Tarsila popular

O retorno às questões propostas por Tarsila do Amaral, na sua obra, se atualiza diante do olhar sobre ela. Tarsila popular, num ensaio de Michele Petry.

por Michele Petry

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Há três anos, no dia 28 de julho de 2019, encerrava a exposição Tarsila Popular no Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand (Masp), com a curadoria de Adriano Pedrosa e de Fernando Oliva, seguindo as exposições Tarsila Viajante, com a curadoria de Regina Teixeira de Barros, na Pinacoteca do Estado de São Paulo (Pina), em 2008, e, Inventing Modern Art in Brazil, com a curadoria de Stephanie D’Alessandro e de Luis Pérez-Oramas, no Art Institute of Chicago, em 2017, e no The Museum of Modern Art (MoMA), em 2018. Primeira mostra no Brasil dedicada à Tarsila do Amaral (1886-1973) após um intervalo de dez anos, Tarsila Popular realizou a importante tarefa de reunir e apresentar ao público, em solo brasileiro, parte da obra da artista, ao mesmo tempo em que trouxe novas possibilidades de interpretação por meio, particularmente, da sua expografia.

A montagem de A Negra (1923) entre Auto-retrato (Manteau rouge) (1923) e Auto-retrato I (1924) no painel principal da sala de entrada (Figura 1), e do Retrato de Oswald de Andrade (1923) e do Retrato de Mário de Andrade (1922) na mesma sala, mas em um painel lateral, colocou destaque nas figuras femininas, alinhando a exposição a um eixo temático do museu para aquele ano — o de Histórias das mulheres, histórias feministas. Ainda que pese a distinção entre os apagamentos e os silêncios na história sobre essas duas mulheres, lado a lado, elas expõem feridas da sociedade moderna e colonial, permitindo refletir sobre o lugar que ocupam na vida e na arte.

Tarsila do Amaral, geralmente à margem das narrativas sobre a arte moderna brasileira que enfatizam a atuação de Oswald de Andrade (1890-1954) pelo seu projeto intelectual e pela sua presença na vida da artista, surge reposicionada em relação a ele. É assim que os seus desenhos para as ilustrações de “Pau-Brasil” (1925) são apresentados na segunda sala, num painel individual que deixa ver essa produção de desenhos em diálogo com as suas pinturas da década de 1920 e de 1950. Lagoa Santa (1925), Paisagem com ponte (1931), O Mamoeiro (1925), Pescador (c. 1925), Paisagem com touro I (c. 1925), Palmeiras (1925); Morro da Favela (1924), Carnaval em Madureira (1924); E.F.C.B. (1924), A Gare [1925]; São Paulo (1924); Fazenda (1950) e Porto I (1953) evocam o tema da natureza em contraste com o da modernização e permitem ver uma expansão do que seria a “fase pau-brasil”, rompendo a cronologia linear para a obra da artista.

Os desenhos, por exemplo, marcam todo o período de produção da artista, e no Catálogo Raisonné Tarsila do Amaral (2008) constam 1313 deles. Se os desenhos não estão presentes em todas as salas da exposição, sendo exceções as salas de número três e cinco, eles estão dispostos em número quase igual ao de pinturas, totalizando 40 em um conjunto de aproximadamente 90 obras, evidenciados em painéis individuais que assinalam a especificidade da linguagem e conferem a eles a importância que têm na produção da artista. Aparecem organizados tematicamente em torno da obra A Negra (1923), com A Primeira Negra (1923), A Negra I (1923) e A Negra III (1923) (Figura 2); das cenas de cidades, especialmente as da viagem a Minas Gerais, em 1924, como Tiradentes (2ª versão) (1924) — que não está reproduzida no catálogo da exposição; das paisagens antropofágicas ou com bichos, a exemplo de Paisagem com bicho antropofágico III (c. 1930), desenho colorido com lápis e pastel sobre papel, e Arraial com boi e porquinhos II (1924), feito à nanquim; além das já mencionadas paisagens “pau-brasil”.

Compreender a obra de Tarsila do Amaral a partir dos trabalhos com o tema de certa brasilidade ou o da sua formação inicial, como Estudo (Academia nº 2) (1923), O modelo (1923), Estudo (Nu — figura dos quadris para cima) (1922), são dois caminhos abertos pela exposição a partir da primeira sala. Isso também é possível em relação às obras ditas marginais ou consagradas, caso de Costureiras (1936/1950) ou Abaporu (1928), uma escolha que pode ser feita a partir da quarta sala. Já o encerramento do percurso se dá onde ele se inicia, o que também coloca a necessidade de realizá-lo por duas vezes, possibilitando o retorno do olhar para as obras. Esse retorno reforça os dois elementos apresentados aqui sobre a contribuição da exposição: a possibilidade de olhar para as obras em solo brasileiro, juntas; a possibilidade de suscitar outras narrativas sobre elas.

A temática do retorno também é fundamental para entender o conjunto de obras exposto e a produção de Tarsila do Amaral. Em A Cuca [1924], O Sapo (1928) e O Touro (1928), o retorno de questões caras a artista está sinalizado, como os temas da infância dos quais nunca se desvencilhou (AMARAL, 2003) e que não cessam de se repetir nas suas obras. Exemplo disso é a pintura Batizado de Macunaíma (1956), exposta na mesma sala das referidas obras, na qual nota-se a presença dos bichos tarsilianos. Olhar pela primeira vez ou rever a obra de Tarsila do Amaral sob esse aspecto significa compreender a sua produção de forma interligada, a despeito de fases, e a própria exposição a partir do que ela pretende ser, uma oportunidade de encontro com a obra da artista e de revisão da sua fortuna crítica.

Também o retorno às questões propostas por Tarsila do Amaral, na sua obra, se atualiza diante do olhar sobre ela. Ao receber, entre 05 de abril e 28 de julho de 2019 o total de 402.850 visitantes (Masp, 2019), a exposição Tarsila Popular permite que, de fato, a obra de Tarsila do Amaral seja vista e interpretada por cada um desses visitantes, ampliando os olhares e as versões de narrativas em igual número..

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