Na narrativa do livro sagrado maia-quiché Popol Vuh as divindades criaram os primeiros seres humanos a partir da madeira, mas estes não se lembravam de seus criadores, nem possuíam alma. Foram então destruídos pelos deuses descontentes, que tentaram aperfeiçoar o mundo em consecutivas criações. Assim, foram criados os seres humanos, a Terra, e tudo que há nela, fruto de várias cosmogonias exitosas e fracassadas. As identidades sociais ameríndias, como os mitos, as cerimônias, a ancestralidade baseiam-se em corpos que são fabricados, sendo instáveis e em constante transformação.
Numa segunda passagem do Popol Vuh, os seres humanos pristinos, feitos de madeira, por não pensar e faltar-lhes o discernimento, maltrataram outros animais e seres inanimados. Revoltados com o desprezo dos humanos, os objetos e as pedras se vingaram atirando-se contra eles.
O conto ilustra bem o conceito de multi-naturalismo ou perspectivismo formulado pelo antropólogo brasileiro Eduardo Viveiros de Castro. Neste tipo de pensamento, o mundo é habitado por diferentes espécies de sujeitos ou pessoas, humanas e não humanas que o apreendem segundo pontos de vista distintos. Os corpos dos seres são fluidos, dependendo da agência a que estão submetidos, sendo eles pessoas, animais, seres sobrenaturais ou coisas. É por isso que as pedras e panelas, também dotadas de consciência, reivindicaram seus direitos à vida, ameaçadas pelos humanos feitos de madeira. Estes seres são, dessa forma, iguais aos humanos.
Todas as coisas estão enredadas, no sentido de que os seres humanos cada vez mais dependem das suas criações materiais, fazendo com que haja uma relação de simbiose entre todos os componentes envolvidos, isto é. pessoas e objetos, atuando socialmente uns com os outros.
Vários artefatos da Coleção Pré-Colombiana Cerqueira Leite possuem como protagonistas seres não-humanos, em especial animais e espíritos. No caso dos animais, seus corpos dão vida e explicam a função dos artefatos, como é o caso do apito da cultura Nopiloa, do México, em forma de felino, ou o apito figurando uma coruja, animal associados ao mundo celestial entre os Maias. Outros exemplos são o coati com as patas encostadas na mandíbula que emerge do lindo vaso da cultura Nicoya da Costarica, e o belo vaso trípode da cultura Chiriqui do Panamá, figurando seres que possuem tanto uma cabeça humana quanto de uma ave (pelicano) de acordo com o ângulo de observação; o mesmo ocorrendo nos trípodes em que se destacam uma figura humana com toucado, um urubu-rei e um crocodilo.
Chamam a atenção, ainda, a ocarina da cultura Bahia figurada num corpo humano com adornos; os felinos nos vasos Marajoara, o vaso Nasca em forma de pássaro, os vários animais representados nos vasos Chimu, cultura do litoral norte do atual Peru, como os camelídeos e as cenas de animais possivelmente caçados; o vaso escultórico que figura um lobo-marinho mesclado com um felino; os muiraquitãs, confeccionados em pedra verde em forma de sapos, procedentes da região amazônica do Tapajós, e o conjunto de fragmentos Konduri procedentes da área dos rios Trombetas e Nhamundã, nos quais se destacam as figuras dos urubus-rei.
Os seres sobrenaturais ou espíritos, por sua vez, sobressaem na iconografia Mochica, no Peru, como é o caso das vasilhas com alça estribo ricamente pintadas. Um exemplo são as cenas chamadas tinku em que seres sobrenaturais portadores de facas sacrificiais intermediam as relações entre os diferentes mundos da cosmologia daquele povo. Ou ainda a presença de uma divindade em meio a conchas e ao sacrifício de uma mulher na composição iconográfica de uma cerimônia de enterro. A divindade Ai Apaec é representada nestes vasos, ora com seu característico cinturão ornado de cabeças de serpentes, sobre um peixe antropomorfo, ora com toucados zoomorfos e sustentando tumis, a faca sacrificial, sobre as cabeças. Cabe mencionar, ainda, o vaso globular Nasca com dois gargalos conectados por uma alça em que foi pintado o “Ser mítico antropomorfo”, uma criatura sobrenatural de corpo serpentiforme...
Uma vez que todos os seres, vivos e inanimados, se distinguem apenas por seus corpos, pelos diferentes tipos de roupa que usam visíveis apenas aos olhos da própria espécie, espíritos, mortos e xamãs assumem formas de animais, bichos viram outros bichos, humanos são inadvertidamente mudados em animais. Artífice e revelador destas metamorfoses é, sobretudo, o xamã. Ao se desprender de seus corpos e ultrapassar essa barreira material, eles realizam aquilo que Reichel-Dolmatoff chamou de “voo xamânico”, o desprendimento do espírito do corpo humano. Assim, animais são seus mensageiros, como é o caso das aves a exemplo do urubu-rei na iconografia dos vasos de Santarém.
