por João Cortese
De um lado para o outro, uma formiga carrega, com energia proporcionalmente sobre-humana, um peso superior a 50 vezes o seu próprio. Mas para onde e por que andam as formigas?
Um labirinto pode ter diversas formas: a Biblioteca de Babel, de J. L. Borges, por exemplo, é composta por “um número indefinido, e talvez infinito de galerias hexagonais”. Também formigas podem ser colocadas para andar sobre um labirinto – finito – de hexágonos: tal é o experimento principal do doutorado de Marcelo Arruda, no Laboratório de Ciência da Cognição do Departamento de Fisiologia do Instituto de Biologia da USP.
Pesquisas sobre comportamento animal começaram com “labirintos” aquáticos de forma circular, nos quais observa-se o deslocamento de ratos. Para formigas, entretanto, não se trata do melhor modelo. Com uma disposição de 13 caixas hexagonais digna de lembrar um símbolo medieval, o propósito de Arruda é o de compreender melhor como as formigas determinam a sua rota – coletiva – rumo ao alimento: estão elas aptas a mudar de caminho caso uma melhor rota seja aberta? Qual é o modo pelo qual isso é feito? Como este caminho ótimo pode ser conservado? Estas são algumas das perguntas colocadas por sua pesquisa.
Problemas de otimização de caminho, cabe lembrar, são também importantes para outro tipo de deslocamentos: o dos homens. Relacionado a eles, encontramos o célebre Problema do Caixeiro Viajante: dada uma lista de cidades a serem visitadas, qual é o menor caminho para fazê-lo retornando ao mesmo ponto do início? Antes de desprezar o problema ligando o GPS do seu celular, cabe lembrar que este determina o menor caminho para uma rota – imagine que em longas férias você quisesse visitar vinte amigos por todo o território nacional: a coisa muda de figura. A dificuldade matemática de tal problema combinatório é saber qual a ordem de complexidade de seu cálculo (para os interessados: trata-se do problema P vs NP).
Pois bem: formigas parecem poder resolver tal problema, escolhendo caminhos ótimos. Segundo propôs um artigo de 1996, Colônias de formigas para o problema do caixeiro viajante, uma colônia artificial de formigas é capaz de fazê-lo. Ainda que o resultado, como é muitas vezes o caso na ciência de ponta, seja discutível, uma coisa é certa: a orientação espacial das formigas é digna de admiração.
A orientação espacial de animais – inclusive a dos humanos, segundo alguns – pode ser classificada em dois tipos principais.
O primeiro são as representações coletivas, que remetem àquilo que pode ser considerado um superorganismo. No caso das formigas, a estratégia de seu coletivo aproxima-se daquela das migalhas de João e Maria. Elas marcam as trilhas utilizadas com feromônios – substâncias de estímulo específicas à espécie, e que servem para o reconhecimento de um caminho, dando uma pista direcional que funciona por meio de um feedback positivo. A formiga deve confirmar as trilhas já estabelecidas – feromônios, assim como migalhas, não são eternos, e devem ser renovados. Cabe mencionar, além disso, que outros aspectos do ambiente, como a luz (inclusive luz polarizada), a orientação de campos magnéticos, e pistas visuais têm também um papel relevante para que as formigas se situem no espaço.
O segundo tipo de orientação vem das representações individuais do espaço. No caso das formigas, dois grupos de teorias rivalizam para explicá-las.
O primeiro grupo crê que a orientação das formigas é “vetorial”, sendo guardada por uma sequência de movimentações. Digamos que você deixou seu carro em um grande estacionamento – provavelmente você não se lembra exatamente “onde” está o veículo quando pensa diretamente sobre isso, mas sabe fazer o caminho de volta invertendo a rota percorrida anteriormente – andar até o fundo, virar à direita depois de uma coluna, à esquerda depois do elevador, no caminho inverso da sua ida.
O segundo grupo de teóricos acredita que a representação espacial de uma formiga é “absoluta”, no sentido que ela teria um mapa – e que caso jogada para outra posição, ela poderia se reorientar (pense no seu aplicativo de trânsito voltando à ativa depois de dez minutos sem sinal GPS).
