Entre a ciência e a arte: conheça a condessa Greffulhe, aristocrata que foi elo entre Broglie, Curie e Proust

Condessa que brilhou nos salões parisienses foi arrebatada por descobertas científicas de sua época e teve, segundo relatos, significativa importância na criação do Institut du Radium.

O conhecedor da história da física ficará em dúvida: esse Broglie se refere ao príncipe e Prêmio Nobel Louis de Broglie, ou ao seu irmão Maurice, também físico? Esse Curie refere-se a quem? Pierre Curie, sua esposa Marie Curie, ou suas filhas Éve e Iréne? O leitor com amplo espectro cultural talvez saiba quem é a condessa Greffulhe, nascida Marie-Joséphine-Anatole-Louise-Élisabeth de Riquet de Caraman-Chimay, que emprestou parte da sua persona para Marcel Proust compor a duquesa de Guermantes, a esfuziante personagem de sua obra Em busca do tempo perdido. O que talvez poucos saibam é que a condessa era tia dos irmãos Broglie. E mais, até mesmo entre os conhecedores da história da física, poucos saberão que a condessa Greffulhe teve papel importante no mecenato das artes e das ciências, destacando-se entre os cientistas protegidos, Édouard Branly e o casal Marie e Pierre Curie. Sendo assim, podemos apresentar a condessa Greffulhe sob o foco de três personas: a aristocrática proustiana, a protetora das artes e a protetora das ciências.

Um leitor curioso poderia questionar se eu tenho esse amplo espectro cultural que me permitiria saber que a condessa Greffulhe era uma das musas de Proust. Respondo prontamente: não tenho. Já tentei partir em busca do tempo perdido, mas confesso ter sido incapaz de vencer o famoso obstáculo das cem primeiras páginas anunciado por Umberto Eco (não lembro mais onde li que Eco teria dito que escreve para os leitores que conseguem ultrapassar as primeiras cem páginas da sua obra). A duquesa de Guermantes só aparece na página 221 de No caminho de Swann, o primeiro volume da obra de Proust. Foi Pauline de Broglie, a condessa de Pange, irmã do príncipe Louis de Broglie, quem me apresentou a condessa Greffulhe. Em seu livro Comment j’ai vu 1900, Pauline menciona várias vezes sua bela tia, a condessa Greffulhe. Uma rápida pesquisa me levou ao maravilhoso livro de Laure Hillerin, La comtesse Greffulhe: L’ombre des Guermantes1.

O que resta desse enredo é a história que contarei a seguir.

Como acabei de confessar, é limitada minha capacidade para mergulhar no amplo e complexo universo proustiano, assim como nos cenários artísticos de Richard Wagner e de Serge de Diaghilev. Todavia, por uma questão de completeza, seguirei os passos de Laure Hillerin para não deixar em brancas nuvens o universo aristocrático da condessa Greffulhe, o ambiente político e cultural que a circundava e de como ela saiu do seu mundo aristocrático para o universo proustiano2. Depois dessa incursão superficial, mergulharei em mares onde tenho fôlego para ir mais a fundo.

Condessa Greffulhe (1860-1952). Fotografia de Paul Nadar em 1895.

A condessa Greffulhe, da aristocracia para o universo proustiano

A linhagem materna da condessa Greffulhe chega ao icônico d’Artagnan, o quarto mosqueteiro, personagem de Alexandre Dumas. Por outro lado, sua família paterna, Riquet de Caraman, une-se à família de Broglie por meio do casamento de Jean Mathias de Riquet (1638-1714) e Marie Madeleine de Broglie (1675-1699). 

Nascida em 1860, Élisabeth teve notável participação na vida social e cultural de Paris durante sua Belle Époque. Sua família era aristocrática, mas não tão rica quanto a do conde Henry Greffulhe, com quem se casou aos 18 anos de idade, onze anos mais nova que o marido. Seria melhor dizer que as famílias arranjaram o casamento ou, de modo mais ácido, dizer que sua família lhe “vendeu”. Na sequência de um casamento sem amor, uma vida conjugal infeliz, convivendo com incontáveis amantes de seu marido, todas atraídas pela fortuna daquele herdeiro sem qualquer atrativo físico e intelectual, para quem Élisabeth era apenas um troféu de primeira classe, ela teve um único amante: o belo italiano Don Roffredo Caetani, príncipe de Bassiano.

