por Renato Araújo da Silva
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Este texto apresenta algumas reflexões sobre a atribuição de valor econômico e estético, para alguns tipos de objetos, que motiva sua elaboração criativa, e formas diversas de colecionismo e preservação. Os exemplos aqui tratados, conservados na Coleção Ivani e Jorge Yunes de São Paulo, pertencem à produção de sociedades, estabelecidas nos territórios da atual República Democrática do Congo e da Nigéria, durante o final do século 19 e no século 20 — entretanto, as conclusões alcançadas poderiam ser estendidas talvez a um amplo número de outras civilizações, também de outras épocas, no mundo afora.
As joias e armas aqui reunidas, por ter um valor material intrínseco, facilitaram seu uso como “dinheiro tradicional” ou “moeda corrente”. As joias de grande peso, chamadas “pulseiras ou tornozeleiras de aparato”, ou as espadas cerimoniais eram utilizadas apenas em momentos muito especiais em que o usuário, geralmente um rei, rainha, chefe ou alguém ligado à realeza ou sacerdócio, vinha paramentado com seus objetos de prestígio...
O peso e o tamanho de muitas dessas joias podem causar estranheza para quem não conheça sua função econômica que extrapola a de ostentação. As joias, assim como toda gama de manufaturas em ferro e em outras ligas metálicas, são em si mesmas uma rica reserva de metal, portanto, de valor futuro, onde peso e tamanho fazem a diferença.
Não é raro que os grafismos e os ornamentos dispostos, sobretudo, nas joias apresentem motivos florais e geométricos que possam ser avaliados do ponto de vista estritamente artístico. Entretanto, ainda que essas decorações procurassem exprimir alguns atributos estilísticos locais, pertencentes a um universo estético peculiar, suas características materiais e estéticas também podiam ser componentes importantes do seu valor econômico enquanto meio de troca. Portanto, podem ser objeto de análises nos campos da história, economia, antropologia, etnologia quanto também da estética e história da arte africana, de modo autônomo.
As armas tradicionais se inserem nesse contexto. Um exemplo são as chamadas facas de arremesso, peças utilizadas há longo tempo por diversos povos da África Central, especialmente os bakuba, os mangbetu e os azande, todos atualmente residentes no território da República Democrática do Congo. Eram geralmente fundidas numa liga metálica contendo quantidades irregulares de cobre, estanho ou mesmo zinco ou chumbo.
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A arte do metal africana é antiquíssima. Dentro dos exemplares mais antigos de fundição na África subsaariana, há artefatos de cobre que datam desde quatro mil anos antes de Cristo, encontrados na antiga Núbia. Os viajantes Europeus, narcisicamente iludidos com sua superioridade tecnológica, ficaram pasmados diante das sofisticadas e complexas técnicas metalúrgicas africanas. Ainda mais quando se confirmou que estas tiveram um desenvolvimento autóctone num continente considerado como incivilizado e primitivo, na base dos preconceitos cunhados pela máquina de dominação colonial europeia, ainda hoje profundamente arraigados nas errôneas visões que se têm sobre a África.
Dentre os objetos que possuíam valor de troca, aqueles produzidos em metal tinham um destaque especial, dado que o controle técnico de sua manufatura ficava restrito a determinados centros de produção. Seja nas relações matrimoniais ou na solução de pendências de ordem financeira, seja nas relações comerciais propriamente ditas, essas peças, na medida em que eram difundidas por meio das trocas, eram o instrumento para o estabelecimento de relações diplomáticas e sofisticadas alianças sociais.
As joias e as armas, juntamente com os implementos agrícolas eram um dos mais valiosos objetos classificados como “moeda tradicional”. Sua função econômica, facilitou a preservação dessas peças junto às suas funções básicas de ornamentação, proteção, aparato, entre outras.
Em tese, no campo dos estudos de cultura material da África, as joias não são propriamente classificadas como moeda tradicional. Porém, virtualmente, todas as joias podem vir a ser utilizadas como moeda de troca ou um objeto de valor passível de se tornar moeda corrente. Sua função é sempre múltipla e jamais é possível incluir um objeto etnológico de tão diversos significados numa única categoria de classificação. Além disso, sua característica funcional não limita sua função decorativa e vice-versa. Igualmente, do ponto de vista econômico, a joalheria pode ser vista de forma ambígua como um modo de estocar e de exibir riquezas. Do ponto de vista social, o prestígio é sua base, identificado tanto pelo valor material quanto pela beleza dos artefatos. E a distinção de status provinda deles cria modelos formais específicos que ganham espaço e significação social prontamente identificável pelos membros do grupo. Já do ponto de vista cultural, um amplo conjunto de atividades torna ainda mais complexas as classificações desses objetos, pois determinadas joias são escolhidas para servirem como forma de amuletos na proteção religiosa ou contra doenças, outras como dote, como aparato de prestígio, ainda outras com possível função estritamente ornamental ou como um mero objeto de valor sem uso corporal etc.
