Por que a beleza importa? (Parte I)

O Estado da Arte retorna das merecidas férias de seus colunistas e editores com um dossiê especial. 

O Estado da Arte retorna das merecidas férias de seus colunistas e editores com um dossiê especial.

“Por que a beleza importa?” – a pergunta, em aparência simples, assume duas asserções que estão longe de passar incontestes. A primeira é a de que há tal coisa como a Beleza, essa que foi um dos alvos preferenciais da crítica à metafísica no século XX. A segunda é a de que, em a Beleza existindo, ela importa, uma suposição de importância que linhagens de artistas e de críticos não cansaram de denunciar como acadêmica ou alienante.

Nada disso impediu que o filósofo britânico Roger Scruton nomeasse provocativamente o documentário por ele apresentado na BBC Why Beauty Matters. Neste, a partir de Platão e de Shaftesbury, Scruton defende a Beleza como afirmação de um sentido para a existência, suplemento ou sucedâneo à religião. Entre 24 e 28 de novembro de 2016, foi organizado pelo Prof. Rodrigo de Lemos (também colaborador deste Estado da Arte), na Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA), o colóquio “Por que a Beleza importa? Arte e Beleza segundo Roger Scruton”, ao qual especialistas em literatura, filosofia, história, arte e arquitetura foram convidados a discutir as ideias de Scruton a partir de seus campos de expertise.

Neste primeiro texto do dossiê Por que a Beleza importa? Arte e Beleza segundo Roger Scruton”, decorrente do colóquio homônimo, a nova colunista do Estado da Arte Laura Ferrazza (UFRGS), historiadora que mergulhou nos arquivos do Louvre para sua tese sobre a pintura francesa do século XVIII, fala-nos da relação das ideias de Scruton com esse período de transição na história da arte, em que a Beleza pictórica deixa pouco a pouco o cânone clássico e, levada pela sensibilidade e pelo colorismo, anuncia desenvolvimentos que o século XIX saberá explorar em suas correntes mais inovadoras.

A MELANCOLIA DA BELEZA NA ARTE DO SÉCULO XVIII

por Laura Ferraza

Na década de 1980, o Museu do Palácio de Charlottemburg em Berlim decidiu desfazer-se do quadro O Embarque para Citera, de Antoine Watteau (1684 – 1721). A pintura representa um grupo de casais, usando trajes de peregrinos inspirados em figurinos teatrais; em um cenário idílico, eles rumam ao barco que os levará a Citera, a Ilha do Amor, onde, segundo a mitologia grega, Afrodite aportou logo após nascer da espuma do mar. A intenção filistina do Museu desencadeou a fúria de vários intelectuais berlinenses, que convocaram o sociólogo da cultura Norbert Elias para fazer uma conferência em defesa do quadro. Detalhe: Elias tinha mais de oitenta anos e possuía apenas trinta por cento da visão. Contudo, cada detalhe do quadro estava gravado em sua mente, por conta das inúmeras visitas que ele fizera ao Museu para contemplar a obra de Watteau. Puxando apenas pela memória, diante de toda a comissão do museu, em frente ao quadro que não podia mais ver, Elias proferiu uma conferência antológica, que convenceu a direção a manter o quadro onde estava. A conferência originou o ensaio A Peregrinação de Watteau para a Ilha do Amor.

O Embarque para Citera, de Antoine Watteau

Para entender a importância da bela e melancólica obra que encantava Norbert Elias, é preciso retornar à época em que foi produzida. A virada entre os séculos XVII e XVIII foi marcada por uma importante contenda intelectual, cujo apelido, mais tarde, serviria de inspiração a um poema de Baudelaire: a “Querela entre Antigos e Modernos”. A facção conhecida como “os Antigos” acreditava em cânones permanentes de gosto e execução artística; esses parâmetros teriam valor universal, circunscrevendo o belo em todos os lugares e todas as épocas. Exatamente por isso, os Antigos não viam a mudança com bons olhos; a única variação possível seria entre o bom e o mau gosto; o bom, por si mesmo, seria imutável. Também acreditavam na existência de um “ponto de perfeição” na arte, píncaro que, como o nome do grupo sugeria, só fora atingido na Antiguidade. A facção oposta, a dos Modernos, via a Arte como algo aberto e mutante, sem um ponto fixo no passado: suas transformações dependeriam do gosto de várias épocas e lugares, sendo, portanto, potencialmente infinitas. Para os Antigos, a razão deveria ser o único meio válido para definir o belo. Para os Modernos, o que baliza a compreensão da arte é a experiência sensível. Em uma coisa, contudo, Antigos e Modernos concordavam: a beleza – seja ela uma manifestação da racionalidade humana ou um camaleão eternamente variável – é o grande antídoto de que dispomos contra o caos e o sofrimento inerentes à existência humana. Essa concepção da arte como redenção e transcendência não está circunscrita a um único período histórico: ela norteia, por exemplo, as reflexões do inglês Roger Scruton, um dos principais filósofos da atualidade, autor de Beleza: uma introdução e diversas obras sobre estética e moral. As ideias defendidas hoje por Scruton bebem frequentemente nos escritos de um pensador contemporâneo à Querela dos Antigos e dos Modernos: Anthony Ashley Cooper, Conde de Shaftesbury (1671-1713). Devemos ao Conde a noção – mais tarde, bastante disseminada – de que a beleza pode exercer o papel de substituto da religião. A contemplação da beleza, para ele, seria um dos pilares na formação moral do caráter humano: o perfeito cavalheiro é um crítico de arte. E é desse novo culto à beleza – um culto que não está ligado à fé, mas ao prazer – que se inspira a arte francesa do setecentos.

