De olhos bem fechados

De olhos bem fechados: o complexo significado da biografia dos artistas no Brasil no século XIX, por Luciano Migliaccio.

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De olhos bem fechados

Vidas de artistas no Brasil do século XIX

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Escultura de Mestre Valentim

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por Luciano Migliaccio

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No Museu Arquidiocesano de Arte Sacra no Rio de Janeiro são conservadas duas vistas do incêndio e da reconstrução do Recolhimento do Parto, ocorridos em 1789, atribuídas ao pintor afro-brasileiro Leandro Joaquim, encomendadas pelo vice-rei Luís de Vasconcelos e Sousa. Outras duas telas com as mesmas imagens, mas de formato e dimensões diferentes, adquiridas em Portugal, encontram-se no Museu do Açude. Uma inscrição atribui sua autoria a João Francisco Muzzi (c.1750-1802), filho de um comerciante ou médico italiano e de uma afro-brasileira, autor de cenários para a Casa da Ópera do Rio e ilustrações do tratado de botânica “Flora Fluminense” por Frei José Mariano da Conceição Veloso, também patrocinado pelo Vice-rei.

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João Francisco Muzzi, Reedificação do Recolhimento de Nossa Senhora do Parto, 1789

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As quatro pinturas possuem grande interesse histórico. Na cena da reconstrução do edifício é retratado o arquiteto também afro-brasileiro Valentim da Fonseca e Silva, apelidado de “Mestre Valentim”, no ato de apresentar ao vice-rei um projeto de reconstrução do orfanato carioca. Este tipo de imagens é muito raro no contexto lusitana e documenta a inédita ascensão do prestígio social de um artista de descendência africana no Brasil. Mestre Valentim não aparece ali como  mestre-de-obras, nem como engenheiro militar, funcionário do Estado que costumava ser o encarregado da construção de obras públicas no mundo colonial. Pela primeira vez, é representado como arquiteto consultor do príncipe, na sua ação de bom governo. Bem vestido, ele inclina-se para apresentar o desenho no meio de um grupo de fidalgos, enquanto uma multidão de outros africanos escravizados estão ocupados no canteiro de obras nas funções mais corriqueiras e humildes da construção.

Essas imagens adquirem um significado ainda mais amplo considerando a atuação de Mestre Valentim no quadro da reconfiguração urbana do Rio de Janeiro, promovida pelo governante português.

A exemplo de Lisboa, à conclusão do projeto de expansão urbana na área da Lagoa do Boqueirão, foi criado o primeiro espaço público de lazer no continente, o Passeio Público. O vice-rei confiou o projeto, na parte artística, ao mesmo Valentim da Fonseca e Silva que instalou a Fonte dos Amores, primeiro chafariz monumental da cidade com as representações da flora e da fauna brasileiras, temas cultivados nas primeiras academias literárias brasileiras, surgidas no Rio de Janeiro e em Minas Gerais, no final do século XVII.

Mestre Valentim é, portanto, o primeiro artista a quem é reconhecida pelo poder uma função de interesse público, aparentemente ignorando o conhecido desprezo em relação ao trabalho manual realizado pela mão de obra de origem africana. O documento desta significativa mudança no status social do artista na estrutura da sociedade colonial  é uma pintura comemorativa realizada por outro artífice mestiço.

Este acontecimento é central para entendermos a “Memória sobre a antiga Escola de Pintura Fluminense”, de 1841, coletânea de biografias, com a qual o pintor e escritor Manuel Araújo Porto Alegre tentou  definir uma linhagem local de artistas, com método semelhante ao do historiador italiano Luigi Lanzi, estabelecendo relações estilísticas e pessoais entre diversos artífices ativos na mesmo contexto geográfico. É mérito dos estudos de Letícia Squeff ter chamado a atenção sobre o significado deste texto fundador da historiografia da arte brasileira, ainda não valorizado como mereceria.

Não era a primeira tentativa de Porto Alegre neste campo. Em 1834, na França, ele redigira um “Resumo da história da literatura, das ciências e das artes no Brasil, discurso pronunciado para os membros do Institut Historique de Paris, de que Porto Alegre fazia parte junto a Ferdinand Denis, o arquiteto François  Debret, irmão do pintor da Missão Francesa, e Alexandre Lenoir, fundador do Musée des Monuments Françaises. Naquela ocasião, Porto Alegre não abordou o problema da descendência africana e da condição escrava da maioria dos artífices no Brasil. Estava  interessado em demonstrar a existência de um movimento artístico e literário, destinado a inserir-se no contexto mundial, graças à contribuição dos mestres franceses que haviam introduzido os métodos de ensino acadêmico.

No texto de 1841, pelo contrário, o tema é colocado de forma explícita, pois ele escreve: “Os conventos também tiveram os seus escravos artistas: a posteridade livre que se aglomera hoje sob seus peristílios não imagina sequer que foram erguidos por mãos acorrentadas.”