A questão que aparece então é: como detectar qual dessas duas orientações possuem as formigas?
Um modelo interessante de estudo em ratos foi proposto por John O’Keefe, pesquisador da University College de Londres. Tendo como um dos pontos de partida o artigo de 1948 de Edward Tolman, “Mapas cognitivos em ratos e em homens”, O’Keefe publicou em 1978 um livro intitulado O hipocampo como um mapa cognitivo.
Estudando a movimentação de ratos e os sinais elétricos presentes em seu hipocampo (por falar de localização, o hipocampo está no centro do cérebro), O’Keefe descobriu que determinadas células do hipocampo de um rato eram ativadas única e exclusivamente quando o animal estava em um local específico. Quando saia deste local, estas células passavam à inatividade, enquanto outras células, correspondentes à nova localização, eram ativadas. Isto quer dizer que, de uma certa maneira, as células do hipocampo são capazes de criar uma representação do espaço, criando um certo mapa.
Aí estaria um “mapa cognitivo”, no qual encontramos o que O’Keefe chamou “células de lugar” – a descoberta lhe rendeu o prêmio Nobel de medicina em 2014, ao lado do casal May-Britt e Edvard Moser. Ratos teriam, assim uma orientação “absoluta” do espaço, por meio de “mapas”. Para variar, o assunto não está fechado – há quem argumente, diz Arruda, que a otimização de um caminho não implica a existência de um mapa cognitivo, e a representação cognitiva ainda guarda surpresas a serem exploradas.
O fato é que a formiga anda, e anda de maneira determinada. O mundo empresarial se vale frequentemente da imagem das formigas em palestras motivacionais. Lembremo-nos do desenho Vida de inseto, que trazia a frase: juntos, mesmo os menores podem conquistar o maior dos objetivos.
De fato, a formiga é frequentemente sinônimo do trabalho, da persistência e do esforço coletivo. Não custa lembrar a fábula de La Fontaine que tornou o inseto ainda mais célebre, por meio de sua relação com a cigarra (retomando Esopo). Quando a cigarra clama à formiga que lhe empreste algo para sobreviver até a próxima estação, a formiga, cujo “menor defeito” é o de ser aquela “que nada empresta”, pergunta à cigarra: “que fazias durante o verão?”, esta diz simplesmente: “eu cantava”. O juízo da formiga é tão duro quanto o trabalho do qual ela tirou suas provisões: “Cantavas? Pois bem, agora dança!”.
Mas tudo isso que a formiga acumula, para qual propósito o faz? É ela uma self-made ant com uma finalidade em vistas?
Bacon considerou a posição da formiga como menos ideal:
Aqueles que lidaram com as ciências, ou foram empiristas ou dogmáticos. Os empiristas, à maneira das formigas, só coletam e usam; os racionalistas, à maneira das aranhas, de si mesmo extraem o que lhes serve para a teia. A abelha, no entanto, tem uma posição intermediária: coleta seu material das flores do jardim e do campo, mas o transforma e o digere por uma faculdade própria. (Novum Organum, I, 95)
Assim também, diz Bacon, é o verdadeiro ofício da filosofia, que deve aliar o poder da razão àquele dos experimentos. Filosofia à parte, seria Bacon justo com a formiga? Seria esta uma “acumuladora”, no sentido moderno do termo – aquele do sujeito que tem num quarto todas as edições do Estado de São Paulo desde 1875?
Cabe lembrar em primeiro lugar que se a formiga não tem uma “arte”, como a abelha, ela se sai muito bem em outras atividades, semelhantes a dois importantes ofícios humanos: a agricultura e a pecuária.
Por mais que a grande folha nas costas da formiga impressione, ela não serve de jantar nem a ela nem a seus filhotes. No caso das saúvas (e das formigas cortadeiras em geral), as folhas servem para alimentar o fungo, que é cultivado pelas formigas no interior do formigueiro, sendo posteriormente a fonte de alimentação destas. Tal “plantação” é tão importante que quando uma rainha inicia um novo formigueiro, a primeira coisa que ela coloca aí é um pedaço do fungo de sua antiga colônia.
