por Maurício Vieira Martins
……………………………………………em parceria com a ANPOF
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Em 1838, Darwin fez uma série de visitas ao Zoológico de Londres; dentre seus objetivos, estava estudar o comportamento de um casal de orangotangos, Jenny e Tommy, que havia sido recentemente adquirido pela direção do Zoo. Nessas visitas, Darwin levava consigo um espelho, com o intuito de conhecer a reação dos animais diante dele. É fascinante ler as anotações do naturalista, agindo ao modo de um primatólogo, sobre este encontro. Ele escreve que ambos ficaram muito assustados, desmedidamente atônitos (astonished beyond measure) diante daquela imagem que mal e mal discerniam ser deles próprios.[1] Metaforicamente, poderíamos dizer que Darwin tinha um particular apreço em apresentar um espelho aos viventes: mas quando ele fez isso com os humanos, deu a conhecer uma ancestralidade que chocou seus contemporâneos.
Foi apenas em 1871 que Darwin publicou A descendência do homem, texto que aborda precisamente nossas origens animais. Este livro é nomeado por alguns especialistas como a segunda revolução darwiniana: certamente merece ser homenageado em nosso 2021, que marca os 150 anos de sua publicação. Para o leitor que não esteja familiarizado com a periodização da obra darwiniana, convém lembrar que entre o citado episódio da década de 30 e a publicação de A descendência do homem, encontra-se o texto mais célebre do naturalista, A origem das espécies, de 1859, onde ele demonstra os erros em que incorria o fixismo (que supunha que as espécies vegetais e animais haviam sido criadas por Deus de uma só vez), sustentando a transformação permanente da natureza ao longo do tempo.
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Esta verdade que hoje nos parece tão óbvia enfrentava imensas resistências no século XIX: apenas como ilustração, mesmo G. W. Hegel — filósofo conhecido pela afirmação da dialética existente no real — afirmava que na Natureza o que se encontra é sobretudo a “inteligência petrificada”, a ser superada pelo Espírito em seu devir. Em contrapartida, Darwin dá uma história à Natureza: ele nos mostra que aquilo que vemos é o resultado de transformações operadas pela seleção natural. Ocorre que apenas em pouquíssimas passagens do texto de 1859 são feitas referências à extensão do raciocínio para a origem da espécie humana. O próprio Darwin avaliava que a afirmação da transmutação na natureza já era suficientemente explosiva para a mentalidade predominante em sua época.
Assim é que apenas em A descendência do homem Darwin enfrenta abertamente a questão. Sem nem de longe pretender resumir esta volumosa obra — verdadeiro périplo por amplíssimo conjunto de questões das ciências naturais —, destaquemos alguns pontos que merecem atenção. Segundo as palavras do próprio autor, são três os objetivos principais do texto: “considerar, primeiramente, se o homem, como todas as outras espécies, é descendente de alguma forma pré-existente; em segundo lugar, o modo de seu desenvolvimento; e em terceiro lugar, o valor das diferenças entre as chamadas raças humanas”.[2]
A resposta à primeira questão será afirmativa. Pela comparação do desenvolvimento embrionário humano com o de outros seres, pelas homologias de estrutura e constituição, Darwin pode finalmente afirmar “que o homem descende de um quadrúpede peludo, dotado de cauda e orelhas pontudas, provavelmente arbóreo em seus hábitos” (P. II, p. 389). O segundo objetivo será encaminhado através de uma ênfase na seleção sexual — apresentada com uma profusão de variados exemplos do reino animal — como mecanismo adicional indispensável para compreender a diversidade animal e humana. Quanto à terceira questão, Darwin nega a poligenia, crença que supunha que as chamadas raças humanas eram espécies distintas, criadas em separado por Deus. Notemos que a poligenia fornecia o suporte ideológico para a dominação de uma raça sobre outra, razão adicional para se evidenciar seus equívocos:
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[T]odas as raças concordam em tantos detalhes desimportantes de estrutura e em tantas peculiaridades mentais, que estes só podem ser explicados pela herança de um progenitor comum (P. II, p. 388)
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Ao demonstrar a existência de uma única linhagem humana primitiva, Darwin afirma a unitariedade de nossa espécie.
