Em geral a ciência avança como se resolvesse enigmas: a solução existe, os dados estão lá, basta encaixá-los, como um quebra-cabeças. Considere a evolução. A humanidade teve de esperar até Darwin para a teoria da seleção natural. Mas uma vez de posse dela, pode explicar perfeitamente como cada espécie surge e porque é como é: um organismo gera diversos descendentes, os mais adaptados ao ambiente vivem mais e geram mais descendentes, os menos adaptados geram menos e desaparecem.
Mas ao menos três fenômenos cruciais nos desafiam não como um enigma, e sim como um mistério: quanto mais dados juntamos, quanto mais respostas encontramos, mais questões surgem. Um desses mistérios é a origem do universo; outro, é a origem de uma criatura, o ser humano, capaz de compreender e transformar esse universo – ou ao menos tentar. E entre um e outro há o mistério da origem da vida.
Não sabemos ao certo sequer o que estamos buscando. O que é, afinal, a vida? Os cientistas já nomearam cerca de 1,8 milhão de espécies, mas estimam que haja 1 trilhão, e elas representam menos de 1% de todas que já existiram. Estudiosos já listaram mais de 100 características da vida. Ao menos duas parecem literalmente vitais: a reprodução e o metabolismo. Mas mesmo nelas há exceções. Cristais se replicam, mulas não. Até a morte é incerta: há bactérias que permanecem inertes por milhares de anos e depois, por assim dizer, “ressuscitam”. Parafraseando o que Santo Agostinho dizia sobre o tempo, “Se ninguém me pergunta o que é a vida, eu sei o que é. Se tento explicá-la a quem me pergunta, não sei”.
Abstraindo as exceções, seres vivos se reproduzem; para se reproduzir, crescer e se mover, alteram elementos químicos que geram energia; e, para isso, precisam de um corpo a um tempo impermeável para bloquear substâncias nocivas e permeável para absorver as úteis e expelir os restos. Para alguns, a síntese dessas características é tão improvável, que é como esperar montar um quebra-cabeças chacoalhando suas peças. Para outros, dadas as condições ambientais e os elementos certos, o surgimento da vida é uma necessidade natural. Mas eles não estão nem perto de explicar como funções tão complexas e interdependentes emergem simultaneamente. Milagre ou necessidade, a origem da vida continua a quebrar cabeças.
Convidados
Amâncio Friaça: professor de astronomia da Universidade de São Paulo;
Jorge Ernesto Horvath: professor de astrobiologia da Universidade de São Paulo;
Miriam Forancelli Pacheco: professora de paleontologia da Universidade Federal de São Carlos
Referências
- Breve História de Quase Tudo (A Short History of Nearly Everything), de Bill Bryson.
- O Quinto Milagre (The 5th Miracle: The Search for the Origin and Meaning of Life), de Paul Davies.
- Criação: A Origem da Vida / O Futuro da Vida, de Adam Rutherford.
- The History of Life – A Very Short Introduction, de M.J. Benton.
- “Life in the Universe”, de Stephen Hawking.
- The Mystery of Life’s Origin, de C.B. Thaxton, W.L. Bradley e R.L. Olsen.
- Origins of Life, de Freeman Dyson.
- Origins and Evolution of Life. An Astrobiological Perspective, Ed. por M. Gargaud, P. López-Garcia, H. Martin.
- “The Origins of Life”, entrevista com Richard Dawkins, Charles Simonyi e Richard Corfield para o programa In Our Time, da Radio BBC 4.
- Spontaneous Generation and the Origin of Life. John S. Wilkins.The Talk. Origins Archive.
- Genesis: The Scientific Quest for Life’s Origin, de R.M. Hazen.