Eis alguns belos exemplos da representação desse fenômeno na Coleção Pré-Colombiana Cerqueira Leite. O primeiro é uma estatueta mesoamericana da cultura de Tumbas de Tiro, na região de Colima, México. O personagem, ricamente ataviado portando colar, braceletes e adornos discoides nas pernas, tem um forte atributo xamânico: uma máscara crocodiliana arrematada por um penacho tubular que remete a plumas. O crocodilo, animal importante na cosmologia da Mesoamérica, é o mensageiro xamã que, ao mesmo tempo em que vai ao Céu para gerar os trovões e relâmpagos, através de sua boca leva os espíritos ao Inframundo, reino dos mortos e ancestrais, para serem aconselhados pelos deuses. Não à toa que é pela boca que se vê o xamã em metamorfose, oculto sob a máscara do animal. Este é um xamã cósmico, que voa, viaja; seus braços estão em movimento, está o personagem em êxtase corporal. É muito provável que ele esteja sob o uso de alucinógenos.
O segundo exemplo vem da cultura Jama-Coaque, no Equador. A estatueta também evidencia um personagem ricamente ornamentado, com seus adornos auriculares em forma de peixe e narigueira, provavelmente de ouro. Uma flauta sustentada pelo personagem sugere que se trate de um xamã. Os instrumentos musicais, capazes de produzir som, induzem a sensações especiais que alteram o estado da consciência. Considerados “xamãs de luz” por Gutiérrez Usillos, estas estatuetas figuram xamãs que utilizam a música para se comunicar com o Sol, divindade suprema, a fim de se ter êxito nas colheitas e se completar o ciclo agrícola. Nesse sentido, o tempo cosmológico se enreda com o tempo humano, juntos embalados pela sonoridade musical numa única narrativa.
Devido à importância deste tema na Coleção Pré-Colombiana Cerqueira Leite, citam-se mais dois exemplos. Os primeiros são da série xamãs de chuva, ainda na cultura Jama-Coaque, em que personagens de alto status social, adornados com colares, labretes, narigueiras e túnicas decoradas com motivos em forma de conchas, estão sentados ora em tubérculos, ora em bancos com o objetivo de invocar a chuva. Bancos são um artefato de poder na América Pré-Colombiana, inclusive na Amazônia, em que poderosos xamãs estão sentados neles, como é o caso das figuras de Santarém e de Maracá. E, por fim, uma xamã sorridente da cultura Remojadas, na Mesoamérica, que usa um vestido com temas cosmológicos referentes à deusa da água e da fertilidade Chalchihuitlicue.
Observe-se que todos estes personagens apresentam movimentos corporais, o xamanismo é, portanto, o mundo da transformação, da metamorfose, do movimento. Tempo-narrativa-música, um contexto profícuo para o voo xamânico. Não se pode esquecer de que os artefatos também possuem vida, e, portanto, são mediadores de ação social; apesar da materialidade, são sujeitos, pessoas, portanto, cheios de intencionalidades. O xamanismo é, portanto, um portal que liga o mundo visível e o invisível. São estas as histórias que os xamãs querem nos contar.
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Nesse contexto, o corpo é a forma visual de se construir a identidade. A Coleção Cerqueira Leite apresenta um exemplar que explica bem essa relação. Trata-se de um cetro da cultura Chavin de Huantar, no Peru, possivelmente confeccionado numa presa de animal marinho, em que é figurado um ser antropomorfo com pelagem de jaguar (Figura 9). O felino é um animal associado ao poder real no mundo ameríndio. O personagem está sentado em um banco que, por sua vez, pousa sobre um jaguar agachado. Entre as pernas da figura descansa uma máscara, também de felino. Há uma troca de peles entre os personagens do cetro, uma metamorfose indicando que o humano possivelmente é um xamã. Na origem do poder que o jaguar engendra, é necessário lembrar que a relação entre seres humanos e felinos é a de predação, da caça e do caçador, Na simbiose entre animal e ser humano um apreende do outro a partir de suas perspectivas...
..Por fim, essa rápida digressão leva a uma reflexão. O xamanismo, escolhido como fio-condutor desse texto, continua sendo uma prática cultural viva entre os povos indígenas de todas as regiões da América. No entanto, é inconteste que todos os países das Américas, sobretudo o Brasil, que detém a maior parte da vida animal, vegetal e mineral da Amazônia, tenham a obrigação de fomentar políticas públicas para a proteção da vida indígena, de seus coletivos, a sustentação da biodiversidade, a continuação das pesquisas científicas e da vida de todos nós. O que está em jogo são a memória, a história e a ancestralidade dos povos originários, que, por sua vez, são as de nós mesmos, e que devem ser sanadas agora, pois como bem destacou o escritor Daniel Munduruku, “o único tempo que temos é o tempo presente”.
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