Quando Élisabeth e Henry se casaram, em 25 de setembro de 1878, eles foram morar no Hôtel particulier3 adquirido pelo conde Greffulhe em 1871, o ano de nascimento de Proust. A luxuosa habitação ficava no número 8 da rue d’Astorg, no ainda hoje charmoso 8º. distrito de Paris. Ficava a um quilômetro do número 48 da rua La Boëtie, onde morava a família de Broglie, em outro magnífico Hôtel particulier adquirido em 1822 pelo avô dos irmãos de Broglie.

A residência da família Broglie era suntuosa, a contar pelo número de serviçais de que dispunham, cerca de quarenta, mas não se comparava à majestosa mansão dos Greffulhe e, ao que sei, não era um centro cultural importante. Não havia encontros de intelectuais com a mesma frequência que havia na residência dos Greffulhe. Ou seja, não havia o que se poderia chamar de Salon de Broglie, embora no início do século 19 tivesse destaque em Paris o Salão de Madame Staël, a tataravó dos irmãos de Broglie. Os salões, frequentemente denominados salões literários, existiam na França desde o início do século 17, até os anos 1940. No final da Belle Époque, quando Proust flanava pelo Faubourg Saint-Germain, eram famosos os salões de Madame Arman de Caillavet, musa de Anatole France e do próprio Proust; de Madeleine Lemaire, que apresentou Proust aos salões da aristocracia, e onde ele conheceu o conde Robert de Montesquiou, tio da condessa Greffulhe, e que se tornaria seu grande amigo; e de Madame Straus, modelo de Proust em Em busca do tempo perdido e em cuja residência ele conheceu Jean Cocteau.

L’hôtel Greffülhe. Pintura de Pierre Chapuis; coleção Thierry Cazaux.

Mas, acima de todos esses salões, pairava, em importância e glamour, o salão da condessa Greffulhe, no qual todos os intelectuais sonhavam ser admitidos. Proust também frequentava o salão de madame Aubernon, na rue d’Astorg, bem em frente à “cidadela inatingível”. Levaria algum tempo até que ele visse a condessa de perto pela primeira vez. Isso aconteceu em 1893, na casa da princesa de Wagram. Ele registrou seu deslumbramento com a beleza daquela mulher em carta ao conde de Montesquiou, na qual discretamente sugeriu que o amigo o apresentasse à condessa4:

Nunca vi uma mulher tão bonita. Não fui apresentado a ela e não vou pedir isso nem a você. Mas gostaria que ela soubesse a grande impressão que me causou e se, como creio, você a vê com frequência, poderia contar a ela?

Mas, não foi o tio da condessa quem apresentou Proust. Foi o duque Agénor de Gramont, famoso diplomata francês, quem, em 1902, realizou o sonho dourado de Proust durante uma reunião na residência de Anna de Noailles. Até chegar a esse glorioso momento, o ainda inexpressivo, mas futuro grande escritor, teve que dominar sua ansiedade e manter-se resiliente ao longo de anos, desde a década de 1890, nos quais participava de eventos sociais com a presença da condessa, sem que a ela fosse apresentado. Laure Hillarin destaca os seguintes eventos nos quais Proust esteve a poucos metros de sua musa intocável: reuniões literárias na residência do conde Montesquiou, apresentações musicais na residência do príncipe Edmond de Polignac ou no salão de Madame Lemaire. Também a via com frequência nos espetáculos do teatro Opéra, mas nesse caso a musa ficava à distância, no seu camarote particular.

Depois de ser apresentado à condessa, Proust esperou mais dois longos anos para quebrar a espessa camada de gelo que o separava de Élisabeth. E, coincidentemente, isso se deu pela família de Agénor de Gramont. Em 14 de julho de 1904, a duquesa de Gramont ofereceu, em seu castelo de Vallière, um jantar para uns trinta convidados, para anunciar ao petit comité o noivado do seu filho, Armand, com Elaine Greffulhe, a filha da condessa. A partir dali, Proust passa a fazer parte do círculo de amizade do conde e da condessa Greffulhe.

