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História do ensino do desenho no Brasil
O aprendizado feminino do século XVIII ao Império
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por Renato Palumbo Dória
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Cada cultura tem suas próprias concepções e práticas do desenho. Os povos indígenas do território brasileiro as revelam em seus trançados, cerâmicas, utensílios de caça, organização de habitações e aldeias, pinturas e enfeites corporais, e mesmo na apresentação de seus alimentos. Concepções e usos que expressam distintas cosmogonias e percepções de mundo.
Também possuíam seus próprios saberes do desenho as populações da diáspora africana que, escravizadas no período colonial, foram forçadas a vir para o Brasil. Saberes antigos e ancestrais, cuja enorme potência sempre soube encontrar meios de manifestar-se, apesar da violenta e sistemática repressão que buscou invisibilizar as matrizes africanas do país — o que em certa medida explica a urgência com que a arte contemporânea busca, em sintonia com os necessários processos de descolonização cultural, reparar a impagável dívida para com estes povos e culturas, continuamente esmagados, ao longo de séculos, pelos dentes das engrenagens coloniais.
O próprio sistema artístico institucional brasileiro fez parte de tais mecanismos, propagando concepções de desenho que, ainda que se apresentassem como sendo universais (e mesmo atemporais), eram, de fato, históricas e etnocêntricas, impondo como ideais estéticos, em geral, os referenciais visuais da antiguidade clássica, grega e romana — sendo o próprio acesso a estes conhecimentos sistematizados pela irradiação das academias europeias um privilégio social.
No Brasil independente, à semelhança da Europa, o aprendizado do desenho formou parte da formação da aristocracia a partir do exemplo dos filhos do imperador Dom Pedro I: as princesas Januária e Francisca de Bragança, e o futuro imperador Pedro II. Todos eles receberam aulas de variados artistas profissionais, entre os quais Félix-Émile Taunay, e desde cedo se exercitaram constantemente no desenho, como atesta uma carta de 1831, escrita pela Camareira-mor Mariana Carlota de Verna Magalhães Coutinho, que ocupou um significativo papel afetivo na vida das crianças, depois da morte da mãe, a imperatriz Maria Leopoldina, em 1826. Enviada a Pedro I, que partira para Portugal, essa carta informava-lhe que seus filhos estavam bem de saúde e progrediam nos estudos, inclusive em algumas novas disciplinas que tinham se iniciado, todos eles já “fazendo seus desenhos”. Alguns “acabados agora mesmo” seguiam como recordação.
Essa formação sistemática, se não tinha como objetivo fazer deles profissionais das artes, permitiu-lhes que alcançassem um elevado nível de domínio da prática, como comprovam os inúmeros desenhos realizados, sobretudo, pelas irmãs Januária e Francisca ao longo da vida, muitos deles conservados no Museu Imperial de Petrópolis. Em época anterior à proliferação e popularização da imagem impressa e fotográfica, os desenhos formavam parte de sofisticadas dinâmicas de sociabilidade, sendo presenteados e trocados como manifestação de afeto e apreço entre os membros de um mesmo círculo familiar e social, e zelosamente guardados em álbuns domésticos, marcando, por vezes, datas e eventos especiais — como é o caso de um desenho realizado pela princesa Januária e presenteado à sua irmã na data em que esta partia para a França, como esposa do príncipe de Joinville, conforme a anotação manuscrita que o acompanha: “Dada a Joinville pela mana Januária no dia da despedida, 12 de maio de 1843”.
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A tradição da aprendizagem e prática do desenho por parte das mulheres da família Bragança prosseguirá nas gerações seguintes, como demonstram os desenhos da princesa Isabel Christina, filha de Pedro II, também nos acervos do Museu Imperial de Petrópolis.
Há outros significativos registros de práticas de aprendizagem do desenho por parte de mulheres no Brasil do século XIX. Um desses é um álbum hoje conservado no Museu Paulista da Universidade de São Paulo, organizado em 1841 por Miguelzinho Dutra, artista e professor ativo em Itu. No álbum encontramos não apenas desenhos realizados pelo próprio Dutra, a partir da cópia de estampas e da observação direta da natureza, mas também um interessante ensaio feito, segundo a inscrição que o acompanha, pela “Senhora Maria Augusta da Costa Carvalho, tendo um mês de lição”. O documento evidencia a adoção do desenho como parte da educação das mulheres da elite num centro cultural importante do interior paulista, que havia sido teatro da atividade artística do Padre Jesuíno do Monte Carmelo e seus filhos, e, mais tarde, se tornaria um dos berços do movimento republicano no estado.
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Ao longo do século XIX, com a crescente escolarização de todos os tipos de conhecimentos, também o ensino do desenho passa a ser atravessado por outros atores sociais, adotando novos objetivos, modelos, métodos e práticas.