Mais uma função ou característica às vezes negligenciada pelos pesquisadores é a força mnemônica dos objetos monetários. Tanto as moedas tradicionais propriamente ditas, quanto as joias-moedas, quando depositadas nos tesouros familiares principalmente se forem as mais antigas, ganham estima e gozam de status familiar expressivo. Por exemplo, em se tratando de moeda de dote de uma antepassada, uma joia de família, as peças tendem a ser preservadas e rememoradas, muitas vezes compondo até a parafernália de objetos do culto ancestral, forma básica da religiosidade tradicional. Analogamente, as armas depositadas nos tesouros e utilizadas em histórico de bravura familiar possuem limitada força corrente e por isso, tendem a permanecer no seio familiar por muito tempo, ganhando força mnemônica e servindo assim, formalmente, como um eventual modelo para produção de novos objetos correlacionados.
Sendo datadas, no âmbito das ciências históricas, as joias e as armas tiveram o seu valor de uso e seu valor de troca convertidos em valor museológico. Hoje, o mercado de arte define o valor das moedas tradicionais africanas, tal como os governos, os mercados e os bancos centrais definem imperativamente a taxa de câmbio ou de juros da moeda corrente. Outrora, eram o valor material e a convenção entre indivíduos que definiam quais objetos seriam ou não apreciados e ainda quais seriam suas equivalências em termos de valores. Juntamente com os outros objetos que serviram de troca nas relações comerciais, as joias e as armas circularam no continente africano antes e durante a implantação do sistema monetário ao longo do período colonial e naquele imediatamente subsequente. Na medida em que os europeus modificavam as estruturas econômicas nativas africanas, eles também cuidavam para extinguir o valor de troca do que se convencionou chamar de “dinheiro primitivo”, suprimindo com isso uma série de valores culturais.
O dinheiro tradicional, durante o relativo sucesso na aceitação das moedas cunhadas pelas administrações coloniais, sofreu depreciação constante, a ponto de ser quase que totalmente substituído no período que precedeu as lutas pela emancipação dos países africanos e a descolonização política, em meados do séc. XX. Ainda assim, a dificultosa transição da economia doméstica de autossubsistência e ainda das relações de comércio exterior (seja pelo modelo de mercado de tipo árabe, seja pelo modelo europeu dos primeiros contatos) para a economia de mercado propriamente dita (com o papel moeda e a centralização monetária dos bancos) demonstra que houve resistência da cultura e do dinheiro tradicionais contra essas modificações impostas de fora.
O aparecimento da moeda fiduciária, os títulos não lastreados a quaisquer metais e sem valor intrínseco, não tornou a “paleomoeda”, isto é, a moeda tradicional, imediatamente obsoleta. Seu valor intrínseco permitiu o atravessamento histórico e, portanto, independentemente dos modelos político-econômicos desenvolvidos regionalmente, a “paleomoeda” teve sempre algum tipo de valor de troca implícito, a despeito de sua depreciação dentro do sistema capitalista. Os africanos, acostumados milenarmente à troca concreta de valores por valores, produtos por produtos, frequentemente desconfiavam do dinheiro abstrato imposto pelos europeus, cujo valor era cunhado no metal ou desenhado num papel com um número. Era lhes difícil compreender porque impingir ali um número e não outro, já que, nesse novo sistema econômico o valor real do metal (ou do papel) passava a ser irrelevante do ponto de vista das trocas monetárias. O que passava a ter importância era um valor abstrato e aparentemente estabelecido de modo arbitrário por uma autoridade estrangeira, invasora e que desprezava os modelos do mutualismo e reciprocidade outrora vigentes na maioria das sociedades africanas tradicionais. Desta forma, toda esfera de valores se esvai na moeda e com ela o seu sentido outrora sagrado.
Espanta ainda o quanto essas revoluções foram recentes no continente africano. A estabilidade da circulação da moeda cunhada nos anos de 1960 e 1970 em praticamente todos os estados da África independente demarcou o primeiro corte vertical em direção à desmaterialização do dinheiro. Na mesma época o mundo capitalista ingressava na era do dinheiro imaterial dos bits e bytes, hoje das criptomoedas digitais. Que semelhantes espécies de mutações culturais aparentemente irreversíveis, advindas desses tipos de inovações impostas pelo sistema financeiro e vivenciadas quase que simultaneamente em economias capitalistas e não capitalistas, poderíamos ainda aguardar?
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