Em 1908, quando morava em um apartamento no número 102 do boulevard Haussmann, a 500 metros da mansão da condessa Greffulhe, Proust começou a fazer suas anotações em cadernos Moleskine, que desembocaram nos sete volumes da sua grandiosa obra. Circulava no Faubourg Saint-Germain como uma personagem menor. Um cronista5 que, para a aristocracia tinha o status de um alpinista social, e que não dava sinal de que viria a ser um dos expoentes da literatura francesa. Em suas memórias, o príncipe de Faucigny-Lucinge declarou que Proust se permitiu descrever um ambiente sobre o qual nada sabia. Olhando em retrospectiva, e parafraseando Laure Hillerin, pode-se dizer que foi o contrário. A sociedade que fascinou Proust e que alimentou sua obra não compreendeu nada.

Daquela aristocracia que o esnobava, ele construiu mais de duzentas personagens para sua obra-prima. Por exemplo, Charles Haas, o amante de Sarah Bernhardt, é o modelo de Charles Swann, personagem título do primeiro volume, No caminho de Swann. Seu amigo, o conde de Montesquiou, que frequentemente o maltratava, chamando-o de coisinha usada, é caricaturado como o barão de Charlus, abertamente homossexual.

A sua alucinada admiração pela condessa Greffulhe, não o impedia de zombar da sua musa. Fazia isso em cartas ao amigo Reynaldo Hahn, maestro, crítico musical e compositor, a quem pedia a máxima discrição, uma vez que seria muito desagradável se ela soubesse que tinha sido motivo de piadas.

Faubourg Saint-Germain é uma região histórica de Paris, conhecida há muito tempo como o local favorito da aristocracia. A região é circundada pelos distritos 1, 2, 8, 15 e 16. (Google Maps)

Na primeira vez que foi convidado para o salão da condessa, escreveu um artigo que seria publicado no Le Figaro, mas, aparentemente, a condessa proibiu a publicação. O artigo desapareceu, mas um rascunho incompleto foi preservado e publicado em 2003 no volume 53 do Bulletin Marcel-Proust, publicação importante para quem pretende se aprofundar na biografia do escritor francês.

O ambiente político e cultural em torno da condessa Greffulhe

Além dos convivas habituais nos salões aristocráticos, a condessa Greffulhe tinha no seu círculo de amizade ilustres políticos, músicos e cientistas, alguns dos quais Proust pode ter conhecido na mansão da rua d’Astorg.

Não há epíteto mais relevante do que ser chamada de A rainha conciliadora entre a nobreza antiga e a IIIa República. Esse epíteto, surpreendente para quem vive em ambiente monarquista e claramente hostil ao princípio republicano, é atribuído ao historiador e diplomata argentino Enrique Larreta. De fato, desde muito nova Élisabeth fez fluir sua aptidão política, sem jamais exercer qualquer cargo eletivo. Foi a sua relevante posição social que a fez uma discreta e eficiente ativista política. Por exemplo, Laure Hillerin menciona o testemunho de um contemporâneo da condessa, segundo o qual, em sua residência ela reuniu o Príncipe de Gales, futuro rei Édouard VII, com Théophile Delcassé, ministro de relações exteriores da França, ocasião da qual emergiu o famoso Entente cordiale, entre França e Inglaterra. 

Em 1919, logo depois da Primeira Guerra Mundial, um ministro do governo Clemenceau lhe escreveu6:

Quem não quer um salão político e diplomático? O seu foi o mais seguido, o mais completo, o mais brilhante de toda Paris. […]

Eu realmente espero que você volte para nós e reabra seus salões no próximo inverno.

Desde que fecharam, desde que vocês abandonaram a capital7, tenho a sensação de um grande vazio. Terá que ser preenchido, garanto. Você deve isso aos seus amigos e a si mesmo.