Mas as formigas não fazem simplesmente plantar: elas também cuidam de animais. Espécies das subfamílias Formicinae e Dolichoderinae, por exemplo, cultivam em seu formigueiro pulgões, animais menores que elas e que servirão igualmente à sua alimentação, secretando uma solução açucarada (proveniente da seiva que o pulgão suga da planta), que é coletada pelas formigas.
O coletivo das formigas apresenta, além disso, uma enorme diversidade de atividades. No caso das saúvas, além das tarefas reprodutivas, realizadas unicamente pela rainha (a única que põe ovos) e os machos, há tarefas de manutenção da colônia. Entre estas, cabe mencionar a organização do local onde é armazenado o “lixo” da colônia, a implementação dos fragmentos de folhas no jardim de fungo e o cuidado com as formas imaturas (ovos, larvas e pupas).
O fascínio aumenta com a organização entre essas diferentes funções das formigas, criando um coletivo que é muitas vezes comparado ele mesmo a um organismo: tal fenômeno foi chamado de Swarm intelligence (numa tradução livre, “inteligência de enxame”).
No entanto, ressalta Arruda, a divisão do trabalho não é assim tão absoluta numa colônia – fora a atividade da rainha, grande parte das funções é flexível. A formiga trabalha, afinal, como uma boa operária, mas não apenas como aquela de uma linha de produção: ela tem versatilidade. Assim, a quantidade de formigas que realiza um certo tipo de tarefa numa colônia pode flutuar de acordo com a demanda, fazendo com que o ajuste da divisão do trabalho seja dinâmico.
O cenário é ainda mais fascinante se pensarmos que as formigas se distribuem na execução das tarefas sem um comando central. Sendo assim, não há uma ou mais formigas que se ocupem em determinar o papel de outras. Ao invés disso, por meio das interações locais entre os indivíduos, elas se alocam de forma a ajustar o desempenho das tarefas às suas demandas.
Também é assim para seus caminhos: ao perguntar para onde vão as formigas, Arruda lembra que o interessante em seus percursos é que não se trata apenas de uma questão de achar o menor caminho. Algumas vezes o caminho de menor esforço não será necessariamente o que apresenta a menor distância.
Vale ressaltar que a formiga explora novos caminhos, mesmo que o menor já esteja estabelecido. Mesmo que ela já tenha encontrado comida, ela não para por aí. Uma explicação pela seleção natural é que o caminho mínimo não é necessariamente o do menor esforço, e, portanto, cabe continuar buscando um outro. O poeta, porém, talvez dissesse: ao explorar, a formiga erra, assim como fez Dante em sua selva escura.
Uma das maiores mudanças na história da biologia, poderíamos arriscar, é o abandono das explicações teleológicas – isto é, dizer que um ser vivo realiza tal ação com uma certa finalidade. Dizer que um gene sofreu para adaptar-se é geralmente considerado uma imprecisão: ele teria, ao sofrer variação aleatória, sido selecionado ao longo de gerações. Talvez haja, então, repreensão à pergunta “para que a formiga anda?” Terminemos, ao invés disso, com a pergunta colocada àquele que – talvez – seja nosso animal mais conhecido:
Não é de fato extraordinário ver que, desde o tempo em que o homem anda, ninguém tenha perguntado por que ele anda, como ele anda, se ele anda, se ele pode andar melhor, o que ele faz andando, se não haveria meio de impor, mudar ou analisar seu andar: questões ligadas a todos os sistemas filosóficos, psicológicos e políticos dos quais se ocupou o mundo? (Honoré de Balzac, Théorie de la démarche)
Confira também
Vídeo sobre o comportamento das saúvas (desenvolvidos por Joana Fava Alves no Laboratório de Ecofisiologia do Departamento de Fisiologia do IB-USP em 2008): Primeira parte e Segunda parte
Apresentações TED de Deborah Gordon, pesquisadora do comportamento de formigas em Stanford: aqui e aqui.
Considerações sobre a “anternet”, por Deborah Gordon e Balaji Prabhakar.