vitrais ao fundo. As paredes estão cobertas com quadros que possivelmente Gersaint nunca tenha possuído.
A pintura comunica-se com o observador através de um entusiasmo quase febril, em uma vitalidade frenética. A paleta de cores tem grande importância para expressar os sentimentos dos personagens retratados. A sociedade aparece ali reunida em cores outonais: os tons de bronze, amarelo e rosa encontram-se ressaltados pelo negro e pelo cinza prateado. As figuras retratadas vestem trajes elegantes, pintados com uma atitude encantadora. As pinceladas revelam as texturas dos tecidos, como a renda e a seda e mesmo o simples linho, como ocorre com a camisa estilo pierrô do homem no canto esquerdo do observador, que manipula o retrato de Luís XIV. Essa foi considerada uma referência política ao final da era do grande rei, que havia morrido em 1715, e o início de novos tempos; por isso, seu retrato estaria sendo encaixotado.
Além disso, a obra mostra claramente a peça de vestuário conhecida como “vestido de Watteau”. Em 1720, quando a tela foi pintada, essa moda já estava consolidada. A posição da moça de costas favorece a visão da parte de trás do vestido. Não existem na tela grupos subsidiários ou em pequena escala. Todas as figuras têm igual importância, em um ritmo semelhante à dança, que ondula por dentro e por fora de toda a composição, com uma oportuna pausa no centro. O espectador é convidado a introduzir-se no quadro através da moça que, vinda da rua, ingressa na loja; seu tornozelo rompe a longa horizontal que separa a loja da calçada e sua meia revela uma surpreendente cor verde sálvia. Enquanto ela avança, seu companheiro galantemente dá um passo adiante, como se bailasse um minueto.
Aqui, Watteau apresenta o último de seus casais. Eles são tocados por um gênio amoroso invisível, presente na loja. O clima sedutor fica mais evidente em alguns dos quadros que estão nas paredes, como a grande tela que representa uma Baignade (quadro de banho), com mulheres nuas à beira de um lago. A obra é examinada com muita atenção por um homem agachado. No grupo que observa um espelho, sustentado por uma bela atendente, existe ambiguidade: além do objeto, os homens examinam a jovem, e o espelho reflete a imagem da cliente formosamente vestida, que fixa o olhar nele de maneira um pouco triste.
A intensidade por trás do quadro A tabuleta de Gersaint procede da vida observada de uma maneira que somente um artista ou um moribundo seria capaz, e Watteau era ambos. O artista sempre teve uma saúde frágil e, nessa época, sofria com a tuberculose que iria vitimá-lo. Na obra aqui analisada, ele rivaliza em escala e execução com o mundo de Peter Paul Rubens (1577-1640) que tanto o havia fascinado, rendendo-lhe também uma última homenagem através do cachorro encolhido, que se assemelha ao cãozinho presente no quadro a Coroação de Maria de Médicis (1625) de Rubens.
Obra final e grandiosa, repleta de sentidos latentes e ocultos, “A tabuleta de Gersaint” mantém sem dúvida sua vitalidade. É no fascínio pelo cotidiano, mostrado com tamanha beleza e observação, que reside o encanto dessa tela. Faz-nos sentir nostalgia pelo tempo em que as habilidades manuais eram demonstradas mesmo numa simples tabuleta. Assim, um passeio pelo comércio poderia ser mais agradável aos sentidos de uma maneira geral e menos agressivo que as luzes piscantes da nossa contemporaneidade.