Diplomatas e políticos terão de criar laços cada vez maiores nos próximos anos; Paris se tornará o centro da política mundial, figuras públicas e diplomatas terão que manter relações cada vez mais estreitas. Onde eles se encontrarão?

Proust usou esse perfil da condessa Greffulhe ao descrever a lendária audácia da duquesa de Guermantes. Personalidades políticas importantes não faltaram para rechear a personagem proustiana. Na presença de Proust e outros convidados, a condessa costumava ler, desde os anos 1890, textos publicados por Léon Blum, deputado socialista em 1919.

Após a invasão da Polônia pela Alemanha e pela Rússia, em 1939, ela escreveu para um dos seus correspondentes:

O mundo inteiro sabe agora quem é o responsável pelo crime contra a Europa e contra a ordem moral. Este fato por si só tem um significado imenso. Impacto considerável, porque todos os neutros compreenderão que devem ficar do nosso lado — não mais para defender a nossa liberdade, mas para defender a deles. E, enquanto escrevo à senhora Roosevelt, mãe do Presidente, que tem grande carinho por mim — ela mostrará minha carta ao seu filho — trata-se de constituir uma cruzada de 1939 composta por todos os grandes e pequenos países do mundo, e de todos aqueles que querem lutar contra o bolchevismo, preservar a sua liberdade e reabilitar a honra. Esta cruzada deve ser apenas contra Hitler e desencadear a revolução na Alemanha contra ele.

Trata-se de uma clara advertência a Roosevelt, que pretendia ficar neutro. 

Até àquela época, artistas e cientistas viviam de recursos providenciados pelos mecenas, e a condessa Greffulhe foi uma das mais destacadas incentivadoras das artes e das ciências. Ela não podia ser classificada como benevolente de primeira linha porque sua fortuna não era suficiente, mas, compensava essa fraqueza pelo empenho na busca de recursos para artistas e cientistas que ela admirava. Mais do que uma mecena stricto sensu, ela atuava como uma devotada empresária. É imensa a lista de boas ações da condessa apresentada por Laure Hillerin, da qual recortarei algumas das mais populares.

Da mãe, Marie de Montesquiou, Élisabeth herdou o gosto e o talento musical. Ao lado do piano, seu instrumento favorito, ela tinha um dos mais belos violinos Stradivarius, provavelmente herança do seu avô paterno. Ou seja, de ambos os lados da família fluíram ares musicais para Élisabeth. 

Aos 30 anos de idade, ela participou da criação da Sociedade de grandes audições musicais da França, cujo Presidente de honra era Charles Gounod. Esse mesmo, o autor da famosa Ave Maria. A sociedade também tinha a participação ilustre de Gabriel Fauré. Graças ao empenho da condessa, a iniciativa obteve considerável apoio financeiro, incluindo os aportes das famílias Hottinger e Rothschild, bem como da riquíssima Winaretta Singer. Isso mesmo, a filha de Isaac Singer, o inventor daquela famosa máquina de costura. Boa parte desses recursos eram destinados ao teatro Opéra. Apresentações grandiosas, como a ópera Os Troianos, de Berlioz, e o oratório Israel no Egito, de Haendel. Na sequência, merece destaque a cruzada wagneriana da condessa, patrocinando exibições do Idílio de Siegfried, Tristão e Isolda, e, em 1902, O crepúsculo dos deuses, que contou com a presença do tsar Nicolas II.   

Entre 1905 e 1910, ela patrocinou a ida a Paris de compositores do quilate de Mahler (Segunda sinfonia) e Richard Strauss (Salomé). Organizou os festivais Berlioz, Beethoven e Grieg, e foi responsável pelo ingresso na França do balé russo, depois que conheceu Serge de Diaghilev.

Para concluir esta seção sobre a atividade política e cultural da condessa Greffulhe, reproduzo o que disse Laure Hillerin:

A condessa Greffulhe era sozinha, com a ajuda de algumas secretárias, chefe de uma pequena empresa, chefe de recursos humanos, escritório de caridade, empresa de entretenimento, empresária, agência diplomática, empresa de relações públicas. Seus dias não foram, de forma alguma fúteis “jornadas parisienses”, como as colunas sociais descreviam com complacência.

