Como comemoração dos 150 anos da imigração italiana no Brasil, resolvemos visitar Renato Brunello (nascido em Veneza em 1953), um dos escultores mais festejados da atualidade (45 exposições no Brasil e no exterior e mais de 50 obras em locais públicos), em sua casa e ateliê em Cotia, onde reside desde a década de 1980.
Brunello inaugura sua mostra Transmutação e Metáforas do Inconsciente na galeria Arte 132, no bairro paulistano de Moema, aberta até 6 de outubro de 2024, com obras tridimensionais em madeira, mármore, bronze e ferro em que “o elemento abstrato evoca o figurativo”, como diz a curadora Laura Rago, recriando flora, fauna e ambiências do Brasil e do mundo a partir de seu imaginário.
Chegado a São Paulo em 1975, Renato Brunello — com sua pasta de desenhos, fotos de esculturas e lista de prêmios recebidos na Itália após seu curso na Escola de Artes e Ofícios de Veneza — visita uma série de galerias, mas a resposta é sempre a mesma: “já temos nossa própria equipe completa”. Até que é “descoberto” por Pietro Maria Bardi que, de imediato, quer uma de suas obras para a galeria Mirante das Artes e lhe encomenda uma estátua do padre Albino, a ser inaugurada em Catanduva, em cerimônia oficial. O caminho estava aberto.
Diante da admirável multidão de formas e materiais recriados em suas obras, logo surge a urgência de uma série de perguntas que formulamos nessa visita/entrevista no lugar de trabalho do artista, que começa com a entrada na sala dos instrumentos, com a abertura do armário das goivas, instrumentos fundamentais para seus trabalhos em madeira, desde a garapeira usada na construção civil, passando pelo cedro, maçaranduba, itaúba, pau ferro… até a mais sofisticada imbuia patinada de que é feito seu totem pessoal, “Ogum, Meu Ogum”.
Passamos, depois, à sala das maquetes, onde estão as miniaturas em vários materiais, incluindo o poliuretano expandido que substituiu a argila e o gesso, das obras realizadas ou em processamento, como a da escultura em aço e cimento a ser colocada no jardim de um prédio na rua Joaquim Floriano.
Como inicia seu processo de criação? Começamos perguntando ao artista. “O impulso vem da observação e da intuição, mais do que da razão” — diz ele. “Visão do que está a meu redor, coisas da natureza e da vida em si, silhuetas humanas mudadas de forma orgânica, não pré-determinada, com uma abstração sutil, no sentido expressivo de volumes em equilíbrio entre forma e contexto, entre sentimento e força expressiva. Anoto logo, a lápis, a caneta, onde estiver.”
“A arte, para mim” — continua ele — “é a liberdade de poder criar o imaginário do meu inconsciente, liberdade essa vivida de forma intuitiva e sensorial. Me oriento muito pela inteligência intuitiva, sou mais um autodidata, um solitário, embora desde cedo tenha conhecido os grandes mestres, no decorrer do meu fazer: Brancusi, Jean Arp, Emilio Vedova, Modigliani… e, entre os brasileiros, Brecheret em sua fase abstrata e, principalmente, o Aleijadinho, que me lembrou El Greco e que considero um grande escultor, também quase meio abstrato.”
“A escultura foi como que minha predestinação. Acredito que é isso mesmo. Com a massa de pão da padaria de meus pais eu fazia as primeiras formas, muito curiosas, de pãezinhos, que — depois de assados — eram comidos com meus amigos, como brincadeira de criança.”
“Devo muito a meu professor de Artes, no ginásio, que nos ensinava as técnicas da cópia do objeto e depois nos deixava livres para interpretá-lo. E à Escola de Artes e Ofícios de Veneza, que formava a base dos grandes artistas artesões, ensinando, já profissionalmente, as técnicas das artes gráficas, do afresco, da escultura em madeira, pedra, metal etc. O conhecimento da técnica era o primeiro passo.”
“Lembro que para ganhar algum dinheiro assimilei rapidamente o procedimento das lápides e das esculturas para cemitérios. E que, para vir ao Brasil (15/8/1975), realizei o encosto para braços (cabeça de leão) em madeira, para 500 poltronas.”
“No Brasil [movido por uma ligação sentimental], senti que havia espaço para sonhar e para realizar ao menos uma parte do meu sonho e, tal como uma planta que se transplanta, finquei minhas raízes aqui. Eu não gosto muito de intelectualizar: vou do rastro dos movimentos à forma, que me aparece quando não penso em nada, apenas observo. O sonho me fornece flashes e, às vezes, soluções técnicas, ou as próprias formas. Eu absorvo, anoto, sou um processador”.
A essa altura passamos para o ateliê propriamente dito: um verdadeiro mar onde navegam obras de todos os tipos. Ficamos intrigados por uma escultura que representa uma língua para fora em diferentes materiais e tamanhos. “Na época da pandemia — explica o autor — quando havia gente morrendo entre fatalidade e jogos de interesse, eu imaginei essa língua para fora não como provocação, mas como grito, eu me insurgi contra isso.”
E agora, quanto a seus últimos trabalhos? — perguntamos. “Bem, além desse Equilíbrio dos Opostos que foi apresentado no último Simpósio Internacional de Escultura em Mármore na cidade de Rijad, e que, acabo de ser informado, vai ser transferido para o acervo pessoal do rei da Arábia Saudita” – responde o artista.
“E além da obra da Rua Joaquim Floriano, com o título de ‘Guardião’, acabei de realizar em madeira esta Homenagem a Antonio Vivaldi (ele nos mostra a escultura ao som das Quatro estações, admirável exemplo de interpenetração das Artes), com seus equilíbrios e suas harmonias que a música inspirou, que quero ver se incluem na mostra de 10 de agosto, junto com Gufo rosa, Pipistrello, Concha, Boca da Verdade, Contorção, Ponto e contraponto e mais de uma quinzena de outras obras a serem expostas.”
A visita termina na sala do artista, em frente a um enorme quadro amarelo, que cobre parte da parede, onde entram desenhos do artista, transpostos em forma digital por meio do computador, fotos de obras e composições tratadas graficamente com cores, mas essa é uma outra história… para uma outra comemoração.