A grande Querela não acabou em um empate, mas na vitória dos Modernos, que triunfaram ainda no início do século XVIII (mas os Antigos voltariam à carga após a Revolução Francesa). O espírito hedonista da facção difundiu-se na arte da época; um exemplo nítido dessa transformação é a troca de temas religiosos por episódios mitológicos ou por temas cotidianos. A mitologia greco-romana já fora utilizada na Renascença e por pintores do século XVII como Poussin; no XVIII, contudo, ela surge com novas roupagens: o que se admirava no paganismo eram, principalmente, os episódios de luxúria, deleite e sedução, guloseimas apreciadas pela sociedade do período. O tema pagão servia como uma forma de escapismo e já não se irmanava a assuntos sisudos como o governo ou a guerra. Ninfas, faunos e semideuses estão ali para agradar e ser agradáveis, criando um mundo ideal onde as pessoas gostariam de mergulhar e flanar. Contudo, esse desejo de dissipação, por si mesmo, instila nas pinturas do período um ar de melancolia: se desejamos nos afastar da realidade, trocando-a por um universo inacessível, perdido nas brumas do mito, é porque esta realidade não nos basta. Assim, se a arte do XVIII parece apelar ao sabor das superfícies lépidas, ela não deixa de ser profunda, cumprindo a função que Roger Scruton atribui à Beleza: transcender as dores do mundo, colocando-nos em contato com um outro modo de existência, que não poderia ser acessado ou conhecido de outra maneira.

Antoine Watteau foi um dos artistas que melhor expressaram as transformações da arte nessa época. Em suas telas, ele criou um lugar de sonhos – mas esse espaço onírico era habitado por personagens reais da sociedade e do mundo que ele conheceu. O Embarque para Citera (1718), de que falamos no início do texto, é  uma versão posterior do quadro Peregrinação para Citera, realizado em 1717 e apresentado por Watteau para a admissão na Real Academia de Artes. O tema de ambas as pinturas é idêntico, havendo entre elas algumas pequenas variações. As duas telas encarnavam um ideal perseguido pela sociedade do período: desejava-se, de fato, viver em um mundo semelhante aos quadros de Watteau. Tanto que, ainda na época, foi cunhada uma expressão para designar esse tipo de obra: eram chamadas de fêtes galantes. É difícil precisar o que elas eram, mas podemos dizer que são pinturas, gravuras ou desenhos retratando reuniões festivas, em geral, ao ar livre. Os personagens eram jovens elegantemente bucólicos, vestidos de pastores, pastoras, peregrinos ou outros tipos teatrais, divertindo-se em meio a música, dança e cantos. Embora essas obras representem uma fuga ao mundo real, elas não se limitam ao ideal de uma vida idílica, frugal e contemplativa. Trata-se, na essência, da busca de um ideal arcádico que relaciona a natureza com a civilização, a beleza com a espiritualidade, e a sensualidade com a inteligência. As fêtes galantes estão marcadas pela tensão entre o desejo e a galanteria. Mais do que expressar o amor e o desejo carnal dentro de uma ordem codificada, Watteau os faz sublimar os próprios limites, flertando com a melancolia. Em suas fêtes galantes descreve, com moderação e sensibilidade, todas as etapas do amor, suas hesitações, seus progressos e suas decepções. A ambiguidade, que caracteriza gestos e expressões, e a poesia delicada a impregnar os quadros são a fonte do charme das figuras criadas por ele.

Existe uma diferença entre a expressão de um prazer sensível e sensorial, que encontramos na arte do século XVIII, e o culto da vulgaridade com o simples objetivo de chocar, que Scruton tanto abomina na arte contemporânea. As figuras que seduziram Norbert Elias, de tal forma que, mesmo na cegueira, continuaram a acompanhá-lo, parecem reais e dotadas de desejo carnal, mas sem apelarem de forma explícita aos sentidos: elas os cercam, os provocam. A sensualidade é equilibrada por uma aura de melancolia. A sedução se dá através da sutileza dos gestos. Algo talvez surpreendente para nós, que vivemos num mundo em que os corpos, os desejos e os sentimentos são banalizados e descartáveis. Mas quem sabe possamos ainda parar para contemplar a beleza do inexplicável.

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