Nossos sentidos limitam nossa realidade

Nossos sentidos limitam nossa realidade: um trecho do lançamento da Prof. Claudia Feitosa-Santana que nos ensina um pouquinho mais sobre nossas limitações — e potencialidades.

Em lançamento pela Editora Planeta, Eu controlo como me sinto, da Prof. Claudia Feitosa-Santana, explica o funcionamento da mente e como usar esse conhecimento a favor do bem-estar. No Estado da Arte, trazemos “Nossos sentidos limitam nossa realidade”, um trecho da obra que nos ensina um pouquinho mais sobre nossas limitações — e potencialidades.

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Feitosa-Santana (Reprodução)

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Nossos sentidos limitam nossa realidade

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Se você quer uma vida melhor, primeiro precisa entender como percebe o mundo. Isso porque a diferença entre os indivíduos começa na maneira como cada um percebe seus arredores — o que interfere em nossos relacionamentos.

Uma vez, uma amiga me disse que eu não ouvia direito, porque não apreciava o que ela considera boa música. No entanto, precisamos aprender a respeitar o gosto alheio. Por exemplo, eu não gosto de funk, pois as letras me incomodam, e sinto dores de cabeça quando ouço heavy metal. Mas o fato de eu não gostar desses gêneros não significa que o gosto das outras pessoas é melhor ou pior que o meu.

Creio que podemos concordar que, em geral, os relacionamentos não se deterioram do nada, mas, sim, pouco a pouco, em virtude da soma de pequenas diferenças. Por isso, precisamos ter consciência de como nossa mente funciona, e se é possível ou não compartilhar nossas percepções. Quando dividimos as mesmas impressões, temos consenso. Quando não, nos sentimos sozinhos. Então, se você entender melhor como a mente funciona, pode criar consensos ou aceitar diferenças, o que é fundamental para ter relações de qualidade.

Pense e reflita: será que os seus sentidos dão conta de interpretar a realidade? A resposta é não.[1] Todos nós, sem exceção, temos sentidos limitados.

A nossa mente funciona como uma Matrix. No filme clássico, a Matrix é uma realidade paralela, que se opõe ao mundo real, criada na mente dos humanos, e diz respeito a tudo o que acontece dentro desse software. Tal como o personagem Neo, isso faz a gente se perguntar: Peraí, então o mundo é uma ilusão? Antes de tomar a pílula vermelha, você precisa entender o que é uma ilusão.

A ilusão é o engano dos sentidos, que troca a aparência real por uma falsa. Ou seja, é um fenômeno que se dá na nossa mente. Se nossos sentidos são limitados, é óbvio que eles jamais apreenderão a realidade por inteiro. É como se o mundo fosse um prisma de infinitos lados, e só conseguimos enxergar algumas de suas faces durante a vida. Nesse sentido, o mundo que percebemos é sempre uma ilusão. Assim como em Matrix, não se engane: ainda que nossos sentidos não deem conta da realidade, ela existe e, por isso, criamos instrumentos para que possamos acessá-la.

É fato que não podemos ver, ouvir, tocar e cheirar tudo. Vou dar um exemplo bem simples: já percebeu que você não ouve o som dos alimentos sendo digeridos pelo seu estômago? A frequência sonora dos movimentos peristálticos é mais baixa do que nossa audição pode processar e, por isso, não escutamos nossa digestão. E, se escutamos, é porque provavelmente alguma coisa está errada. Seu estômago produz um som diferente para sinalizar que você precisa comer, por exemplo.

Para que você não tenha dúvida de como somos limitados,[2] vamos explorar a visão, o sentido predominante da nossa espécie. Se você enxerga, mesmo que tenha uma visão excelente, não é capaz de processar vários detalhes quando eles estão muito longe, como se o olhar não conseguisse dar um zoom maior. Trata-se de uma limitação.