O mecenato científico da condessa Greffulhe

Ao contrário da música, que fazia parte da vida da condessa desde sua infância, a ciência lhe surgiu como curiosidade na idade adulta, aos 42 anos, quando conheceu Édouard Branly, um físico francês que fez contribuições importantes no desenvolvimento da comunicação sem fio. O assunto é suficientemente instigante para merecer um ensaio só para ele, mas farei aqui apenas uma breve menção ao caso Branly porque decidi me aprofundar no caso Marie Curie.

O caso Édouard Branly

Branly era um pesquisador muito modesto que se contentava com pouco. Quando visitou suas instalações em 1902, a condessa ficou horrorizada. O local era um antigo dormitório, em ruínas e empoeirado, localizado num convento das Carmelitas. Desde 1890, Branly vinha trabalhando naquilo que depois ficou conhecido como telegrafia sem fio, ou mais genericamente, comunicação eletromagnética sem fio. Muitos pesquisadores se envolveram com esse tipo de pesquisa, com destaque especial para Karl Ferdinand Braun e Guglielmo Marconi, que dividiram o Prêmio Nobel de Física de 1909, por suas contribuições para o desenvolvimento da telegrafia sem fio. Uma questão que cabe um estudo mais aprofundado é: por quê Branly não foi incluído na premiação?

A condessa ficou encantada quando viu as primeiras demonstrações de Branly. Resolveu mobilizar suas relações de amizade para ajudar o humilde pesquisador. Em 1903 ela conseguiu que ele dividisse o prêmio Osiris com Pierre Curie, que, como veremos mais adiante, ganharia o Nobel de Física naquele ano. Depois, em 1905, ela convenceu o diretor do jornal Le Matin a organizar uma demonstração no Trocadéro, onde cinco mil pessoas assistiram, boquiabertas, experimentos inacreditáveis: à distância, e sem qualquer ligação material, Branly aciona o gatilho de uma arma; liga e desliga um ventilador; liga e desliga lâmpadas elétricas; levanta uma grande bala de canhão usando um eletroímã.

Em dezembro daquele ano, Branly transmite a voz humana a uma distância de três quilômetros. O experimento foi realizado no castelo da condessa, em Bois-Boundran, a 70 quilômetros de Paris. Marcel Proust estava entre os convidados.

Castelo de Bois-Boudran, em Fontenailles.

O caso Marie Curie

Logo depois que o casal Marie e Pierre Curie dividiram o Prêmio Nobel de Física de 1903 com Antoine Becquerel, a condessa Greffulhe foi apresentada ao casal por Georges Urbain, diretor da faculdade de físicoquímica da Sorbonne, que viria a descobrir, em 1907, o elemento químico lutécio. Desse encontro emergiu uma história muito interessante, mas praticamente ausente da literatura historiográfica. Trata-se da participação da condessa Greffulhe na criação do Instituto do Rádio (IR), o sonho dourado do casal Curie, extensivamente abordado na obra de Laure Hillerin. Não surpreende a ausência do tema na literatura historiográfica, uma vez que essa parte da história não está registrada nos arquivos oficiais, nem da Sorbonne nem do Instituto Pasteur (IP), o órgão que deu origem ao IR. Foi na busca que fez nos arquivos da família Greffulhe que Laure Hillerin recuperou essa história. Talvez por isso não haja menção à condessa Greffulhe na respeitável referência acadêmica de Bénédicte Vincent8. Portanto, é interessante fazermos um cotejamento entre as descobertas de Laure e o que consta no artigo de Bénédicte.

Na Wikipedia9, por exemplo, a condessa é mencionada, mas não há qualquer referência ao livro de Laure Hillerin. Talvez o texto tenha sido inicialmente publicado antes de 2014, ano do lançamento do livro de Laure. Todavia, na revisão em 13 de março de 2022, o livro de Laure continua ausente.

Seja como for, Bénédicte e Laure destacam que o IR surgiu de um processo de barganha entre a Sorbonne e o IP, mas a sequência de eventos é apresentada de modo um pouco diferente pelas duas autoras. Vejamos.

