por Isabelle Anchieta de Melo
“Profundo desgosto de mim mesma. Odeio tudo o que faço, digo e escrevo. Eu me detesto porque não consegui legitimar nenhuma de minhas esperanças. Eu me enganei”. Quando li esse trecho do diário da pintora e escritora russa Marie Bashkirtseff, escrito em 21 de setembro de 1877, fiquei uns dias impactada. Não sabia se com a lucidez cortante com que avaliava a si mesma ou com o ódio desferido ao seu reflexo nesse espelho perigosamente quebrado.
Desde então, tenho me perguntado em que medida essa defasagem com aquilo que um dia sonhamos ser e o que nos tornamos pode ser creditado somente a uma falência pessoal? Teria a sociedade e a forma como nos relacionamos uns com os outros, algum papel nesse modo de nos avaliarmos? Em outro dizer, em que medida nossos sentimentos pessoais são também socialmente conformados?
Na imagem a mulher é absorvida pela escuridão. Mimetiza-se com ela, como quem quer desintegrar-se, apagar-se nesse espaço silencioso, vazio e sem cores. Uma luz difusa e acinzentada que atravessa o voil nos dá a ver a mesa e alguns papéis. Não sabemos se ela acaba de ler uma má notícia ou se está em uma pausa de reflexão angustiada após escrever umas linhas. No gesto desesperado ela sustenta com as mãos o rosto e o esconde. Esse elemento visual central de nossa identidade social, onde orbita a possibilidade de sermos (ou não) um em interação. Ela agora não é ninguém. O avesso da selfie: a negação de si mesma.
O quadro é também de Marie Bashkirtseff. Uma mulher descrita como detentora de uma “promissora carreira de pintora, escultora e escritora, interrompida precocemente pela tuberculose, doença que lhe tirou a vida aos 24 anos”[1]. Diria que a “interrupção” de sua carreira se dá antes mesmo da doença. Havia, por assim dizer, uma ‘doença social’ para as mulheres que queriam mais do que maternidade e o matrimônio no século XIX. Uma impossibilidade em um período repleto de contradições. Momento em que se esboçam parciais possibilidades de liberdade individual, amalgamadas com moralidades e tradições ainda persistentes que limitavam a atuação feminina, tema de que trato em meu segundo livro da coleção Imagens da Mulher no Ocidente Moderno (Edusp) [2]. A pintora era, ela mesmo, uma personagem desencaixada. “Bashkirtseff escrevia nos jornais feministas, defendendo a insubmissão da mulher e rejeitando normas sociais, como o casamento. Em seu diário, expressou as angústias e as contradições impostas às artistas que buscavam se afirmar pelo talento em um ambiente dominado por homens”.[3]
Mas será esse um mal social das mulheres? Creio que não. Quando li a biografia de Mozart, escrita por meu sociólogo preferido, Norbert Elias, me dei conta que essa frustração consigo mesmo pode acontecer até mesmo com homens aparentemente muito bem-sucedidos. Em um belo trecho, o sociólogo oferece uma chave de compreensão de que nunca me esquecerei. Copio:
“Para se compreender alguém, é preciso conhecer seus anseios primordiais que este deseja satisfazer. A vida faz sentido ou não para as pessoas, dependendo da medida em que elas conseguem realizar tais aspirações. Mas os anseios não estão definidos antes de todas as experiências. Desde os primeiros anos de vida, os desejos vão evoluindo, através do convívio com outras pessoas, e vão sendo definidos, gradualmente, ao longo dos anos, na forma definida pelo curso da vida; algumas vezes, porém isso ocorre de repente, associado a uma experiência especialmente grave. Sem dúvida alguma, é comum não ter consciência do papel dominante e determinante destes desejos. E nem sempre cabe à pessoa decidir se seus desejos serão satisfeitos, ou até que ponto o serão, já que eles sempre estão dirigidos para outros, para o meio social. Quase todos têm desejos claros, passíveis de ser satisfeitos; quase todos tem alguns desejos mais profundos impossíveis de serem satisfeitos. No caso de Mozart, também esses últimos desejos podem ser percebidos, e são responsáveis, em grande medida, pelo curso trágico de sua vida”.[4]
Notas:
[1] História das Mulheres/ Histórias Feministas, MASP, 2019, P. 54
[2] A trilogia Imagens da Mulher no Ocidente Moderno (Edusp), de minha autoria, será lançada em São Paulo, no dia 05 de dezembro, na Livraria da Vila, Lorena, às 18h30, com a presença das convidadas: Mônica Waldvogel, Lilia Schwarcz e Maria Arminda do Nascimento Arruda.
[3] Idem
[4] Norbert Elias, Mozart: sociologia de um Gênio, Zahar, 1995