Se você pesquisar uma imagem do espectro eletromagnético, verá as diferentes frequências de radiação que correspondem a diversos comprimentos de onda. O espectro se estende desde menores comprimentos com maior frequência e energia, como dos raios gama, passando pelo ultravioleta e infravermelho, entre outros, até os maiores, com menor frequência e energia, como as ondas de rádio. Cada uma tem sua utilidade: nós usamos infravermelho para aquecer, ultravioleta para tratar a icterícia, e por aí vai. Embora tenhamos aprendido a fazer uso dessas radiações, não somos capazes de perceber a maior parte a olho nu.[3]

Dentro desse espectro, só conseguimos enxergar uma faixa bem estreita, que se chama luz, aproximadamente entre quatrocentos e setecentos nanômetros, entre o ultravioleta e o infravermelho, respectivamente. Nomeamos assim porque coincidem com as extremidades de nosso arco-íris, violeta e vermelho. Uma vez absorvida na retina,[4] a luz dá origem a três processos distintos.

O primeiro é o da visão, que possibilita nossa percepção visual do mundo. O segundo é o dos reflexos, que nos possibilitam, por exemplo, desviar a cabeça de algum objeto que venha em nossa direção. No terceiro, a informação não está na luz em si, mas na hora em que ela se faz presente ou ausente. Esse processo é responsável por organizar nossos ritmos biológicos.[5] Você já deve ter ouvido falar na melanopsina, responsável pelo início desse processo e que nos ajuda a entender nosso cronotipo, ou seja, o período do dia ou da noite em que temos tendência a ser mais ativos.[6] Esses dois últimos processos, embora igualmente importantes, são inconscientes e distintos da percepção visual, tanto que muitas pessoas com deficiência visual os possuem.[7]

Voltando à visão, ela nos fornece uma vida cheia de cores. No entanto, poderia ter muito menos ou muito mais. O mundo dos pássaros é bem mais colorido que o nosso,[8] enquanto o dos morcegos é menos. Contudo, os morcegos têm sensores infravermelhos, importantes para a vida noturna.[9] Ao contrário do que muitos pensam, cães[10] e gatos,[11] assim como pessoas daltônicas, não veem o mundo em tons de cinza, pelo contrário. Eles veem o mundo colorido e, embora com menos cores que nós, muito mais colorido do que se pensava até pouco tempo.[12]

Quando comparamos a capacidade dos nossos sentidos com a de outros animais, fica claro que cada espécie tem a sua realidade. Lembra-se de que falei que o mundo é como um prisma? É como se cada espécie o visse em coloração e ângulo diferentes. São realidades radicalmente diversas. Esse aprendizado é um dos primeiros para que tenhamos consciência de que os seres humanos percebem só um pouquinho do mundo. Por isso, temos que ser menos arrogantes e mais humildes como espécie (e indivíduos também).

Como nossos sentidos não captam tudo, e não conseguem processar tudo que é captado, ocorre uma convergência de informações[13] em que se perdem muitos detalhes. Isso acontece para tudo: visão, audição, memória — e para emoções também. Por isso, não é tão fácil entender e interpretar corretamente o que sentimos. Quando recebemos a informação da emoção, que está atrelada à conexão com o mundo, ela já foi simplificada, como uma foto de alta resolução que é compactada numa mensagem de WhatsApp. Por isso é tão fácil se sentir meio confuso, sem saber exatamente o que sente. Aqui entra também o papel da atenção: quanto mais atenção, maiores as chances de captar detalhes.

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Retrato de René Descartes, c. 1649-1700

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Notas:

[1] Lu, D., George, A., Cossins, D, & Liverpool, L. (29 de janeiro de 2020). What you experience may not exist. Inside the strange truth of reality. New Scientist. Recuperado em 8 de agosto de 2021, de https://www.newscientist.com/article/ mg24532670-800-what-you-experience-may-not-exist-inside-the-strange-truth-of-reality/

[2] Draaisma, D. (20 de abril de 2017). Perception: our useful inability to see reality. Nature. Recuperado em 8 de agosto de 2021, de https://www.nature.com/ articles/544296a?error=cookies_not_supported&code=f226352a-a985-40f8-8c61-fd35330519de

[3] National Aeronautics and Space Administration, Goddard Space Flight Center. (n.d.). The Electromagnetic Spectrum – Introduction. Imagine the Universe! Recuperado em 21 de julho de 2021, de https://imagine.gsfc.nasa.gov/science/toolbox/emspectrum1.html