A sequência de eventos narrada por Bénédict Vincent

De acordo com Bénédicte, tudo começou em 1907, quando o IP recebeu, do rico mecenas Daniel Ifla Osiris, uma herança de 30 milhões de franco-ouro, o que segundo Laure correspondia a 400 mil francos. No ano seguinte, o médico Emile Roux, diretor do IP, pensou em criar um novo laboratório para Marie Curie no IP, mas a Sorbonne tinha outros planos. Em 1909, Louis Liard, vice-reitor da Sorbonne sugeriu a construção de dois laboratórios, um dedicado ao estudo de fenômenos radioativos e outro dedicado ao estudo de aplicações médicas desses fenômenos. O primeiro seria dirigido por Marie Curie, e o segundo, por alguém indicado pelo IP. Dessa discussão surgiu a ideia de criação do Institut du Radium, com os dois citados laboratórios. Aquele ligado ao IP ficou conhecido como Pavilhão Pasteur. A Sorbonne contribui com o terreno e 200 mil francos, enquanto o IP contribuiu com 400 mil francos.

Os registros históricos sugerem que o IP ainda não tinha uma posição muito bem definida quanto aos seus projetos para o Pavilhão Pasteur. Em várias fontes mencionam-se diferentes tipos de laboratório:  um dedicado ao estudo de aplicações contra doenças; outro para estudo do rádio do ponto de vista biológico; um outro dedicado às aplicações médicas dos materiais radioativos; um departamento biológico do IR; laboratório de radiofisiologia, a denominação que prevaleceu. 

De acordo com Bénédict, essa imprecisa variedade de nomes indica que o Pavilhão Pasteur só foi admitido pelo IP por causa do processo de barganha. Nesse sentido, ela questiona: os dois laboratórios do IR colaboraram logo depois da Primeira Guerra Mundial? A equipe do IP teve algum proveito da expertise dos físicos em relação à medida da radioatividade usada em terapias? Resposta: foram poucas as colaborações no início, mas depois de 1921 os dois laboratórios passaram a trabalhar de modo mais associativo, sobretudo depois do suporte financeiro ofertado por Henri de Rothschild, que levou à criação da Fundação Curie10, cuja reunião do primeiro conselho se deu em 18 de janeiro de 1921, com a presença de Marie Curie, Claudius Regaud (diretor do Pavilhão Pasteur), Henri de Rothschild, Émile Roux (diretor do IP) e Paul Appell (reitor da Academia de Paris). Em 27 de maio, a Fundação Curie é legalmente reconhecida e considerada de utilidade pública.

A sequência de eventos narrada por Laure Hillerin

Para Laure, a história começa em 1904, quando o vice-reitor da Sorbonne, Louis Liard, busca recursos financeiros para adquirir um terreno de 30 mil metros quadrados entre a rua Saint-Jacques e a rua d’Ulm, para criar um instituto de física e química. Laure deixa a entender que o terreno foi adquirido com a ajuda da condessa Greffulhe, mas não apresenta qualquer documento comprobatório. O fato é que a Sorbonne não dispunha de recursos para construir o instituto, e a condessa vai a campo em busca de aporte.

Em março de 1907, ela monta um dossiê para solicitar 500 mil francos ao industrial e filantropo estadunidense Andrew Carnegie. Ela não o conhece pessoalmente, então pede à sua velha amiga Madame Roosevelt (mão do futuro presidente dos EUA) que lhe faça chegar o dossiê às mãos de Carnegie. O dossiê contém um plano detalhado do projeto, feito por Pierre Curie um pouco antes de sua morte, em 19 de abril de 1906. A condessa menciona que o laboratório deverá ser a semente de um instituto científico internacional, para o qual ela solicita um milhão e meio de francos. 

A ajuda financeira veio sob a forma de bolsas de estudo da recém-criada Fundação Carnegie, e sob a forma de uma doação, cujo valor não há registro. Em uma carta enviada à condessa Greffulhe, em 11 de fevereiro de 1908, madame Curie informa:

(…) Finalmente, não se deve esquecer que uma importante doação devido à generosidade do Sr. Carnegie foi entregue ao laboratório Curie e que esta doação aumenta a razão de ser de um laboratório definitivo como o Instituto Curie. 