Foi só recentemente, porém, que, retornando ao material reunido durante as minhas pesquisas sobre estas questões, percebi o significado e valor de alguns documentos que fotografei no acervo iconográfico da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro e ficaram guardados, durante quase vinte anos, em meus arquivos: tratava-se de alguns belos desenhos, reunidos em um pequeno álbum de estudos datado de 1757. Segundo notas manuscritas que os acompanham, foram realizados por uma tal Catharina Maria do Espírito Santo, então com apenas 17 anos de idade. Feitos a sanguínea, um tipo de giz de cor avermelhada, ligavam-se estes desenhos ao repertório visual do barroco romano que, graças ao desenvolvimento das técnicas de reprodução da imagem, circulava intensamente entre diferentes regiões do mundo e espaços de aprendizagem, através de álbuns de estampas e livros, oferecendo modelos variados para os exercícios de artistas e estudantes.
Neste álbum há desenhos representando Atlas (figura da mitologia grega condenada a sustentar indefinidamente os céus, reconhecível pelo corpo musculoso e retorcido sob a pressão de um peso incomensurável); e algumas bem cuidadas figuras alegóricas, com sugestivas personificações da Sabedoria e da Paz, e uma simpática representação da Verdade: uma figura feminina seminua e faceira que, sentada em uma espécie de púlpito ou capitel, segura um livro aberto em uma mão e gesticula com a outra, como quem anuncia algo essencial, portando ainda, ao centro de sua testa, uma espécie de diadema solar.
A escolha destes temas, por parte de Catharina Maria do Espírito Santo, evidentemente merece análises mais aprofundadas, relacionando-se à questão da formação profissional das mulheres artistas e da representação feminina na história da arte e da cultura.
Destaca-se ainda, neste conjunto, um retrato da Arquiduquesa Maria Teresa da Áustria que nos parece muito significativo. Bisavó da princesa Maria Leopoldina (e, portanto, tataravó de Pedro II, Januária e Francisca), Maria Teresa da Áustria foi educada por jesuítas e, também, teria recebido alguma formação em desenho. Primeira mulher a subir ao trono imperial, começaria a reinar efetivamente em 1740 e se tornaria, então, uma das mais poderosas e temidas soberanas de sua época, governando durante quarenta anos grande parte da Europa.
O desenho realizado por Catharina Maria do Espírito Santo parece diretamente baseado em um retrato de Maria Teresa a pastel realizado, em 1730, pela pintora veneziana Rosalba Carriera (1673-1757), uma das primeiras artistas profissionais a obter na Europa, ainda em vida, enorme sucesso e reconhecimento, influenciando o estilo da época como um dos maiores nomes do rococó, e que faleceu em 1757 — o mesmo ano, portanto, em que Catharina Maria do Espírito Santo organizou seu álbum de desenhos.
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Estes desenhos, apenas por terem sido realizados por uma jovem do século XVIII, e encontrarem-se hoje conservados no Brasil, já nos trazem algo de muito especial, vista a extrema dificuldade de acesso a este gênero de prática e formação artística, naquela época, por parte das mulheres. Permanecem muitas dúvidas, de qualquer modo, de como Catharina Maria do Espírito Santo teria se iniciado às artes do desenho, e se recebeu ou não algum tipo de aula ou orientação por parte de algum artista profissional. Novas pesquisas, porém, nos permitiram ao menos identificar o conjunto de estampas que muito provavelmente lhe serviu de modelo para seus desenhos de personificações femininas. Trata-se de uma coletânea de gravuras figurando as virtudes realizadas a partir de desenhos do pintor italiano Giovanni Lanfranco, publicada em Roma no século XVII, e dedicada a Francesco Piccolomini, que se tornaria em 1649, General da Companhia de Jesus. O álbum trazia outras representações femininas que iam da Caridade à Misericórdia, da Serenidade à Pureza — sendo o procedimento da cópia de estampas, neste contexto estético e cultural específico, central para a aprendizagem do desenho: copiava-se, sobretudo, para se aprender.
Além deste universo de imagens, por si muito sugestivo, há também, no caderno de Catharina Maria do Espírito Santo, uma anotação manuscrita que merece atenção. Ela declara que os desenhos ali contidos haviam sido feitos de posse apenas de uma “leve notícia” da arte do desenho, e que por isso ela desejava, ao organizar e tornar visíveis seus esforços artísticos, receber algum tipo de avaliação e crítica de qualquer professor que, mesmo censurando-os, se animasse em examinar seus estudos apenas porque sempre “quisera ser ouvida”.
Não sabemos ainda, infelizmente, se os evidentes talentos artísticos de Catharina Maria do Espírito Santo tiveram algum aproveitamento posterior, ainda que ela tivesse acesso a técnicas e práticas culturais então restritas ao âmbito masculino. Seja como for, e mesmo considerando a importância de outras matrizes estéticas e culturais brasileiras; através das quais milhares de mulheres e homens anônimos fizeram e ainda fazem sua arte; os desenhos de Catharina Maria do Espírito Santo talvez sejam os únicos do tipo, realizados por uma mulher do século XVIII, hoje conservados no Brasil, o que nos sugere que ainda há muito a ser descoberto e aprendido nos acervos e coleções brasileiras, nunca sendo tarde para tentarmos compreender e valorizar o que está perto e diante de nós (sejam estes documentos, pessoas ou experiências) — lição que vale para a história, e também para a própria vida.
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