[4] Goldstein, B. E., & Brockmole, J. (2010, p. 75). Sensation and Perception (8. ed.). Cengage Learning. David-Gray, Z. K., Janssen, J. W. H., DeGrip, W. J., Nevo, E., Foster, R. G. (1998). Light detection in a ‹blind› mammal. Nature Neuroscience 1, 655–656. https://doi.org/10.1038/3656

[5] Feitosa-Santana, C., & Menna-Barreto, L. (2007, pp. 36-39). Os três caminhos da luz. In C. Feitosa-Santana, L. C. L. Silveira, & D. F. Ventura (Eds.). Cadernos da Primeira Oficina de Estudos da Visão. IP-USP (NeC).

[6] AutoMEQ. (n.d.). Center for Environmental Therapeutics. Recuperado em 20 de julho de 2021, de https://www.chronotype-self-test.info/index.php?sid=61524&newtest=Y .

Mas isso requer dias para fazer efeito, não espere resultados imediatos. Cf.: Lupi, D. (2008). The acute light-induction of sleep is mediated by OPN4-based photoreception. Nature Neuroscience, 11, 1068–1073. https://doi.org/10.1038/nn.2179 Ruby, N. F., Brennan, T. J., Xie, X., Cao, V., Franken, P., Heller, H. C., & O’Hara, B. F. (2002). Role of melanopsin in circadian responses to light. Science, 298(5601), 2211-2213. https://doi.org/10.1126/science.1076701 Masters, A., Pandi-Perumal, S. R., Seixas, A., Girardin, J. L., & McFarlane, S. I. (2014). Melatonin, the hormone of darkness: from sleep promotion to ebola treatment. Brain Disorders & Therapy, 4(1), 1000151. https://doi.org/10.4172/2168-975X.1000151 Da mesma forma, o uso da luz pode estimular a produção da melanopsina, que ajuda a sustentar a atenção. Cf.: Lockley, S. W., Evans, E. E., Scheer, F. A. J. L., Brainard, G. C., Czeisler, C. A., & Aeschbach, D. (2006). Short-wavelength sensitivity for the direct effects of light on alertness, vigilance, and the waking electroencephalogram in humans. Sleep, 29(2), 161-168. https://doi.org/10.1093/sleep/29.2.161

[7] Feitosa-Santana, C., & Menna-Barreto, L. (2007, pp. 36-39). Os três caminhos da luz. In C. Feitosa-Santana, L. C. L. Silveira, & D. F. Ventura (Eds.). Cadernos da Primeira Oficina de Estudos da Visão. IP-USP (NeC)

[8] Kelber, A. (2019). Bird colour vision – from cones to perception. Current Opinion in Behavioral Sciences, 30, 34-40. https://doi.org/10.1016/j.cobeha.2019.05.003

[9] Em inglês, há uma expressão que diz “as blind as a bat” (ou, em português, “cego como um morcego”). Mas os estudos com morcegos contrariam esse ditado popular. Cf.: Caspermeyer, J. (2019). Just how blind are bats? Color vision gene study examines key sensory tradeoffs. Molecular Biology and Evolution, 36(1), 200-201. https://doi.org/10.1093/molbev/msy218

[10] Neitz, J., Geist, T., & Jacobs, G. H. (1989). Color vision in the dog. Visual Neuroscience, 3(2), 119-125. https://doi.org/10.1017/s0952523800004430

[11] Clark, D. L., & Clark, R. A. (2016). Neutral point testing of color vision in the domestic cat. Experimental Eye Research, 153, 23-26. https://doi.org/10.1016/j.exer.2016.10.002

[12] Pastilha, R. C., Linhares, J., Gomes, A. E., Santos, J., de Almeida, V., & Nascimento, S. M. C. (2019). The colors of natural scenes benefit dichromats. Vision Research, 158, 40-48. https://doi.org/10.1016/j.visres.2019.02.003

[13] Goldstein, B. E., & Brockmole, J. (2010, p. 32-35). Sensation and Perception (8. ed.). Cengage Learning.

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