Mas, um ano antes, o projeto do novo laboratório e do instituto parecia irrealizável. Élisabeth pediu ao seu amigo Gustave Le Bon para ler seu dossiê, talvez para saber se algo poderia ser melhorado. Foi uma péssima ideia. Vejamos alguns comentários de Le Bon, colocados nas margens do manuscrito da condessa e em cartas a ela dirigida:

Em suma, projeto vago, sem objetivo preciso. Sugiro que Madame Greffulhe o abandone; Eu ficaria muito surpreso se sua confiança fosse justificada. Ele realmente teria que não saber o que fazer com seu dinheiro ou ter uma imaginação extremamente pobre para não colocar seus milhões em melhor uso; O rádio jamais será isolado; Trata-se de um projeto absolutamente execrável; Eu uso este adjetivo apenas porque não consigo encontrar um mais forte. Estamos saturados de laboratórios inúteis e vazios.

Gustave Le Bon, um cientista amador confrontando cientistas profissionais

Aqui devo fazer um parêntese para especular a respeito dessa acidez de Le Bon. Faço isso a partir do artigo de Mary Jo Nye11. Tive conhecimento de Le Bon quando li um trabalho de Roberto de Andrade Martins, publicado no Caderno Catarinense de Ensino de Física, em 199012. O artigo de Mary Jo Nye, do qual extraí o texto abaixo, é citado por Roberto Martins:

Certas situações na história da ciência impressionam o observador como peculiarmente indicativas da complexa relação [entre o pensamento científico e o meio intelectual e social]; uma é a “descoberta” do final do século XIX de uma nova radiação pelo francês Gustave Le Bon. Sua radiação, paradoxalmente batizada de “luz negra”, entrou nas memórias da Academia Francesa de Ciências ao lado dos raios X de Roentgen e dos raios de urânio de Becquerel; sua explicação da relação entre seus raios e os de seus colegas mais ilustres provocaria uma controvérsia veemente por uma década. O próprio Le Bon era um amador de alto nível — um homem fora do sistema de universidades e liceus da França — que começou seus primeiros experimentos em física depois de trinta anos de escritos populares sobre medicina, antropologia e psicologia. No entanto, seus experimentos e ideias foram levados muito a sério por muitos membros da elite científica francesa, assim como por membros da elite intelectual. Por que isso ocorreu?

Não cabe aqui uma análise exaustiva do artigo de Mary Jo Nye para entender o porquê da consideração recebida por Le Bon, de parte da comunidade científica francesa do fim do século 19. Basta destacar alguns pontos de sua análise:

Le Bon era amigo de membros importantes da Academia (p.ex. Poincaré), homens com quem compartilhava pontos de vista políticos e filosóficos, em vez de científicos; Ele era antirracionalista e antimaterialista, razão pela qual enfatizava a intuição e a espontaneidade do raciocínio, em vez das ênfases tradicionais da ciência, tais como mecanismo, determinismo e materialismo; Discordou dos resultados obtidos por Marie Curie, entre os quais o que ela mostrou que apenas o tório produzia efeitos comparáveis àqueles apresentados pelo urânio; Jean Perrin referia-se aos experimentos de Le Bon como uma extraordinária e confusa mistura de erros e de resultados acurados; Rutherford e Thomson referiam-se aos experimentos de Le Bon como justificativa para apresentar seus resultados objetivando esclarecer os erros de Le Bon; Em 1905 Le Bon publicou o livro L’Evolution des Forces, no qual requisitava a prioridade pela descoberta da natureza e da generalidade da radioatividade. Foi fortemente criticado por Jean Perrin, amigo íntimo do casal Curie, o que deixou Le Bon furioso.  

Tendo em conta essas informações extraídas do artigo de Mary Jo Nye, fica fácil compreender a forma como Le Bon respondeu à condessa Greffulhe.