Curioso é que, naquela referida apresentação das características da obra, Darwin não menciona uma questão particularmente densa de seu pensamento: a insuficiência da seleção natural para explicar sociedades mais complexas. É o que podemos ler numa passagem decisiva do argumento: “nas nações civilizadas, no que se refere a um padrão avançado de moralidade, . . ., a seleção natural aparentemente afeta muito pouco” (P. I, p. 173). Embutido está aqui o esclarecimento de uma antiga questão que se arrasta há anos: seria o mecanismo da seleção natural causa suficiente para explicar a diversidade das sociedades humanas? O texto de 1871 responde que não, preferindo enfatizar as transformações pelos “efeitos do hábito, os poderes do raciocínio, instrução, religião, etc., do que através da seleção natural” (P. II, p. 404).[3]
O número de questões levantadas por esta obra da maturidade é imenso, mas ela não é isenta de críticas. Apenas para mencionarmos uma, chama a atenção do leitor o fato de que, para designar a relação entre as diferentes espécies, as palavras “inferior” e “superior” invadem as páginas da argumentação. Darwin articula-as, por exemplo, com as diferenças entre o poder mental do “maior macaco” e o do “selvagem mais baixo” (P. I, p. 34). Esta é uma surpresa para quem conhece os Cadernos de viagem de 1830, pois neles Darwin, ao invés de usar estas categorias, formula uma representação arborescente da ramificação das espécies, onde não cabe a qualificação de superioridade de um entre sobre outro. Incidentalmente, a própria categoria evolução — um empréstimo de Spencer — só é incluída por Darwin na sexta edição de A origem das espécies, o que nos deixa diante da desconcertante conclusão de que o mecanismo ali analisado a rigor prescinde dela.
Posteriormente à publicação de A descendência do homem, houve um áspero debate sobre como interpretar as referidas categorias de inferior e superior: autores consistentes ponderam que, dado o ‘transformismo’ darwiniano, elas não devem ser entendidas em sentido absoluto, mas antes como configurações instáveis, relativas a um ponto de vista determinado. Mas o fato é que há um eixo problemático em A descendência, que se revela, dentre outras, nas referências condescendentes aos nativos da Terra do Fogo. Nelas, vemos um Darwin atravessado pela ruptura que ele próprio instaura, como que oscilando entre aproximações distintas ao seu tema. Têm razão Adrian Desmond e James Moore — darwinistas renomados — quando reconhecem com sobriedade que “aquelas classificações de ‘alto’ e ‘baixo’ que ele [Darwin] havia repudiado na década de 1830 estavam de volta”.[4]
Contudo, talvez mais importante do que nos fixarmos nos limites reais de Darwin, homem de seu século, é fazer o registro da produtividade de seu pensamento. Se o vigor de uma obra pode ser aferido também pela repercussão que ela provoca em outros saberes, diríamos que a de Darwin é das mais impactantes neste quesito. Pensadores com uma formação muito diversa da do naturalista inglês registraram a sua relevância. Assim é que durante a leitura de A origem das espécies, K. Marx escreveu a F. Engels: “este é o livro que contém a base histórico-natural de nossa visão”.[5] Observação forte, quando se leva em conta que uma base (Grundlage) é algo essencial na obra de um pensador: a tese da historicidade da natureza foi logo recepcionada como essencial por Marx. Na outra ponta do debate das ideias, e agora no século XX, podemos lembrar que S. Freud, pai da psicanálise, reserva a Darwin ter impingido a segunda afronta decisiva na ilusão narcísica que a espécie humana tem sobre si mesma. A primeira afronta teria sido feita por Copérnico, que demonstrou que a morada da humanidade, a Terra, longe de ser o centro do sistema solar, na verdade ocupa o modesto lugar de um planeta que orbita em torno do sol. Já a Darwin coube demonstrar que o “homem não é algo diferente nem melhor que os animais; é ele próprio de origem animal”.[6] A formulação de Freud põe em evidência a ferida narcísica provocada pelo darwinismo na autoimagem de numa espécie que insiste em acreditar-se superior ao mundo natural.
Em contrapartida, A descendência do homem mostra de modo contundente quão profundamente estão escavadas nossas raízes no mundo natural e animal. Poderíamos dizer que não foi só ao casal de orangotangos Jenny e Tommy — muito assustados com a própria imagem — a quem Darwin mostrou um espelho; também aos humanos o naturalista apresentou uma incômoda imagem. Visão assustadora.
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Notas:
[1] O detalhamento deste episódio pode ser encontrado no artigo de John van Wyhe e Peter Kjærgaard, Going the whole orang: Darwin, Wallace and the natural history of orangutans.
[2] Darwin, Ch. The Descent of Man and Selection in Relation to Sex. Princeton University, P. I, pp 2-3.
[3] Patrick Tort enfatiza insistentemente este ponto em Darwin n’est pas celui qu’on croit.
[4] Desmond, A. e Moore, J. A causa sagrada de Darwin, p. 502
[5] Carta de Marx a Engels de 19/12/1860. Desenvolvi mais extensamente a relação entre Marx e Darwin em meu livro Marx, Espinosa e Darwin: pensadores da imanência.
[6] Freud, S. Uma dificuldade da psicanálise. Companhia das Letras, p. 184.
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