Porto Alegre abre a “Memória” mencionando a figura do monge beneditino Frei Ricardo del Pilar,  originário de Colônia, na Alemanha, autor das mais antigas pinturas históricas, para o mosteiro de São Bento do Rio de Janeiro. Os restantes artistas são todos afro-brasileiros:  José de Oliveira Rosa, definido chefe da Escola Fluminense, o já mencionado João Francisco Muzzi, citado como cenógrafo, mas autor, como vimos, das primeiras vistas urbanas de caráter histórico;  João de Souza, que é classificado como colorista. Manuel da Cunha, nascido escravo, e autor do retrato do Capitão Geral  Gomes Freire de Andrada, conde de Bobadela; para a Câmara do Senado do Rio, primeiro do seu  gênero no Brasil. Leandro Joaquim, de “pincel suave”, como Muzzi, executou vistas do Rio de caráter histórico, e colaborou provavelmente nas obras de Valentim para o Passeio público. O sétimo pintor é Raimundo da Costa e Silva, famoso por primar nas duas artes da pintura e da escultura e por ter ensinado a arte a Mestre Valentim.

Porto Alegre qualifica José Leandro de Carvalho de “o melhor pintor histórico e o mais fiel retratista da sua época”. Nascido em cerca de 1770 e morto quase esquecido, em Campos, em 1834, bem depois da chegada da Missão Francesa. Ele pintou o retrato da família real no teto da capela-mor da Igreja de Nossa Senhora do Carmo, antiga Catedral Metropolitana do Rio de Janeiro, não mais existente. Esta obra renovava o sistema decorativo utilizado nos espaços religiosos da capital. Ultrapassando os exemplos dos tetos ilusionistas das igrejas da Ordem Primeira e Terceira de São Francisco, realizados por Caetano da Costa Coelho em 1737, introduzia um estilo de decoração atualizado nos exemplos do neoclassicismo português. Pela primeira vez no Rio, os retratos da família real eram introduzidos no espaço público desta forma, o que dava ao autor um reconhecimento social inédito.

O texto de Porto Alegre dava status de artistas a artífices de origem humilde, entre eles escravos e mulatos, o que devia soar estranho numa sociedade escravocrata como a do Império brasileiro.  Na biografia de Manuel da Cunha, ele escreveu: “Esse quinto mestre da escola nasceu escravo da família do nosso Secretário Perpétuo (Januário da Cunha Barbosa, secretário do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro): seu senhor, vendo-lhe uma grande vocação para a pintura, o levou a Lisboa, aonde aprendeu e se aperfeiçoou na sua arte.”

Porto Alegre, uma vez nomeado diretor da Academia Imperial de Belas Artes polemizaria contra o modelo de formação introduzido por seu antecessor Félix-Émile Taunay, baseado no ensino acadêmico francês, com exposições anuais e  prêmios de viagem no exterior,  e vista a inexistência de um mercado da arte e de colecionistas no Brasil, defenderia uma educação prática artístico-técnica. Ele retomaria assim os planos de Le Breton para quem a escola devia ser um motor de promoção social e formação de quadros especializados da indústria. Entretanto, para atingir efetivamente essa meta, o seu público deveria ser, antes de tudo, aquele dos descendentes dos africanos escravizados que dominavam o setor das artes e ofícios na sociedade carioca durante a época colonial.

Porto Alegre percebia também que a importação do modelo do ensino artístico europeu acabaria para agravar a marginalização desta parte da sociedade que ainda funcionava nos moldes da hierarquia colonial. A promoção  do status social do artista no âmbito acadêmico passaria necessariamente pela formação no exterior através do prêmio de viagem a Paris e a Roma, do qual os alunos de origem não europeia eram normalmente e tacitamente excluídos. O escultor afro-brasileiro Francisco Manuel Chaves Pinheiro, mesmo sendo aluno do mestre francês Marc Ferrez, e chegando a ser nomeado professor de escultura da Academia Imperial de Belas Artes, nunca obteve a bolsa para o exterior, que foi dada ao seu aluno Candido Caetano de Almeida Reis, para estudar em Paris com o francês Louis Rochet, autor do monumento equestre do imperador Dom Pedro I a Rio de Janeiro.

O uso da biografia por parte de Porto Alegre revela-se, portanto, contraditório. De um lado,  adotando o modelo do cânon, sucessão de vidas de homens ilustres nos diversos campos do conhecimento, inseriu os artistas afro-brasileiros da suposta Escola Fluminense na linhagem da cultura nacional. Do outro lado, acabou por evidenciar de forma embaraçosa a condição social da maioria dos artífices brasileiros, que por serem escravizados, descendentes livres de escravizados, ou filhos ilegítimos de europeus, seguiriam sendo excluídos do circuito de formação e promoção social.