A criação do Instituto Curie

De acordo com Laure, os 400 mil francos doados por Daniel Iffla ao IP deveriam ser destinados à construção de um museu para abrigar as obras pertencentes à Escola de Belas Artes de Paris. Foi a condessa Greffulhe quem sugeriu a alocação dos recursos na criação do Instituto Curie. Essa informação é diferente daquela contida no artigo de Bénédicte Vincent, cuja data da doação seria 1907. A sugestão da condessa teria sido encaminhada ao diretor do IP pelo deputado Denys Cochin, amigo da condessa. Finalmente, em 15 de dezembro de 1909, acontece a reunião do conselho do IP mencionada por Bénédicte, na qual se decide pela construção do IR. Em 1970, a Fundação Curie e o Instituto do Rádio são fundidos para a criação do Instituto Curie, o sonho inicial de madame Curie.   

Atualmente, as antigas instalações do Instituto Curie hospedam o Museu Curie, com exposição de originais e réplicas dos equipamentos usados nas pesquisas sobre radioatividade, e a preservação de parte do laboratório e do gabinete de Marie Curie. Vários livros sobre a história da radioatividade e a biografia de alguns dos personagens estão à venda no saguão de entrada do museu.  

*

Carlos Alberto dos Santos é professor aposentado pelo Instituto de Física da UFRGS. Foi Pró-Reitor de Pesquisa e Pós-Graduação da UNILA e pesquisador visitante sênior do Instituto Mercosul de Estudos Avançados. Premiado com o Jabuti em 2016 (3º. Lugar na categoria Ciências da Natureza, Matemática e Meio Ambiente), com o livro Energia e Matéria: da fundamentação conceitual às aplicações tecnológicas, Livraria da Física, 2015.

  1.  L. Hillerin. La Comtesse Greffulhe L’ombre Des Guermantes. (Flamamarion, 2014). ↩︎
  2.  A quem desejar uma imersão mais profunda no universo proustiano, indico estes dois endereços, com importantes dados historiográficos: (a) https://www.bnf.fr/fr/les-modeles-de-marcel-proust-dans-les-collections-du-departement-des-manuscrits; (b) https://proust-personnages.fr/les-personnages-de-la-recherche/. ↩︎
  3. Hôtel particulier é uma residência urbana francesa (também encontrada na Suíça e na Bélgica) composta por uma casa luxuosa e projetada para ser habitada por apenas uma única família (e seus empregados domésticos). O modelo de casarão privado que se formou na Idade Média e se desenvolveu até ao início do século 20. Era uma espécie de transição entre as velhas elites da aristocracia e os novos ricos da burguesia. ↩︎
  4. Wise, P. Lettres et dédicaces inédites de Proust et de quelques correspondants. Bulletin d’informations proustiennes 9–28 (2010). ↩︎
  5. Vivian Morizono e Alexandre Almeida fazem um paralelo interessante entre Proust e João do Rio, no artigo Crônicas de salão no Brasil e na França: João do Rio e Marcel Proust. Terra roxa e outras terras – Revista de Estudos Literários,  vol. 28, pp. 115-125, 2014. ↩︎
  6.  Página 182 do livro de Laure Hillerin. ↩︎
  7.  Durante a guerra, muitas famílias da aristocracia fugiram para seus castelos fora de Paris. ↩︎
  8.  Vincent, B. Genesis of the Pavillon Pasteur of the Institut du Radium of Paris. History and Technology, an International Journal 13, 293–305 (1997). ↩︎
  9. https://fr.wikipedia.org/wiki/Institut_du_radium#cite_note-101AP/II-1. ↩︎
  10.  https://musee.curie.fr/decouvrir/documentation/la-creation-de-la-fondation-curie. ↩︎
  11. Nye, M. J. Gustave LeBon’s Black Light: A Study in Physics and Philosophy in France at the Turn of the Century. Historical Studies in the Physical Sciences, 4, 163-195. 4, 163–195 (1974). ↩︎
  12. Martins, R. de A. Como Becquerel não descobriu a radioatividade. Caderno Catarinense de Ensino de Física 7, 27–45 (1990). ↩︎

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