Porto Alegre era de ideias políticas liberais moderadas e favorável à abolição gradual da escravidão dos africanos, como ele próprio escreveu em texto de 1868. No entanto, como destaca  Letícia Squeff, a posição do pintor brasileiro, resultava puramente tática ao reforçar, de fato, a afirmação a figura do artista nos moldes europeus, formado pela Academia Imperial de Belas Artes, em detrimento da função de promoção social que poderia ser desempenhada pela sua proposta educacional. De fato, o modelo econômico herdado pelo Império Brasileiro, privilegiava a grande propriedade fundiária e a monocultura para a exportação, baseada na exploração da mão de obra escrava. Nestas condições, um real desenvolvimento industrial que estimulasse a formação de quadros qualificados provenientes dos artífices afro-brasileiros oriundos do sistema colonial, por meio do ensino, era uma perspectiva impraticável. Porto Alegre logo teve que perceber, a suas próprias custas, a rua sem saída em que havia entrado. Ele identificava o progresso com a racionalidade científica europeia, mas o progresso para ser tal, não poderia deixar de envolver a totalidade do corpo social, sob pena de transformar numa ficção o próprio pressuposto do regime liberal.

No quadro do projeto de reforma educacional promovido pelo ministério de Luiz Pedreira de Couto Ferraz em 1855, Porto Alegre, então diretor da Academia Imperial, tentou sem muito sucesso, implementar um plano didático que contemplasse também uma formação técnica.   Também o Liceu de Artes e Ofícios, criado significativamente no ano sucessivo, por iniciativa da Sociedade Propagadora de Belas Artes, cujo diretor era o arquiteto Bithencourt da Silva, acabou sendo dirigido a um público de artífices pobres  brancos,  imigrantes e filhos de imigrantes, marginalizando, de fato, o elemento africano que, formava a maioria da classe trabalhadora, mas era em grandíssima parte ainda escravizado. Nem a situação mudaria substancialmente depois da abolição da escravatura em 1889, ou com a instauração da República, quando seria adotada, com poucas exceções, uma política racista ainda mais forte, ainda que não declaradamente, em detrimento da formação de uma classe trabalhadora afro-brasileira.

Frente a este contradição básica, Porto Alegre preferiu fechar os olhos. A criação da Escola Fluminense resultaria então em mais um artifício retórico do historiador, ao fim de inserir o Brasil numa história universal da civilização, identificada com a racionalidade ocidental.

A “Memória sobre a Escola Fluminense” tornar-se-ia então o prelúdio da criação de uma coleção intitulada de “Escola Brasileira”, a partir da exposição acadêmica de 1879, organizada pelo, secretario da instituição, Maximiano Mafra, também aluno de Porto Alegre. Aquela galeria, ao identificar tout court a história da pintura brasileira com a lição dos mestres da Missão Francesa,  excluiria todos aqueles artífices negros e pardos, cujas mãos, ora acorrentadas, ora livres, haviam erguido os monumentos históricos do Rio de Janeiro colonial.

A esta operação arbitrária reagiu a publicação em 1884 do volume “A Arte Brasileira” de Gonzaga Duque Estrada, na qual o maior crítico de arte da sua época, então com menos de vinte anos, negava a existência de uma suposta escola brasileira, e até de uma cultura nacional. É interessante que antes de morrer, na tentativa de revisar a primeira versão da sua obra, em vista de uma edição atualizada e definitiva, Gonzaga Duque voltasse a pesquisar os artistas da época colonial no Rio de Janeiro, compreendendo talvez o significado e as ambiguidades do esforço  inicial realizado por Araújo Porto Alegre com as suas biografias.

Há outros raros, mas importantes exemplos de biografias de artistas no Brasil. Já em 1821, o padre Diogo Feijó, futuro regente do império, havia escrito a primeira oração fúnebre em homenagem a um artista afro-brasileiro, o Padre Jesuíno do Monte Carmelo, exaltando o significado civil da sua atuação como músico, pintor e arquiteto para a cidade de Itu, em São Paulo. O texto, foi republicado por Mário De Andrade, na sua monografia sobre o religioso paulista publicada em 1945, que se baseia, em ampla parte sobre um relato escrito pelo próprio Jesuíno antes da morte em 1819, e seria, portanto, o primeiro texto memorialístico de autoria de um artista brasileiro.

A figura do artista herói também é inaugurada pela biografia de um artista mestiço, com a Vida de Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, escrita por Rodrigo Ferreira Bretas em 1858, em resposta a uma solicitação do próprio Manuel Araújo Porto Alegre como secretário do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Nela o biógrafo mineiro faz amplo uso de tópoi extraídos das biografias de Vasari, em particular a de Michelangelo, e da caracterização do gênio deforme e amaldiçoado, inspirado nos escritos dos românticos franceses, particularmente de Victor Hugo.  Estes apontamentos bastam para indicar quanto caminho ainda resta para examinar com profundidade, a partir dessas premissas, o complexo significado da biografia dos artistas no Brasil, numa perspectiva comparativa com outros contextos latino-americanos.

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Retrato de Manuel Araújo Porto Alegre, de Ferdinand Krumholz (1848)

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